NÃO ESTOU LÁ (2007)

(I’m Not There.)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #116

Dirigido por Todd Haynes.

Elenco: Christian Bale, Cate Blanchett, Marcus Carl Franklin, Richard Gere, Heath Ledger, Ben Whishaw, Charlotte Gainsbourg, Julianne Moore, Michelle Williams, David Cross, Bruce Greenwood, Kris Kristofferson e Peter Friedman.

Roteiro: Todd Haynes e Oren Moverman.

Produção: John Goldwyn, John Sloss, James D. Stern e Christine Vachon.

Não estou lá[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucos artistas na história da música provocam tanto fascínio e devoção como Bob Dylan, excepcional músico e compositor que transitou por diversos gêneros ao longo de sua carreira, deixando um legado composto por inúmeras canções marcantes e inesquecíveis. Em constante transformação não apenas visual, mas também na vida profissional e pessoal, Dylan se configurou quase num mistério, dificultando ao máximo a tarefa de resumi-lo como pessoa ou artista. Coube então ao diretor Todd Haynes a tarefa de conduzir este excelente “Não estou lá”, que traz em sua narrativa complexa a ousada proposta de compor as várias facetas do lendário músico.

Escrito pelo próprio Haynes ao lado de Oren Moverman, “Não estou lá” aborda seis etapas da vida de Bob Dylan, que jamais tem seu nome citado durante a narrativa. Ao invés disso, os roteiristas preferem dar nomes diferentes para o personagem em cada uma destas fases, sendo Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) para a infância, Jack Rollins para a fase folk (Christian Bale), Arthur Rimbaud (Ben Whishaw) para seu lado poético, Jude Quinn (Cate Blanchett) para sua faceta roqueira e polêmica, Robbie Clark (Heath Ledger) para a vida familiar e Billy the Kid (Richard Gere) para sua fase mais reclusa.

Provavelmente, a grande questão que assolou os responsáveis pelo projeto “Não estou lá” era: como transpor para a telona a trajetória de um artista mutante como Bob Dylan? Felizmente, a escolha do diretor e roteirista Todd Haynes não poderia ser mais acertada. Indicando desde o começo que vários atores representarão o personagem, Haynes adota a estratégia ideal para tentar compor o complexo mosaico deste artista multifacetado, que passou de cantor folk “de protesto” a poeta, de roqueiro a cristão e de ícone da contracultura a caubói solitário ao longo de sua grande carreira artística. Adotando uma estrutura narrativa complexa e fragmentada que tende a afastar o espectador comum, o diretor e seu montador Jay Rabinowitz exigem atenção da plateia, ainda que compreender o que se está ocorrendo não demande tanto esforço intelectual, já que as dicas surgem desde a abertura em que vemos os diversos rostos que interpretarão Dylan – e meu instante favorito entre as dicas ocorre quando o velho Billy the Kid olha para o jovem Woody Guthrie e, ao ouvir seu lado poético dizer para “jamais olhar para si mesmo”, ele desvia o olhar.

Empregando elegantes movimentos de câmera, como quando um travelling passeia pelos fãs revoltados de Dylan após uma apresentação com guitarras elétricas na Nova Inglaterra, o diretor cria ainda sequências visualmente inventivas, como quando as imagens transmitem o significado da música “Ballad of a thin man”, num instante em que a montagem de Rabinowitz também chama a atenção, conferindo dinamismo sem jamais soar confusa. No entanto, é mesmo na condução firme de tantas linhas narrativas que o diretor se destaca, permitindo que o espectador se envolva com todas elas sem jamais deixar o ritmo do longa cair.

A fotografia de Edward Lachman também ajuda na orientação do espectador, oscilando entre o preto e branco e o colorido e alterando também o tamanho do grão para criar cenas ora mais limpas ora mais granuladas, conferindo aspectos visuais diferentes para cada estágio da vida do cantor. Assim, se na infância o tom dourado confere um ar nostálgico, as fases de cantor político folk, poeta controverso e artista polêmico surgem em preto e branco, como num registro documental das facetas que ele mais mostrava ao público. Já a vida familiar é fotografa em tons azulados, talvez demonstrando a mágoa que ele sente por ter se distanciado da esposa e das filhas. E finalmente, a fase cristã e a reclusão no campo ganham a mesma fotografia dourada da infância, talvez por remeter aos momentos em que o artista se sente mais confortável (ou seja, distante dos holofotes).

