NÃO ESTOU LÁ (2007)

(I’m Not There.)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #116

Dirigido por Todd Haynes.

Elenco: Christian Bale, Cate Blanchett, Marcus Carl Franklin, Richard Gere, Heath Ledger, Ben Whishaw, Charlotte Gainsbourg, Julianne Moore, Michelle Williams, David Cross, Bruce Greenwood, Kris Kristofferson e Peter Friedman.

Roteiro: Todd Haynes e Oren Moverman.

Produção: John Goldwyn, John Sloss, James D. Stern e Christine Vachon.

Não estou lá[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucos artistas na história da música provocam tanto fascínio e devoção como Bob Dylan, excepcional músico e compositor que transitou por diversos gêneros ao longo de sua carreira, deixando um legado composto por inúmeras canções marcantes e inesquecíveis. Em constante transformação não apenas visual, mas também na vida profissional e pessoal, Dylan se configurou quase num mistério, dificultando ao máximo a tarefa de resumi-lo como pessoa ou artista. Coube então ao diretor Todd Haynes a tarefa de conduzir este excelente “Não estou lá”, que traz em sua narrativa complexa a ousada proposta de compor as várias facetas do lendário músico.

Escrito pelo próprio Haynes ao lado de Oren Moverman, “Não estou lá” aborda seis etapas da vida de Bob Dylan, que jamais tem seu nome citado durante a narrativa. Ao invés disso, os roteiristas preferem dar nomes diferentes para o personagem em cada uma destas fases, sendo Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) para a infância, Jack Rollins para a fase folk (Christian Bale), Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) para seu lado poético, Jude Quinn (Cate Blanchett) para sua faceta roqueira e polêmica, Robbie Clark (Heath Ledger) para a vida familiar e Billy the Kid (Richard Gere) para sua fase mais reclusa.

Provavelmente, a grande questão que assolou os responsáveis pelo projeto “Não estou lá” era: como transpor para a telona a trajetória de um artista mutante como Bob Dylan? Felizmente, a escolha do diretor e roteirista Todd Haynes não poderia ser mais acertada. Indicando desde o começo que vários atores representarão o personagem, Haynes adota a estratégia ideal para tentar compor o complexo mosaico deste artista multifacetado, que passou de cantor folk “de protesto” a poeta, de roqueiro a cristão e de ícone da contracultura a caubói solitário ao longo de sua grande carreira artística. Adotando uma estrutura narrativa complexa e fragmentada que tende a afastar o espectador comum, o diretor e seu montador Jay Rabinowitz exigem atenção da plateia, ainda que compreender o que se está ocorrendo não demande tanto esforço intelectual, já que as dicas surgem desde a abertura em que vemos os diversos rostos que interpretarão Dylan – e meu instante favorito entre as dicas ocorre quando o velho Billy the Kid olha para o jovem Woody Guthrie e, ao ouvir seu lado poético dizer para “jamais olhar para si mesmo”, ele desvia o olhar.

Empregando elegantes movimentos de câmera, como quando um travelling passeia pelos fãs revoltados de Dylan após uma apresentação com guitarras elétricas na Nova Inglaterra, o diretor cria ainda sequências visualmente inventivas, como quando as imagens transmitem o significado da música “Ballad of a thin man”, num instante em que a montagem de Rabinowitz também chama a atenção, conferindo dinamismo sem jamais soar confusa. No entanto, é mesmo na condução firme de tantas linhas narrativas que o diretor se destaca, permitindo que o espectador se envolva com todas elas sem jamais deixar o ritmo do longa cair.

