(Eyes Wide Shut)
Videoteca do Beto #226
Dirigido por Stanley Kubrick.
Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Todd Field, Leelee Sobieski, Madison Eginton, Alan Cumming, Jackie Sawiris, Vinessa Shaw, Christiane Kubrick e Leon Vitali.
Roteiro: Stanley Kubrick e Frederic Raphael, com base em livro de Arthur Schnitzler.
Produção: Stanley Kubrick.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Último filme do genial Stanley Kubrick, “De olhos bem fechados” dividiu público e crítica na época do seu lançamento. Com uma atmosfera perturbadora, narrativa lenta e, como de costume na filmografia do diretor, abrindo diversas possibilidades de interpretação, o longa parece um tanto difícil, especialmente por abordar temas polêmicos e, principalmente, por sugerir uma sensualidade e erotismo que jamais chegam a se concretizar. Por isso, a sensação provocada no espectador que cria expectativa é de frustração, mas o fato é que mais uma vez Kubrick entregou uma obra complexa, instigante e repleta de simbolismos, que permite debates acalorados sobre os temas levantados em suas duas horas e meia de projeção.
Baseado no livro de Arthur Schnitzler, Kubrick desenvolveu o roteiro ao lado de Frederic Raphael, acumulando ainda a produção e, obviamente, a direção do longa. Como de costume, ele aproveita o material de origem para levantar questões complexas através de decisões sutis que nem sempre são perceptíveis ao grande público. Assim, cabe ao espectador interpretar algumas cenas para desenvolver sua linha de raciocínio – o que é sempre ótimo. Basicamente, “De olhos bem fechados” nos apresenta ao casal formado pela curadora de arte Alice (Nicole Kidman) e pelo médico Bill Harford (Tom Cruise) momentos antes de uma festa de gala promovida pelo milionário Victor Ziegler (Sydney Pollack). Durante a festa, ambos flertam com pessoas desconhecidas, o que leva a uma discussão acalorada no dia seguinte, na qual ela confessa ter sentido atração por outro homem no passado. À partir daí, Bill parte numa jornada por um mundo desconhecido e simultaneamente fascinante e assustador.
Logo na primeira cena, vemos a bela Alice se despindo de costas para a câmera até que, logo após ela ficar completamente nua, a tela escureça completamente, num enquadramento que simula um olhar curioso e, justamente por isso, coloca o espectador na posição de voyeur – o que, além de indicar um dos temas do filme, ainda funciona como o primeiro momento em que o erotismo é interrompido. Somada a olhada rápida dela para o espelho na única cena em que troca carícias com o marido, esta sequência inicial é essencial para compreender uma das chaves da narrativa – ou ao menos explicar uma linha de raciocínio possível. Mais pra frente, a revelação do sonho envolvendo pessoas a observando numa orgia reforça a ideia do voyeurismo e de quebra levanta a probabilidade dela ao menos ter curiosidade pelo tema, ainda que possa ser apenas um desejo sexual e nada mais. Esta complexa relação entre sonho e realidade, entre desejo e rotina, será o ponto central de “De olhos bem fechados”.
O tema dos desejos frustrados surge já na festa inicial, regada a champanhe e frequentada pela alta sociedade, na qual Alice e Bill flertam com pretendentes, chegam ao limite, mas jamais concretizam a traição. Os tons dourados que dominam a festa e as roupas elegantes escolhidas pela figurinista Marit Allen criam um cenário repleto de pompa que surge como o contraponto ideal para a sequência vindoura que Bill viveria, numa espécie de transposição do desejo carnal não realizado para o local onde ele poderia se concretizar, também numa festa da alta sociedade, mas agora distante das formalidades daquela que abre o filme. Secretamente, a elite podia se despir (sem trocadilhos) das convenções sociais e mergulhar nos mais primitivos desejos. Enquanto na festa inicial as pessoas falam, falam e quase nunca concretizam seus desejos, no ritual secreto as palavras mal são pronunciadas, deixando espaço apenas para o corpo agir em busca de seu prazer.