InfânciaPoeta controversoReclusão no campoAjudando a nos ambientar em cada época através da mudança na decoração das casas, dos carros e das próprias vestimentas dos personagens, o design de produção de Judy Becker e os figurinos de John Dunn acertam ainda na recriação de imagens icônica de Dylan ao longo dos anos, com as constantes alterações no corte de cabelo, a barba por fazer, os óculos escuros e o violão pendurado no corpo. Mas ainda que o visual seja importante, é mesmo a espetacular composição do elenco que nos ajuda a compreender as multifaces de Bob Dylan, em atuações não apenas coesas, mas simplesmente sensacionais.

Vivendo a infância do ícone de maneira incrivelmente despojada, Marcus Carl Franklin simboliza a paixão do cantor por Woody Guthrie (não por acaso, o nome do personagem), ícone da música folk que influenciou muito o começo da carreira de Dylan. São dele momentos marcantes de “Não estou lá”, como a conversa com dois senhores num trem e a performance encantadora com o violão na casa de uma família humilde. Único ator a interpretar duas épocas diferentes da vida de Dylan, Christian Bale adota uma postura corporal encurvada na fase folk (quando ele usa o nome Jack Rollins), empregando uma entonação diferente na voz e falas rápidas que tornam suas declarações polêmicas ainda mais impactantes. Já na fase religiosa, quando o cantor deixa o rock para trás para dedicar-se a igreja, sua postura corporal é mais firme e o tom de voz imponente, ainda que alguns velhos trejeitos estejam lá, como a movimentação rápida das mãos e o olhar inquieto.

Em seu penúltimo papel na carreira, Heath Ledger comprova mais uma vez seu grande talento ao viver a difícil faceta familiar do cantor e também sua rápida incursão no cinema, demonstrando o quanto é complicado manter um relacionamento para um astro como Dylan (no caso, Robbie Clark), passando grande parte do tempo ausente e se irritando com o assédio da imprensa ao ponto de estragar um almoço com amigos, ainda que tenha ótimos momentos com sua bela esposa Claire, interpretada com carisma por Charlotte Gainsbourg, atriz que se destaca especialmente na tocante discussão do casal sobre a guarda das filhas que precede a separação legal.

Fase folkFaceta familiarTocante discussãoIrônica, direta e bastante solta no papel, Cate Blanchett demonstra extrema coragem ao aceitar viver um personagem não apenas masculino, mas também muito conhecido do grande público, obtendo sucesso em sua composição através da fala rápida e da repetição precisa de muitos trejeitos e maneirismos do cantor, como as mãos inquietas e a velocidade em que fuma seus muitos cigarros. Assumindo a identidade de Jude Quinn, ela protagoniza momentos marcantes do polêmico artista como a discussão com Keenan Jones, o acidente de moto, a divertida cena envolvendo os Beatles e o conturbado relacionamento com Coco Rivington, a namorada sensual interpretada com graça por Michelle Williams. Mas, se suas respostas desconcertam a imprensa, seu comportamento consegue irritar alguns fãs (“Judas”, grita um após ser provocado por ele) e até mesmo pessoas mais próximas, como quando se embebeda numa festa e desmaia. É de Quinn também a divertida frase “este é Brian Jones, daquela banda de covers”, referindo-se ao lendário guitarrista dos Rolling Stones.

Ben Whishaw se encarrega das controversas entrevistas do poeta e cantor, surgindo repleto de maneirismos, falando rapidamente e tremendo, além é claro de manter o olhar sempre inquieto e de fumar inúmeros cigarros, numa composição igualmente competente já sob o sugestivo nome de Arthur Rimbaud. E finalmente, Richard Gere expressa o peso da vida conturbada do protagonista em seu olhar carregado e na expressão corporal cansada, ainda que a velha chama revolucionária esteja lá, pronta para surgir quando necessário, como de fato acontece numa manifestação popular. Entre aqueles que não interpretam Dylan, o destaque fica para Julianne Moore, que, com uma postura séria, compõe Alice Fabian (uma versão de Joan Baez) como uma especialista na fase folk do cantor, explicando com clareza as razões de seu sucesso e da revolta dos fãs com sua mudança ao longo dos anos.