A fotografia de Edward Lachman também ajuda na orientação do espectador, oscilando entre o preto e branco e o colorido e alterando também o tamanho do grão para criar cenas ora mais limpas ora mais granuladas, conferindo aspectos visuais diferentes para cada estágio da vida do cantor. Assim, se na infância o tom dourado confere um ar nostálgico, as fases de cantor político folk, poeta controverso e artista polêmico surgem em preto e branco, como num registro documental das facetas que ele mais mostrava ao público. Já a vida familiar é fotografa em tons azulados, talvez demonstrando a mágoa que ele sente por ter se distanciado da esposa e das filhas. E finalmente, a fase cristã e a reclusão no campo ganham a mesma fotografia dourada da infância, talvez por remeter aos momentos em que o artista se sente mais confortável (ou seja, distante dos holofotes).

InfânciaPoeta controversoReclusão no campoAjudando a nos ambientar em cada época através da mudança na decoração das casas, dos carros e das próprias vestimentas dos personagens, o design de produção de Judy Becker e os figurinos de John Dunn acertam ainda na recriação de imagens icônica de Dylan ao longo dos anos, com as constantes alterações no corte de cabelo, a barba por fazer, os óculos escuros e o violão pendurado no corpo. Mas ainda que o visual seja importante, é mesmo a espetacular composição do elenco que nos ajuda a compreender as multifaces de Bob Dylan, em atuações não apenas coesas, mas simplesmente sensacionais.

Vivendo a infância do ícone de maneira incrivelmente despojada, Marcus Carl Franklin simboliza a paixão do cantor por Woody Guthrie (não por acaso, o nome do personagem), ícone da música folk que influenciou muito o começo da carreira de Dylan. São dele momentos marcantes de “Não estou lá”, como a conversa com dois senhores num trem e a performance encantadora com o violão na casa de uma família humilde. Único ator a interpretar duas épocas diferentes da vida de Dylan, Christian Bale adota uma postura corporal encurvada na fase folk (quando ele usa o nome Jack Rollins), empregando uma entonação diferente na voz e falas rápidas que tornam suas declarações polêmicas ainda mais impactantes. Já na fase religiosa, quando o cantor deixa o rock para trás para dedicar-se a igreja, sua postura corporal é mais firme e o tom de voz imponente, ainda que alguns velhos trejeitos estejam lá, como a movimentação rápida das mãos e o olhar inquieto.

Em seu penúltimo papel na carreira, Heath Ledger comprova mais uma vez seu grande talento ao viver a difícil faceta familiar do cantor e também sua rápida incursão no cinema, demonstrando o quanto é complicado manter um relacionamento para um astro como Dylan (no caso, Robbie Clark), passando grande parte do tempo ausente e se irritando com o assédio da imprensa ao ponto de estragar um almoço com amigos, ainda que tenha ótimos momentos com sua bela esposa Claire, interpretada com carisma por Charlotte Gainsbourg, atriz que se destaca especialmente na tocante discussão do casal sobre a guarda das filhas que precede a separação legal.

Fase folkFaceta familiarTocante discussãoIrônica, direta e bastante solta no papel, Cate Blanchett demonstra extrema coragem ao aceitar viver um personagem não apenas masculino, mas também muito conhecido do grande público, obtendo sucesso em sua composição através da fala rápida e da repetição precisa de muitos trejeitos e maneirismos do cantor, como as mãos inquietas e a velocidade em que fuma seus muitos cigarros. Assumindo a identidade de Jude Quinn, ela protagoniza momentos marcantes do polêmico artista como a discussão com Keenan Jones, o acidente de moto, a divertida cena envolvendo os Beatles e o conturbado relacionamento com Coco Rivington, a namorada sensual interpretada com graça por Michelle Williams. Mas, se suas respostas desconcertam a imprensa, seu comportamento consegue irritar alguns fãs (“Judas”, grita um após ser provocado por ele) e até mesmo pessoas mais próximas, como quando se embebeda numa festa e desmaia. É de Quinn também a divertida frase “este é Brian Jones, daquela banda de covers”, referindo-se ao lendário guitarrista dos Rolling Stones.