Adotando uma estrutura narrativa quase investigativa, Kubrick mantem o espectador grudado na tela enquanto acompanha Bill sendo sugado por aquele mundo misterioso, nos deixando tão curiosos, fascinados e assustados quanto ele. Assim, se no primeiro dia temos a sensação de estarmos descobrindo um universo novo através dos olhos dele, no dia seguinte, quando ele passa pelos mesmos lugares, acompanhamos seu acerto de contas com a surreal noite anterior compartilhando os mesmos questionamentos do personagem. Empregando movimentos de câmera suaves e elegantes, Kubrick cria uma atmosfera de pesadelo, reforçada pelos diálogos lentos e pela montagem de Nigel Galt, que cria uma narrativa episódica, conduzida sem pressa alguma pelo diretor. Ainda assim, as principais características da carreira de Kubrick estão presentes. Os enquadramentos perfeitos, as imagens impactantes e até mesmo o uso do plano-sequência, que aqui surge rapidamente antes da entrada de Bill no apartamento de um paciente falecido no qual será beijado pela filha dele e, com maior duração, no passeio pela orgia secreta que abordaremos em mais detalhes em instantes.
Sempre exigente na direção de atores, Kubrick extrai mais uma vez atuações marcantes, com destaque entre o elenco secundário para a jovem Leelee Sobieski na surreal cena dentro de uma loja de fantasias, na qual sua presença quase hipnótica como a filha do dono rouba nossa atenção sem que ela precise dizer quase nenhuma palavra. Sydney Pollack também convence como o rico amigo de Bill que o convida para a festa e Todd Field tem importante participação como o pianista que introduz Bill aquele mundo secreto.
Demonstrando coragem para surgir nua muitas vezes, Nicole Kidman tem uma boa atuação como Alice, ganhando destaque especialmente nas discussões com o marido e até mesmo na cena em que eles dois surgem drogados (criticada por alguns) que, apesar de algum exagero, convence. No diálogo mais importante do filme, Kidman demonstra muito bem o ressentimento de Alice com a visão de mundo do marido, questionando tabus e convenções sociais extremamente machistas ao afirmar que a mulher tem tantos desejos quanto o homem, escancarando que às vezes elas são mais comedidas apenas em função das limitações impostas pela sociedade. E aqui, vale observar como o tom azulado atrás dela já indica a melancolia que tomará conta da personagem após a revelação, enquanto o vermelho que domina o cenário atrás de Bill indica o caminho da paixão carnal e do “pecado” que ele irá seguir a partir dali. Após fumar maconha e abordar um assunto delicado que traz à tona segredos bem guardados, a tensão toma conta da narrativa enquanto Alice revela seus pensamentos eróticos, especialmente pela boa performance dos atores e pelos closes de Kubrick que ampliam esta tensão.
No entanto, a boa performance de Kidman é superada pela atuação memorável de Cruise. Com mais tempo de tela e a responsabilidade de carregar a narrativa, o ator demonstra bem os conflitos de Bill e a aflição dele ao caminhar por um terreno desconhecido e lidar com o misto de curiosidade e medo diante daquilo tudo. Atormentado sempre que pensa na esposa com outro, algo reforçado pelo uso do preto e branco que simboliza sua angústia, ele decide partir em busca dos próprios desejos sufocados pela rotina da vida conjugal, mas sempre hesitante diante da culpa que, talvez inconscientemente, não deixa ele concretizar a traição – ao menos não sexualmente, já que ele tem um beijo roubado em certo momento. Curioso também é notar como ele não hesita em usar o fato de ser médico para conseguir o que quer, numa falta de ética que, por outro lado, reforça a necessidade de lembrar sua verdadeira identidade diante daquele universo que estava descobrindo.
Após a revelação da esposa, o predomínio de tons escuros, a roupa preta de Bill e a noite conferem um clima mais pesado à narrativa, reforçado pelo uso da música clássica – outra marca da carreira de Kubrick, aliás. E então, após a conversa com seu amigo pianista num bar, somos levados a sequência mais misteriosa de “De olhos bem fechados”, repleta de simbolismos e cercada de mistério. Trabalhando em riqueza de detalhes como só um perfeccionista como Kubrick poderia fazer, o diretor cria uma atmosfera incrivelmente misteriosa nos instantes prévios à festa secreta, nos levando para dentro do ambiente com a mesma sensação de aflição e ansiedade do protagonista. A extraordinária trilha sonora de Jocelyn Pook começa a martelar em nossa cabeça (especialmente a música “Backwards Priest”, executada no sentido inverso como nos rituais de magia negra) enquanto vemos Bill descobrindo aqueles corpos cobertos de roupas pretas, as máscaras venezianas e o líder vestido de vermelho no centro daquele ritual ocultista ocorrido dentro do antigo palácio Mentmore Towers – que, não por acaso, ficou marcado justamente pelas orgias em festas mascaradas da elite na vida real. Enfeitado com adereços que criam o clima perfeito para o ritual (design de produção de Les Tomkins e Roy Walker), o ambiente se torna ainda mais impactante pela iluminação magistral do diretor de fotografia Larry Smith, que realça o círculo central onde as belas jovens serão despidas antes de seguirem com seus parceiros para os outros cômodos do local.