Obviamente, as músicas não poderiam faltar num filme sobre Bob Dylan. Repleta de canções deliciosas, a trilha representa um prazer à parte para os fãs do cantor, nos brindando com cenas lindíssimas que casam perfeitamente a imagem e o som, como quando acompanhamos Claire brincando com as crianças no parque enquanto Robbie Clark volta para casa de avião. A trilha tem ainda funções narrativas. Observe, por exemplo, como ela emula um batimento cardíaco momentos antes de Blanchett surgir pela primeira vez em cena, já que ela assumirá a fase mais roqueira e polêmica do cantor, destilando veneno em embates dinâmicos e ferozes com a imprensa, simbolizada especialmente na pele de Bruce Greenwood, que vive o jornalista Keenan Jones e, posteriormente, o pistoleiro Pat Garrett – é ele, aliás, quem desmascara o passado misterioso do protagonista em seu programa de TV (numa ótima cena), desafiando-o também em local público já como Garrett. E o mais interessante é que em todas as fases, independente do estilo musical adotado, Dylan nos presenteia com excelentes canções, enquanto Haynes jamais tenta chegar a uma conclusão sobre quem foi este genial artista, criando um painel complexo que só fomenta as discussões sobre sua personalidade.

Dono de uma mente perturbada, mas igualmente criativa, Bob Dylan é certamente um dos maiores nomes da história da música e da arte, inspirando grupos que se dedicam exclusivamente a estudar os significados de suas ótimas canções. Conseguindo sucesso na exposição das várias faces deste gênio da música, “Não estou lá” representa não apenas um ousado projeto cinematográfico, mas também uma deliciosa viagem pela vida de um artista realmente fascinante. “Eu posso ser um ao amanhecer e outro completamente diferente no fim do dia”, diz Bob Dylan. O filme que ele inspirou também pode.

Não estou lá foto 2Texto publicado em 19 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

PERFUME: A HISTÓRIA DE UM ASSASSINO (2006)

(Perfume: The Story of a Murderer)

5 Estrelas

Filmes em Geral #1

Dirigido por Tom Tykwer.

Elenco: Ben Whishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Karoline Herfurth, Rachel Hurd-Wood, Ramón Pujol, Corinna Harfouch e a voz de John Hurt.

Roteiro: Andrew Birkin, Tom Tykwer e Bernd Eichinger, baseado em livro de Patrick Süskind.

Produção: Bernd Eichinger.

Captar em imagens e som o sentido do olfato sempre foi um grande desafio para o cinema e conseguir realizar este feito é apenas um dos diversos pontos positivos deste grande filme, dirigido por Tom Tykwer.

Adaptado do livro homônimo de Patrick Süskind, o roteiro de Andrew Birkin, Bernd Eichinger e do próprio Tom Tykwer narra à estória de Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whinsaw). Nascido em Paris no período pré-revolução industrial e abandonado pela mãe ainda bebê, descobriu muito jovem que contava com um olfato extremamente aguçado, uma capacidade ímpar de distinguir os mais diversos odores mesmo que estivesse distante deles. Inconformado após não conseguir manter o cheiro que mais lhe atraiu em sua vida, ele decidiu tentar aprender as técnicas para captar e preservar os cheiros que quisesse. Após passar por um período de aprendizado com o decadente perfumista Giuseppe Baldini (Dustin Hoffman), parte em busca de experimentar as técnicas que aprendeu na tentativa de manter os mais diversos odores, inclusive de seres humanos.

Logo no inicio somos apresentados ao ambiente hostil em que Grenouille cresceu. Sempre com a câmera próxima, Tykwer nos mostra inicialmente imagens de peixes dilacerados, ratos e toda sujeira da feira livre de Paris, o que faz o espectador imaginar e praticamente sentir o péssimo odor daquele local. Para demonstrar o poder do olfato de Grenouille, ele faz travellings através dos objetos e pessoas, como na cena em que ele sente pela primeira vez o cheiro de uma bela moça. A câmera chega tão próxima das pessoas que praticamente entra dentro delas. A fotografia nesta primeira etapa da vida de Grenouille é suja, sempre com cores tristes como cinza e marrom predominando na tela. Os figurinos sem vida e a atmosfera suja da cidade ajudam a criar este clima triste nesta etapa do filme. Quando ele deixa Paris e parte para cumprir sua missão a fotografia se torna mais alegre, com cores vivas predominando como o verde.