Ben Whishaw se encarrega das controversas entrevistas do poeta e cantor, surgindo repleto de maneirismos, falando rapidamente e tremendo, além é claro de manter o olhar sempre inquieto e de fumar inúmeros cigarros, numa composição igualmente competente já sob o sugestivo nome de Arthur Rimbaud. E finalmente, Richard Gere expressa o peso da vida conturbada do protagonista em seu olhar carregado e na expressão corporal cansada, ainda que a velha chama revolucionária esteja lá, pronta para surgir quando necessário, como de fato acontece numa manifestação popular. Entre aqueles que não interpretam Dylan, o destaque fica para Julianne Moore, que, com uma postura séria, compõe Alice Fabian (uma versão de Joan Baez) como uma especialista na fase folk do cantor, explicando com clareza as razões de seu sucesso e da revolta dos fãs com sua mudança ao longo dos anos.

Obviamente, as músicas não poderiam faltar num filme sobre Bob Dylan. Repleta de canções deliciosas, a trilha representa um prazer à parte para os fãs do cantor, nos brindando com cenas lindíssimas que casam perfeitamente a imagem e o som, como quando acompanhamos Claire brincando com as crianças no parque enquanto Robbie Clark volta para casa de avião. A trilha tem ainda funções narrativas. Observe, por exemplo, como ela emula um batimento cardíaco momentos antes de Blanchett surgir pela primeira vez em cena, já que ela assumirá a fase mais roqueira e polêmica do cantor, destilando veneno em embates dinâmicos e ferozes com a imprensa, simbolizada especialmente na pele de Bruce Greenwood, que vive o jornalista Keenan Jones e, posteriormente, o pistoleiro Pat Garrett – é ele, aliás, quem desmascara o passado misterioso do protagonista em seu programa de TV (numa ótima cena), desafiando-o também em local público já como Garrett. E o mais interessante é que em todas as fases, independente do estilo musical adotado, Dylan nos presenteia com excelentes canções, enquanto Haynes jamais tenta chegar a uma conclusão sobre quem foi este genial artista, criando um painel complexo que só fomenta as discussões sobre sua personalidade.

Dono de uma mente perturbada, mas igualmente criativa, Bob Dylan é certamente um dos maiores nomes da história da música e da arte, inspirando grupos que se dedicam exclusivamente a estudar os significados de suas ótimas canções. Conseguindo sucesso na exposição das várias faces deste gênio da música, “Não estou lá” representa não apenas um ousado projeto cinematográfico, mas também uma deliciosa viagem pela vida de um artista realmente fascinante. “Eu posso ser um ao amanhecer e outro completamente diferente no fim do dia”, diz Bob Dylan. O filme que ele inspirou também pode.

Não estou lá foto 2Texto publicado em 19 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

AS DUAS FACES DE UM CRIME (1996)

(Primal Fear)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #167

Dirigido por Gregory Hoblit.

Elenco: Richard Gere, Edward Norton, Laura Linney, John Mahoney, Frances McDormand, Alfre Woodard, Terry O’Quinn, Andre Braugher, Steven Bauer, Joe Spano, Tony Plana, Maura Tierney e Jon Seda.

Roteiro: Steve Shagan e Ann Biderman, baseado em romance de William Diehl.

Produção: Gary Lucchesi.

As Duas Faces de um Crime[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após a desistência do então astro em ascensão Leonardo Di Caprio de participar de “As Duas Faces de um Crime”, os produtores do projeto passaram a procurar desesperadamente por alguém que pudesse encarnar o personagem chave da trama, chegando a testar mais de dois mil candidatos. Entre eles, um jovem desconhecido conseguiu se destacar de tal maneira que, após conseguir o disputado papel e ter o vídeo de seu teste circulando por toda Hollywood, ele acabou sendo contratado para trabalhar em mais dois filmes importantes daquele ano, dirigidos por ninguém menos que Woody Allen e Milos Forman. Obviamente, estamos falando do talentosíssimo Edward Norton.