As palavras da música pronunciadas ao contrário confirmam a intenção de soar como algo profano e o som das batidas do cajado no chão, reforçado pelo silêncio das pessoas, aumentam a sensação de aflição no espectador, criando a atmosfera de pesadelo defendida por algumas linhas de interpretação do filme. Para completar, a trilha sonora exótica que acompanha os travellings pelo salão repleto de pessoas transando e o mistério reforçado pelo uso das máscaras provocam um estranhamento que se mistura a curiosidade tanto do protagonista quanto do espectador. Da mesma forma, seu julgamento após ser descoberto provoca a mesma agonia na plateia, numa cena em que a tensão palpável quase salta da tela, tamanha a competência da direção de Kubrick.
Mas se tecnicamente “De olhos bem fechados” é perfeito, tematicamente o longa é ainda mais complexo, especialmente pelos simbolismos espalhados por Kubrick por toda a narrativa. Enquanto os espelhos funcionam como uma válvula para Alice enxergar quem ela verdadeiramente é, o arco-íris, que surge primeiro nas palavras das belas jovens que cortejam Bill e depois na fachada da loja de fantasias, representa a passagem da terra para o céu, a caminhada de Bill do lado de cá para o lado de lá, onde, segundo as jovens, seus desejos se realizariam. Some a isso todos os símbolos ocultos que permeiam o ritual da elite e temos um prato cheio para diversas interpretações.
No entanto, o fato é que o prazer sempre é interrompido na narrativa, evidenciando um dos temas centrais de “De olhos bem fechados”, que é o citado conflito entre a realidade e o sonho, o desejo carnal e as fantasias eróticas em contraposição à rotina da vida conjugal. Seria possível viver uma relação sem dar vazão às próprias fantasias ou este sufocamento leva as pessoas a imaginarem e sentirem desejos incontroláveis fora dali? Tudo que ocorre naquela noite é envolto em um ar de mistério. Por isso, até o diálogo revelador com o amigo Victor que parece solucionar o enigma na realidade também permite diversas leituras. Apesar de fazer todo sentido, não necessariamente precisamos acreditar naquela versão. Kubrick não quer entregar uma solução fácil e nos permite diversas interpretações, dentre elas aquela que afirma que tudo não passa de um sonho do médico – e que não descarto, apesar de não concordar totalmente com ela.
Apesar da crise provocada pela revelação de Alice e da noite nada comum de Bill, a verdade é que nenhum deles chega de fato a transar com outra pessoa, ainda que as marcas da intenção de ambos de trair fiquem. Por isso, a conclusão da narrativa é perfeita e, curiosamente, constata um dos fatores que levou muitos dos fãs a se decepcionarem – especialmente aqueles que esperavam cenas tórridas do casal do momento na época. Após conversarem muito sobre tudo que viveram naquelas lúdicas 48 horas, Alice diz para Bill que eles precisavam urgentemente transar. Depois de tantas tentativas sem sucesso de ter algum prazer carnal, estava na hora deles resolverem este problema.
Escolhendo um casal extremamente famoso para protagonizar uma narrativa que envolve mistério, temas polêmicos e ainda questiona a rotina das relações conjugais, Kubrick não seguiu pelo caminho mais fácil e, mais uma vez, entregou uma obra capaz de levantar inúmeros questionamentos e reflexões. Assim, “De olhos bem fechados” acaba sendo a conclusão perfeita de uma carreira genial, ainda que soe melancólico justamente por marcar o fim da linha para um diretor extremamente talentoso e corajoso. Uma pena que o cinema tenha perdido Kubrick tão cedo.