A atuação de Ben Whishaw é bem convincente, demonstrando a obsessão de Grenouille em aprender a explorar melhor o seu talento. Repare como ele repete em tom baixo os nomes até então desconhecidos que o famoso perfumista Baldini pronuncia em seu treinamento, como quem tenta memorizar algo que lhe é novo. Abandonado pela mãe e odiado pelas outras crianças em sua infância, ele se torna um adulto que mal consegue viver em sociedade, vendo o mundo de uma forma totalmente diferente das outras pessoas. Na verdade ele não só vê o mundo, ele sente o mundo através de seu olfato. Quando é vendido a Baldini ele sorri sutilmente no canto da boca, demonstrando satisfação contida por atingir seu objetivo. Este mesmo sorriso aparece na cena em que o cachorro de uma de suas vitimas reconhece o cheiro de sua dona nas mãos de Grenouille, comprovando que sua técnica obteve sucesso. Dustin Hoffman também está bem como o famoso e ultrapassado perfumista Baldini. Ao conseguir a fórmula que procurava através de Grenouille ele dispensa o rapaz sem ao menos experimentar o resultado final, mas quando ele sai, repare na feição do ator demonstrando enorme prazer e satisfação por ter em suas mãos o perfume desejado. Neste momento, o movimento de câmera ao redor de Baldini com flores ao fundo e música nos dá a exata sensação de prazer que ele sente, numa escolha acertada do diretor. Alan Rickman tem uma atuação segura como Antoine Richis, o pai da moça que Grenouille busca para completar sua obra.

Ao deixar Baldini e partir para uma nova etapa de sua vida, Grenouille passa a buscar os 13 componentes que precisa para criar a fórmula perfeita, baseada no cheiro de corpos femininos. Só que para manter o cheiro das belas moças ele precisa matá-las. E assim como John Doe em Se7en, Grenouille acredita que sua obra tem uma importância muito maior do que as pessoas que precisam ser sacrificadas por ela. O filme aqui já apresenta um clima mais próximo do que o título sugere, criando momentos de enorme tensão e expectativa, como na cena que se passa nos jardins do palácio e principalmente no excelente plano onde podemos ver Grenouille à espera da filha de Antoine Richis que se aproxima, em uma das escuras vielas de Paris. Veja como o perfeito enquadramento do plano nos permite acompanhar os lentos passos da moça e observar ao mesmo tempo as reações dele à sua espera.

Mas é o final do filme que o eleva ao status de grande obra, ao abrir uma série de questões e possibilidades (e se você ainda não viu o filme pare por aqui). Seria Grenouille um anjo (ou um salvador), enviado para libertar as pessoas de seus medos e pudores? Repare como todos aqueles que se despedem dele acabam ficando mais tristes, e muitos deles inclusive morrem. Sua presença, e principalmente a presença de sua obra, libertou as pessoas para uma nova realidade de prazer e realização, como na surreal cena de sexo entre milhares de pessoas ao ar livre. Reforça esta tese o fato de Grenouille não possuir cheiro, como ele mesmo nota em certo momento. Além disso, Grenouille tem um comportamento atípico desde o seu nascimento, resistindo a uma séria de ataques de outras crianças de forma incomum. E quando deixa este mundo, o faz de maneira igualmente atípica, simplesmente desaparecendo. Outro ponto de vista é de que Grenouille sequer teria existido, sendo apenas um mito criado em torno dos assassinatos ocorridos na cidade e que acabou ganhando o status de lenda para algumas pessoas daquela comunidade, como apresentado através da voz do narrador (John Hurt, excelente, assim como em Dogville). Desta forma, criam-se duas correntes: uma daqueles que acreditam que Grenouille existiu, fez a fórmula perfeita, inspirou o sexo em massa e desapareceu. E outra daqueles que acham que ele jamais existiu, que nada daquilo realmente aconteceu e que as moças foram assassinadas por outra pessoa, que teria sido justamente enforcada, num paralelo interessante com o que acontece hoje em dia com Jesus Cristo, que também jamais teve cientificamente sua existência comprovada.

Misturando momentos de tensão com metáforas e simbolismos, Perfume é um filme acima da média que abre diversas possibilidades de interpretação de forma inteligente, o que é sempre interessante para aqueles que buscam mais do que apenas entretenimento no cinema.

Perfume

Texto publicado em 22 de Junho de 2009 por Roberto Siqueira