A atuação ambígua de Norton é essencial para que “As Duas Faces de um Crime” funcione tão bem, mas o ótimo roteiro escrito por Steve Shagan e Ann Biderman (baseado em romance de William Diehl) também tem grandes méritos, com sua estrutura perfeita funcionando em diversas camadas e desenvolvendo muito bem este precioso personagem, além é claro de contar com reviravoltas atordoantes. A narrativa começa nos mostrando o assassinato de um conhecido Arcebispo de Chicago (Stanley Anderson) e a prisão quase imediata de um de seus coroinhas, o jovem Aaron Stampler (Edward Norton), que é encontrando todo ensanguentado numa ferrovia perto do local do crime. A cobertura midiática do evento chama a atenção do competente advogado Martin Vail (Richard Gere), que decide defender o rapaz sem cobrar nada, apenas pela exposição que teria no caso. Do outro lado, a promotora Janet Venable (Laura Linney), que já viveu um caso com Vail no passado, é contratada pelo estado para tentar a pena de morte.

Além de se destacar pela maneira envolvente com que constrói a relação entre o advogado de defesa e seu cliente, o corajoso roteiro aborda ainda a influencia da Igreja nos negócios do bairro e os crimes sexuais cometidos pelo Arcebispo, criando um complexo jogo de interesses que só prende ainda mais nossa atenção. Por isso, talvez o único escorregão do inteligente roteiro seja o desnecessário caso entre Vail e Janet, que além de não colaborar em nada para o andamento da narrativa, acaba tirando o foco da ação principal sempre que as provocações entre eles ganham espaço na tela.

Relação entre o advogado de defesa e seu clienteCrimes sexuaisDesnecessário casoAuxiliado pela montagem de David Rosenbloom, o diretor Gregory Hoblit conduz a narrativa de maneira fluida, intercalando o trabalho no escritório de Vail, os duelos verbais entre ele e Janet, as conversas com Stampler, sua análise psiquiátrica e as audiências no tribunal, que ganham mais foco somente no empolgante terceiro ato. Até lá, o diretor demonstra habilidade na construção de uma atmosfera tensa e misteriosa, trabalhando em pequenos detalhes que ajudam a confundir o espectador. Mostrando Stampler rapidamente durante a apresentação do coral de coroinhas, Hoblit inicialmente nos faz acreditar que ele é mesmo o assassino, intercalando as fortes imagens do assassinato com planos rápidos de sua fuga alucinada da polícia. No entanto, observe como na prisão o diretor engrandece Vail e diminui Stampler na tela durante as primeiras conversas, o que, somado às expressões vulneráveis de Norton, força nossa identificação com o personagem e faz com que a plateia realmente acredite em sua inocência.

Imagens do assassinatoFuga alucinada da políciaExpressões vulneráveisCompetente também na direção de atores, Hoblit evita distrair nossa atenção com invencionismos, realçando as fortes atuações de seu elenco. Repare, por exemplo, como a câmera se aproxima lentamente do rosto dos personagens conforme os diálogos evoluem, como na primeira conversa entre Vail e Stampler e em muitos outros diálogos, num movimento discreto que jamais chama a atenção para si. Da mesma forma, a fotografia de Michael Chapman cria um mundo acinzentado que realça a frieza necessária na profissão dos advogados – e descobriremos mais tarde que esta frieza remete também ao próprio Stampler -, assim como o design de produção de Jeannine Claudia Oppewall, que concebe ambientes simétricos e organizados como o escritório de Vail e os tribunais. Até por isso, nos raros momentos em que o visual foge ao padrão, o espectador sente claramente o que o diretor pretende transmitir, como na conversa entre Vail e um repórter num bar, onde os tons avermelhados que predominam na cena indicam o inferno astral vivido pelo personagem após a descoberta da suposta doença de Stampler.

Mundo acinzentadoAmbientes simétricosInferno astralEssencial num filme de tribunal onde os argumentos dos advogados precisam ser captados com clareza, o design de som ainda se destaca em sequências especiais, como no próprio assassinato do Arcebispo, no qual um cidadão escuta da rua os violentos golpes desferidos contra ele, e especialmente numa das audiências, onde as vozes de um interessante debate entre os advogados se sobrepõem às imagens da chegada deles ao tribunal. E fechando os destaques da parte técnica, a trilha sonora discreta de James Newton Howard sublinha muito bem momentos especiais, como quando indica a mudança de comportamento de Stampler segundos antes de sua primeira transformação através de uma nota sombria que lentamente ganha força, destoando deste tom discreto somente durante a acelerada perseguição de Alex (Jon Seda) pelas ruas.

Bem vestido e com um corte de cabelo impecável, Richard Gere encarna Vail como um advogado extremamente competente e, por isso, autoconfiante ao ponto de dizer que a única verdade que interessa é aquela em que ele acredita. Com um sorriso falso e um olhar penetrante, o ator faz bem o papel do advogado dissimulado, que faz tudo que está ao seu alcance para defender seus clientes, mantendo ainda um bom relacionamento com eles fora do tribunal, como atesta sua conversa com o traficante Joey Pinero (Steven Bauer). Assumindo inicialmente uma postura dominante que se reflete nas cores fortes de seus ternos (figurinos de Betsy Cox), o advogado lentamente vai sendo domado por seu cliente, o que cria uma confusão momentânea em sua mente tão acostumada a controlar este tipo de situação, refletida até mesmo na falta de cor de seus ternos no segundo ato. Quando finalmente compreende o que se passa com Stampler, Gere volta a adotar uma postura confiante e os ternos escuros novamente aparecem.

Advogado extremamente competenteSorriso falsoPostura dominanteIgualmente confiante profissionalmente, a Janet interpretada por Laura Linney se sai bem nos embates diante do ardiloso Vail, mantendo uma postura firme também fora do âmbito profissional ante as investidas nada elegantes do ex-amante. Vivendo a personagem de maneira centrada e inteligente, Linney confere credibilidade aos julgamentos, fazendo com que a plateia realmente acredite que ela será capaz de vencer Vail e conseguir a condenação de Stampler. Outra presença feminina marcante é a de Frances McDormand, que está serena como a psiquiatra Molly, transmitindo a tranquilidade esperada em sua profissão e demonstrando segurança diante dos fortes questionamentos da promotora Janet no tribunal (numa atuação minimalista que, por contraste, realça sua qualidade como atriz quando comparada a determinada policial Marge, que ela viveu naquele mesmo ano em Fargo”). Fechando o elenco secundário, vale citar o ameaçador John Shaughnessy interpretado por John Mahoney.

Janet postura firmeCentrada e inteligentePsiquiatra MollyE chegamos então ao grande responsável pelo sucesso de “As Duas Faces de um Crime”. Em seu papel de estreia no cinema, Edward Norton entrega uma atuação assombrosa, encarnando duas personalidades tão distintas de maneira mais do que convincente na pele do acusado Stampler. Enquanto o tímido Aaron surge com uma notável gagueira, um tom de voz baixo e evita olhar diretamente para as pessoas, seu alter-ego Roy é exatamente o oposto, surgindo confiante com sua voz firme, o olhar ameaçador e a postura corporal imponente e agressiva. Observe, por exemplo, como sua expressão ameaçadora no primeiro lapso diante da Dra. Molly se contrapõe diretamente ao seu olhar assustado durante as audiências no tribunal. Assim, quando Roy finalmente surge em cena, Norton complementa sua transformação de maneira sensacional, atacando Vail violentamente e se impondo com incrível firmeza, numa postura diametralmente oposta ao reprimido Aaron.

Tímido AaronRoy é exatamente o opostoPrimeiro lapsoSó que “As Duas Faces de um Crime” ainda nos reserva outra reviravolta em seus instantes finais. Preparando cuidadosamente seu explosivo terceiro ato durante toda a narrativa, Hoblit nos leva ao julgamento final e ao esperado depoimento da Dra. Molly, seguido pelo interrogatório do próprio suspeito, no qual os advogados alcançarão o ápice de suas estratégias cuidadosamente elaboradas. Incluindo planos rápidos das mãos ansiosas de Aaron durante o interrogatório, o diretor e seu montador aceleram a sequência através de planos cada vez mais curtos que só ampliam a tensão, nos permitindo antecipar o iminente ataque de fúria do acusado, que inevitavelmente acontece e deixa todos atônitos. Desta forma, o espectador termina a cena pensando que sabe mais do que a maioria dos personagens, só que quando Stampler finalmente revela seu truque para Vail, o choque torna-se inevitável tanto para o advogado quanto para a plateia. Como ilustram os planos finais em plongè que o diminuem em cena, Vail deixa o tribunal completamente desolado por constatar que aquele jovem aparentemente inofensivo foi capaz de enganá-lo durante tanto tempo.

Mãos ansiosas de AaronIminente ataque de fúriaStampler finalmente revela seu truqueQuem não se importa por ter sido enganado é o espectador, que deixa a projeção totalmente atordoado e completamente satisfeito com o que acabou de assistir. Contando com um bom elenco e uma atuação simplesmente fantástica de Edward Norton, “As Duas Faces de um Crime” é um grande filme, que vai além dos tribunais e nos faz refletir sobre até que ponto a primeira impressão é realmente a que fica. Ao menos, a impressão de que este é um dos melhores filmes da década de 90 continua intacta.

As Duas Faces de um Crime foto 2Texto publicado em 29 de Abril de 2013 por Roberto Siqueira

UMA LINDA MULHER (1990)

(Pretty Woman)

 

Videoteca do Beto #76

Dirigido por Garry Marshall.

Elenco: Richard Gere, Julia Roberts, Ralph Bellamy, Jason Alexander, Laura San Giacomo, Hector Elizondo, Alex Hyde-White, Amy Yasbeck, Elinor Donahue, Judith Baldwin, Bill Applebaum e Hank Azaria.

Roteiro: J.F. Lawton.

Produção: Arnon Milchan e Steven Reuther.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Explorando sem o menor constrangimento diversos clichês das comédias românticas e apoiando-se num roteiro com uma estrutura convencional, “Uma Linda Mulher” consegue alcançar um resultado satisfatório graças à forma como o diretor Garry Marshall conduz a narrativa e, principalmente, à excelente química de seu par romântico, muito bem interpretado por Julia Roberts e Richard Gere.

O milionário Edward (Richard Gere) se perde pelas ruas de Beverly Hills e acaba na Hollywood Boulevard, exatamente no ponto de trabalho da prostituta Vivian (Julia Roberts). A garota se oferece para levá-lo até o hotel Regent Beverly Wilshire e ele acaba contratando-a para passar a semana com ele e participar de seus compromissos sociais como uma acompanhante. Mas com o passar do tempo, a relação profissional começa a dar espaço para outros sentimentos.

Escrito por J.F. Lawton, “Uma Linda Mulher” conta, sem o menor receio de explorar clichês, a clássica história do amor impossível entre um homem da alta classe e uma prostituta, chegando até mesmo a satirizar a situação quando Edward diz que sua especialidade são os “amores impossíveis”. Nem mesmo a estrutura narrativa foge do convencional, mostrando os dois se apaixonando, criando um pequeno conflito quando Phillip descobre que Vivian é prostituta e provoca uma briga entre o casal e, finalmente, promovendo o reencontro emocionado no ato final. Só que ao contrário da maioria das produções do gênero, aqui o clichê funciona muito bem, graças ao tom leve e correto da narrativa e, principalmente, à química do casal. Obviamente, uma história como esta dificilmente aconteceria na vida real, mas a forma como Marshall conduz à narrativa nos faz relevar este detalhe. O roteiro ainda apresenta algumas frases interessantes, como o pequeno diálogo sobre o beijo na boca, que refletirá no momento em que ambos se entregarão a paixão e esquecerão as regras que eles próprios criaram (“Não beijo na boca”, diz Vivian e Edward responde: “Nem eu”). E finalmente, o longa aborda ainda o preconceito quando Vivian entra na loja e não é atendida por causa de sua aparência, o que motiva sua volta ao local no dia seguinte, agora com muitas sacolas de outras lojas (“Vocês ganham comissão não é? Grande erro!”).

Conduzido com discrição por Garry Marshall, o longa apresenta uma narrativa leve e descontraída, repleta de momentos bem humorados, como no importante jantar de negócios entre Edward e os “Morse”, em que Vivian tenta não dar vexame, ou quando Vivian diz que “teria ficado por dois mil” e Edward responde que “pagaria até quatro”. Mas apesar da discrição, Marshall mostra competência especialmente na condução dos atores, extraindo ótimas atuações de seu par romântico. O diretor também demonstra sensibilidade em diversos momentos, como quando os dois se beijam pela primeira vez, compondo um plano sutil que ilustra, através da grade da cama, que agora eles estavam presos um ao outro. Marshall também é sutil ao indicar o sexo quando os dois ficam sozinhos no piano, afastando a câmera lentamente e escurecendo a tela, como quem se retira do local para deixar o casal mais a vontade. Em outro momento, após apresentar um close dos diversos talheres no treinamento de Vivian, Marshall emprega um zoom out para ilustrar o quanto ela se sentia intimidada naquela situação. E até mesmo os planos mais óbvios funcionam bem, como aquele em que Vivian está na sacada do hotel relembrando a história da princesa presa na torre ou na seqüência de apresentação da personagem, que primeiro mostra as partes do corpo, depois os acessórios do vestuário e só depois o rosto de Vivian, destacando por ordem de importância os requisitos daquela profissão.

Mas apesar das claras diferenças sociais que separam Edward e Vivian, os dois apresentam muitas semelhanças, algo ilustrado com bom humor pelo milionário quando ele diz que “nós dois somos similares, fodemos* com as pessoas por dinheiro”. Só que ambos sofriam de carência afetiva por razões diferentes. Edward não conseguia estabelecer uma relação, provavelmente por se entregar demais à profissão e oferecer pouco tempo para suas companheiras, enquanto Vivian tinha dificuldade por jamais acreditar que um cliente poderia de fato gostar dela, o que é compreensível, tendo em vista que a grande maioria dos clientes tem um comportamento similar ao de Phillip (Jason Alexander), vendo-a apenas como um objeto de desejo e nada mais. Juntos, eles aprendem um com o outro. Vivian conhece um estilo de vida que jamais imaginou ter acesso, mas principalmente, conhece um homem capaz de tratá-la com dignidade, enxergando além das curvas de seu corpo, o que a motiva a largar a prostituição (“Vou voltar a estudar”, diz para a colega Kit). Edwards, por sua vez, aprende a curtir os pequenos prazeres da vida, algo ilustrado através de pequenas coisas como colocar o pé na grama, que certamente é algo que ele jamais faria antes de conhecer Vivian.

Separado duas vezes (da esposa e da amante), Edward é um homem bem sucedido profissionalmente, mas que claramente enfrenta problemas para se relacionar com alguém, como fica evidente em sua conversa com uma ex-namorada na festa inicial. Richard Gere se sai muito bem no papel, demonstrando o quanto Edwards é um homem centrado, contido e até mesmo anti-social. O ator ilustra com precisão a lenta mudança no personagem através da forma com que se relaciona com Vivian, indicando sutilmente que está se apaixonando pela moça, por exemplo, quando sente ciúme ao vê-la conversando com David Morse (Alex Hyde-White) ou quando sua feição de satisfação e surpresa ao ver Vivian sem a peruca indica que ele estava começando a enxergar uma beleza natural inexistente naquela jovem até então. Finalmente, Gere também se destaca quando Edward explode contra Phillip, demonstrando firmeza ao defender Vivian. Obviamente, a química do casal é muito importante para conquistar a platéia, e ela só existe porque Julia Roberts também tem um excelente desempenho. Bastante solta no papel, como podemos notar em sua chegada ao hotel, quando chama a atenção de todos com seu jeito exagerado e pouco convencional ao mesmo tempo em que se mostra deslumbrada com a imponência do lugar, a atriz convence como uma prostituta que encontra uma chance de ouro de ganhar muito dinheiro, mas que acaba quebrando a regra número um da “profissão”, ao se envolver emocionalmente com seu cliente. Observe como ela compõe a personagem muito bem através de pequenos gestos, como a forma que ela ajeita a saia ou o jeito alegre de cantar na banheira. Seu jeito de andar também chama a atenção, o que faz Edward constantemente pedir para que ela “não se mexa tanto”. E assim como Gere, Julia também se sai bem nos momentos dramáticos, como quando Phillip descobre que ela é prostituta e diz uma frase cruel, magoando Vivian profundamente – e Roberts ilustra muito bem a tristeza da personagem. Infelizmente, o restante do elenco não mantém o mesmo nível nas atuações e, pra piorar, ainda temos Phillip, um personagem detestável, totalmente unidimensional, que certamente prejudica a atuação de Jason Alexander.

Seguindo o tom discreto da direção, o trabalho técnico de “Uma Linda Mulher” não chama muito a atenção, mas nem por isso deixa de ser eficiente e trabalhar a favor da narrativa. Observe, por exemplo, como os figurinos de Marilyn Vance ilustram a personalidade distinta do casal, através das roupas escandalosas de Vivian e dos ternos cinzentos que denotam seriedade a Edwards, algo ilustrado também através de pequenos gestos, como quando Vivian tenta sentar nos pés de Edward e ele rapidamente tira o pé. Repare também como a direção de fotografia de Charles Minsky é colorida e cheia de vida quando Edward está com Vivian, refletindo o estado de espírito do milionário e, ao mesmo tempo, criando um contraste interessante com o ambiente cinzento e sem vida de seu escritório e de sua vida nos negócios. E até mesmo a trilha sonora de James Newton Howard pontua bem as cenas, refletindo a empolgação dos personagens através de alguns sucessos da época, como “Wild Women Do”, além é claro da clássica “Pretty Woman”, que aparece no momento em que Vivian se sente mais confiante, andando pelas ruas após conseguir comprar suas roupas. E fechando o trabalho técnico, a montagem ágil de Raja Gosnell e Priscilla Nedd-Friendly colabora com o clima leve e o ritmo empolgante da narrativa, como podemos notar, por exemplo, durante o jantar de negócios, além de fazer uma interessante transição através da grade da cama, revelando o momento em que o casal apaixonado supera as barreiras impostas por eles mesmos, algo confirmado na frase de Vivian (“Eu te amo”).

O previsível final feliz, com Edward chegando para buscar sua princesa com ópera e tudo mais, é bastante irreal, é verdade, mas está dentro do propósito leve da narrativa. Talvez um final coerente, como cada um seguindo o seu caminho, fizesse de “Uma Linda Mulher” um filme mais maduro e tocante, mas certamente estaria completamente fora do tom adotado até então. E é justamente por entregar aquilo que se propõe sem maiores pretensões que o longa dirigido por Garry Marshall e estrelado por Julia Roberts e Richard Gere agrada.

PS: *Desculpe a tradução literal, mas outra palavra tiraria completamente o sentido da frase.

Texto publicado em 13 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira