DE OLHOS BEM FECHADOS (1999)

(Eyes Wide Shut)

5 Estrelas 

 

Videoteca do Beto #226

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Todd Field, Leelee Sobieski, Madison Eginton, Alan Cumming, Jackie Sawiris, Vinessa Shaw, Christiane Kubrick e Leon Vitali.

Roteiro: Stanley Kubrick e Frederic Raphael, com base em livro de Arthur Schnitzler.

Produção: Stanley Kubrick.

De olhos bem fechados[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Último filme do genial Stanley Kubrick, “De olhos bem fechados” dividiu público e crítica na época do seu lançamento. Com uma atmosfera perturbadora, narrativa lenta e, como de costume na filmografia do diretor, abrindo diversas possibilidades de interpretação, o longa parece um tanto difícil, especialmente por abordar temas polêmicos e, principalmente, por sugerir uma sensualidade e erotismo que jamais chegam a se concretizar. Por isso, a sensação provocada no espectador que cria expectativa é de frustração, mas o fato é que mais uma vez Kubrick entregou uma obra complexa, instigante e repleta de simbolismos, que permite debates acalorados sobre os temas levantados em suas duas horas e meia de projeção.

Baseado no livro de Arthur Schnitzler, Kubrick desenvolveu o roteiro ao lado de Frederic Raphael, acumulando ainda a produção e, obviamente, a direção do longa. Como de costume, ele aproveita o material de origem para levantar questões complexas através de decisões sutis que nem sempre são perceptíveis ao grande público. Assim, cabe ao espectador interpretar algumas cenas para desenvolver sua linha de raciocínio – o que é sempre ótimo. Basicamente, “De olhos bem fechados” nos apresenta ao casal formado pela curadora de arte Alice (Nicole Kidman) e pelo médico Bill Harford (Tom Cruise) momentos antes de uma festa de gala promovida pelo milionário Victor Ziegler (Sydney Pollack). Durante a festa, ambos flertam com pessoas desconhecidas, o que leva a uma discussão acalorada no dia seguinte, na qual ela confessa ter sentido atração por outro homem no passado. À partir daí, Bill parte numa jornada por um mundo desconhecido e simultaneamente fascinante e assustador.

Logo na primeira cena, vemos a bela Alice se despindo de costas para a câmera até que, logo após ela ficar completamente nua, a tela escureça completamente, num enquadramento que simula um olhar curioso e, justamente por isso, coloca o espectador na posição de voyeur – o que, além de indicar um dos temas do filme, ainda funciona como o primeiro momento em que o erotismo é interrompido. Somada a olhada rápida dela para o espelho na única cena em que troca carícias com o marido, esta sequência inicial é essencial para compreender uma das chaves da narrativa – ou ao menos explicar uma linha de raciocínio possível. Mais pra frente, a revelação do sonho envolvendo pessoas a observando numa orgia reforça a ideia do voyeurismo e de quebra levanta a probabilidade dela ao menos ter curiosidade pelo tema, ainda que possa ser apenas um desejo sexual e nada mais. Esta complexa relação entre sonho e realidade, entre desejo e rotina, será o ponto central de “De olhos bem fechados”.

O tema dos desejos frustrados surge já na festa inicial, regada a champanhe e frequentada pela alta sociedade, na qual Alice e Bill flertam com pretendentes, chegam ao limite, mas jamais concretizam a traição. Os tons dourados que dominam a festa e as roupas elegantes escolhidas pela figurinista Marit Allen criam um cenário repleto de pompa que surge como o contraponto ideal para a sequência vindoura que Bill viveria, numa espécie de transposição do desejo carnal não realizado para o local onde ele poderia se concretizar, também numa festa da alta sociedade, mas agora distante das formalidades daquela que abre o filme. Secretamente, a elite podia se despir (sem trocadilhos) das convenções sociais e mergulhar nos mais primitivos desejos. Enquanto na festa inicial as pessoas falam, falam e quase nunca concretizam seus desejos, no ritual secreto as palavras mal são pronunciadas, deixando espaço apenas para o corpo agir em busca de seu prazer.

Alice se despindoAlice e Bill flertam com pretendentesCenário repleto de pompa

Adotando uma estrutura narrativa quase investigativa, Kubrick mantem o espectador grudado na tela enquanto acompanha Bill sendo sugado por aquele mundo misterioso, nos deixando tão curiosos, fascinados e assustados quanto ele. Assim, se no primeiro dia temos a sensação de estarmos descobrindo um universo novo através dos olhos dele, no dia seguinte, quando ele passa pelos mesmos lugares, acompanhamos seu acerto de contas com a surreal noite anterior compartilhando os mesmos questionamentos do personagem. Empregando movimentos de câmera suaves e elegantes, Kubrick cria uma atmosfera de pesadelo, reforçada pelos diálogos lentos e pela montagem de Nigel Galt, que cria uma narrativa episódica, conduzida sem pressa alguma pelo diretor. Ainda assim, as principais características da carreira de Kubrick estão presentes. Os enquadramentos perfeitos, as imagens impactantes e até mesmo o uso do plano-sequência, que aqui surge rapidamente antes da entrada de Bill no apartamento de um paciente falecido no qual será beijado pela filha dele e, com maior duração, no passeio pela orgia secreta que abordaremos em mais detalhes em instantes.

Sempre exigente na direção de atores, Kubrick extrai mais uma vez atuações marcantes, com destaque entre o elenco secundário para a jovem Leelee Sobieski na surreal cena dentro de uma loja de fantasias, na qual sua presença quase hipnótica como a filha do dono rouba nossa atenção sem que ela precise dizer quase nenhuma palavra. Sydney Pollack também convence como o rico amigo de Bill que o convida para a festa e Todd Field tem importante participação como o pianista que introduz Bill aquele mundo secreto.

Demonstrando coragem para surgir nua muitas vezes, Nicole Kidman tem uma boa atuação como Alice, ganhando destaque especialmente nas discussões com o marido e até mesmo na cena em que eles dois surgem drogados (criticada por alguns) que, apesar de algum exagero, convence. No diálogo mais importante do filme, Kidman demonstra muito bem o ressentimento de Alice com a visão de mundo do marido, questionando tabus e convenções sociais extremamente machistas ao afirmar que a mulher tem tantos desejos quanto o homem, escancarando que às vezes elas são mais comedidas apenas em função das limitações impostas pela sociedade. E aqui, vale observar como o tom azulado atrás dela já indica a melancolia que tomará conta da personagem após a revelação, enquanto o vermelho que domina o cenário atrás de Bill indica o caminho da paixão carnal e do “pecado” que ele irá seguir a partir dali. Após fumar maconha e abordar um assunto delicado que traz à tona segredos bem guardados, a tensão toma conta da narrativa enquanto Alice revela seus pensamentos eróticos, especialmente pela boa performance dos atores e pelos closes de Kubrick que ampliam esta tensão.

Presença quase hipnóticaTom azulado atrás delaVermelho atrás de Bill

No entanto, a boa performance de Kidman é superada pela atuação memorável de Cruise. Com mais tempo de tela e a responsabilidade de carregar a narrativa, o ator demonstra bem os conflitos de Bill e a aflição dele ao caminhar por um terreno desconhecido e lidar com o misto de curiosidade e medo diante daquilo tudo. Atormentado sempre que pensa na esposa com outro, algo reforçado pelo uso do preto e branco que simboliza sua angústia, ele decide partir em busca dos próprios desejos sufocados pela rotina da vida conjugal, mas sempre hesitante diante da culpa que, talvez inconscientemente, não deixa ele concretizar a traição – ao menos não sexualmente, já que ele tem um beijo roubado em certo momento. Curioso também é notar como ele não hesita em usar o fato de ser médico para conseguir o que quer, numa falta de ética que, por outro lado, reforça a necessidade de lembrar sua verdadeira identidade diante daquele universo que estava descobrindo.

Após a revelação da esposa, o predomínio de tons escuros, a roupa preta de Bill e a noite conferem um clima mais pesado à narrativa, reforçado pelo uso da música clássica – outra marca da carreira de Kubrick, aliás. E então, após a conversa com seu amigo pianista num bar, somos levados a sequência mais misteriosa de “De olhos bem fechados”, repleta de simbolismos e cercada de mistério. Trabalhando em riqueza de detalhes como só um perfeccionista como Kubrick poderia fazer, o diretor cria uma atmosfera incrivelmente misteriosa nos instantes prévios à festa secreta, nos levando para dentro do ambiente com a mesma sensação de aflição e ansiedade do protagonista. A extraordinária trilha sonora de Jocelyn Pook começa a martelar em nossa cabeça (especialmente a música “Backwards Priest”, executada no sentido inverso como nos rituais de magia negra) enquanto vemos Bill descobrindo aqueles corpos cobertos de roupas pretas, as máscaras venezianas e o líder vestido de vermelho no centro daquele ritual ocultista ocorrido dentro do antigo palácio Mentmore Towers – que, não por acaso, ficou marcado justamente pelas orgias em festas mascaradas da elite na vida real. Enfeitado com adereços que criam o clima perfeito para o ritual (design de produção de Les Tomkins e Roy Walker), o ambiente se torna ainda mais impactante pela iluminação magistral do diretor de fotografia Larry Smith, que realça o círculo central onde as belas jovens serão despidas antes de seguirem com seus parceiros para os outros cômodos do local.

Pensa na esposa com outroPredomínio de tons escuros, a roupa preta de Bill e a noiteRitual

As palavras da música pronunciadas ao contrário confirmam a intenção de soar como algo profano e o som das batidas do cajado no chão, reforçado pelo silêncio das pessoas, aumentam a sensação de aflição no espectador, criando a atmosfera de pesadelo defendida por algumas linhas de interpretação do filme. Para completar, a trilha sonora exótica que acompanha os travellings pelo salão repleto de pessoas transando e o mistério reforçado pelo uso das máscaras provocam um estranhamento que se mistura a curiosidade tanto do protagonista quanto do espectador. Da mesma forma, seu julgamento após ser descoberto provoca a mesma agonia na plateia, numa cena em que a tensão palpável quase salta da tela, tamanha a competência da direção de Kubrick.

Mas se tecnicamente “De olhos bem fechados” é perfeito, tematicamente o longa é ainda mais complexo, especialmente pelos simbolismos espalhados por Kubrick por toda a narrativa. Enquanto os espelhos funcionam como uma válvula para Alice enxergar quem ela verdadeiramente é, o arco-íris, que surge primeiro nas palavras das belas jovens que cortejam Bill e depois na fachada da loja de fantasias, representa a passagem da terra para o céu, a caminhada de Bill do lado de cá para o lado de lá, onde, segundo as jovens, seus desejos se realizariam. Some a isso todos os símbolos ocultos que permeiam o ritual da elite e temos um prato cheio para diversas interpretações.

No entanto, o fato é que o prazer sempre é interrompido na narrativa, evidenciando um dos temas centrais de “De olhos bem fechados”, que é o citado conflito entre a realidade e o sonho, o desejo carnal e as fantasias eróticas em contraposição à rotina da vida conjugal. Seria possível viver uma relação sem dar vazão às próprias fantasias ou este sufocamento leva as pessoas a imaginarem e sentirem desejos incontroláveis fora dali? Tudo que ocorre naquela noite é envolto em um ar de mistério. Por isso, até o diálogo revelador com o amigo Victor que parece solucionar o enigma na realidade também permite diversas leituras. Apesar de fazer todo sentido, não necessariamente precisamos acreditar naquela versão. Kubrick não quer entregar uma solução fácil e nos permite diversas interpretações, dentre elas aquela que afirma que tudo não passa de um sonho do médico – e que não descarto, apesar de não concordar totalmente com ela.

Os espelhosO arco-írisDiálogo revelador com o amigo Victor

Apesar da crise provocada pela revelação de Alice e da noite nada comum de Bill, a verdade é que nenhum deles chega de fato a transar com outra pessoa, ainda que as marcas da intenção de ambos de trair fiquem. Por isso, a conclusão da narrativa é perfeita e, curiosamente, constata um dos fatores que levou muitos dos fãs a se decepcionarem – especialmente aqueles que esperavam cenas tórridas do casal do momento na época. Após conversarem muito sobre tudo que viveram naquelas lúdicas 48 horas, Alice diz para Bill que eles precisavam urgentemente transar. Depois de tantas tentativas sem sucesso de ter algum prazer carnal, estava na hora deles resolverem este problema.

Escolhendo um casal extremamente famoso para protagonizar uma narrativa que envolve mistério, temas polêmicos e ainda questiona a rotina das relações conjugais, Kubrick não seguiu pelo caminho mais fácil e, mais uma vez, entregou uma obra capaz de levantar inúmeros questionamentos e reflexões. Assim, “De olhos bem fechados” acaba sendo a conclusão perfeita de uma carreira genial, ainda que soe melancólico justamente por marcar o fim da linha para um diretor extremamente talentoso e corajoso. Uma pena que o cinema tenha perdido Kubrick tão cedo.

De olhos bem fechados foto 2Texto publicado em 11 de Abril de 2016 por Roberto Siqueira

BARRY LYNDON (1975)

(Barry Lyndon)

 

Videoteca do Beto #43

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Ryan O’Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Kruger, Steven Berkoff, Leon Vitali, Gay Hamilton, Leonard Rossiter, Marie Kean, Murray Melvin, Frank Middlemass, André Morell, David Morley e Diana Koerner.

Roteiro: Stanley Kubrick, baseado em livro de William Makepeace Thackeray.

Produção: Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

“Barry Lyndon” é acima de tudo um deleite visual. A recriação perfeita de época nos faz ter a exata sensação de que estamos realmente testemunhando aquele período da história da humanidade. Não bastasse isso, o filme ainda traz um belo estudo de personagem, mostrando em detalhes e sem pressa a trajetória de um simples jovem irlandês que alcança o topo da sociedade inglesa. Novamente o gênio Stanley Kubrick brinda o espectador com uma obra maravilhosa, que retrata como poucas o período em que se passa a narrativa e cria imagens que poderiam tranquilamente ser vendidas como quadros valiosos.

Barry (Ryan O’Neal) é um jovem irlandês aventureiro que é obrigado a deixar seu país após vencer um duelo armado, em pleno século XVIII. Nesta trajetória, passa por diversos obstáculos até alcançar a alta sociedade inglesa e tornar-se, através de um casamento com uma viúva local, um dos nobres da região. Mas seu destino não será feito apenas de glórias.

O visual magnífico de “Barry Lyndon” é resultado de um trabalho técnico impecável, comandado com firmeza por Stanley Kubrick, que utilizou quadros daquele período como inspiração. Os figurinos detalhados e idênticos aos utilizados no século XVIII (mérito de Milena Canonero e Ulla-Britt Söderlund), a detalhada e precisa direção de arte de Roy Walker, que recria desde o interior dos castelos aos pequenos detalhes como a arma utilizada nos duelos, e a fotografia deslumbrante de John Alcott, que explora as lindas paisagens e capta com precisão os ambientes internos iluminados somente à luz de velas (graças a uma lente especial feita para a Nasa) são os responsáveis diretos pelo deslumbrante visual do longa. É claro que os enquadramentos milimétricos de Kubrick e seu habitual perfeccionismo estão diretamente ligados ao esplendor visual que deleita os olhos dos espectadores. Até mesmo o zoom utilizado exaustivamente pelo diretor em “Barry Lyndon” é importante, pois nos entrega lentamente aos belíssimos planos, como se fossem verdadeiros quadros renascentistas. Estas obras de arte em movimento parecem praticamente vivas e precisam ser apreciadas lentamente e o zoom nos permite contemplar cada detalhe, como se estivéssemos realmente vendo uma pintura. Pra completar, a maquiagem retrata exatamente os costumes dos homens e mulheres da época, como podemos notar, por exemplo, durante os jogos de cartas ou nos encontros da alta sociedade inglesa, e a bela trilha sonora de Leonardo Rosenman e The Chieftains utiliza flautas e piano para compor melodias clássicas que nos ambientam ainda mais ao período medieval.

Mas “Barry Lyndon” não vive apenas das belíssimas imagens que possui. O roteiro cheio de estilo do próprio Kubrick (baseado em livro de William Makepeace Thackeray) é ácido – quando na voz do narrador – e repleto de diálogos maravilhosos – quando nas vozes dos personagens. Além disso, mostra com competência como era o jogo de interesses na época para aumentar o nível social e as posses da família, como podemos perceber logo no inicio através do casamento arranjado de Nora (Gay Hamilton) e John Quin (Leonard Rossiter) e, posteriormente, com o casamento de Barry e Lady Lyndon (Marisa Berenson). Outra curiosa característica do roteiro é não fazer questão de surpreender o espectador, revelando detalhes importantes com considerável antecedência através do misterioso narrador, que avisa, por exemplo, a futura morte de Bryan (David Morley) e, desta forma, prepara o espectador para o que virá a acontecer, evitando o melodrama. Observe que até mesmo os capítulos revelam o destino de Barry nas duas vezes em que aparecem. A narração, aliás, é um dos destaques do longa, repleta de frases irônicas e satíricas, como quando o narrador explica que o casal Lyndon passa a viver separado para que a mãe cuide das crianças enquanto Barry se encarrega dos prazeres do mundo. O bom humor também se mostra presente nas criativas formas em que Barry encontra para escapar das diversas situações em que se envolve, como quando acidentalmente se depara com os uniformes de dois líderes homossexuais do exército britânico ou quando se passa pelo Chevalier (Patrick Magee) para fugir de Berlim e do exército da Prússia.

Além do humor refinado, Kubrick também faz em “Barry Lyndon” um minucioso estudo de personagem. A transição de um jovem idealista e correto para um homem interesseiro e grosseiro é extremamente lenta e quase imperceptível, graças ao ritmo empregado à narrativa. Desta forma, mal percebemos que Barry sofre tamanha transformação, até porque o personagem jamais é retratado como uma pessoa boa ou má, como a mensagem final faz questão de reforçar. Mesmo quando se mostra um péssimo marido e um homem violento, especialmente contra seu enteado, Barry também demonstra qualidades que o aproximam do espectador, como o fato de ser um excelente pai. A montagem de Tony Lawson é diretamente responsável por manter este ritmo lento e contemplativo do filme, que apropriadamente permite ao espectador se deliciar com as belíssimas imagens que vê. Nem por isso deixa de conduzir a narrativa por muitos anos sem jamais soar episódica (a não ser pela divisão em capítulos), como podemos notar no salto sutil de oito anos da infância de Lorde Bullingdon (Leon Vitali) para a infância de Bryan Lyndon.

A tensa seqüência da saída de Barry da Irlanda, que inicia quando ele atira vinho em John e termina com o tenso duelo armado, é também o inicio da caminhada do jovem irlandês rumo à alta sociedade inglesa. Nesta trajetória, vamos lutar junto com ele e viver cada aventura ao lado do jovem Barry. Observe como Kubrick nos joga dentro da luta quando ele enfrenta um soldado no exército. A câmera agitada, o som dos socos e o barulho das pessoas em volta criam um clima muito real na cena. Interessante notar também como a acidez já citada é ainda mais perceptível nesta fase da vida de Barry, como quando o narrador diz que as razões da guerra não precisam ser explicadas, a não ser por filósofos ou historiadores. Na realidade, este trecho é uma crítica a insanidade da guerra. (“É bom sonhar com uma guerra gloriosa em uma poltrona em casa. Outra coisa é participar dela.”). E se o espectador se sente dentro da narrativa é também por causa do bom nível das atuações. Ryan O’Neal vive Barry Lyndon com sutileza, mantendo um ar misterioso e compenetrado em sua obsessão por alcançar a alta sociedade. Barry é esperto, jamais deixando de tomar o caminho que lhe seja vantajoso, mesmo que tenha que se rebaixar para isso, como quando aceita ser voluntário no exército da Prússia. O’Neal consegue transmitir emoção também nas cenas dramáticas, como em seu choro emotivo ao perder seu padrinho, e principalmente quando perde o filho Bryan. E os destaques não param por aí. Desde o momento em que a troca de olhares entre Barry e Lady Lyndon indica o interesse da moça, Marisa Berenson mostra sua qualidade como atriz, ampliada posteriormente com o crescente sofrimento que a personagem terá de enfrentar, e alcançando seu ponto alto na perda de Bryan e em sua tentativa de suicídio. No restante do eficiente elenco, destacam-se Leon Vitali como Lorde Bullingdon e Frank Middlemass como Sir Charles Lyndon.

O ataque furioso de Barry Lyndon ao jovem Lorde Bullingdon, captado com precisão por Kubrick, desencadeia todas as desgraças que se abatem sobre a vida dele. O eminente título inglês que conseguiria se perde, assim como a estabilidade da família. Pra piorar as coisas de vez, ao presentear seu amado filho, Barry acaba sofrendo a maior perda de sua vida. A tocante cena da despedida de Bryan inicia a seqüência final onde a vida de Barry Lyndon tomará seu destino trágico e deprimente. O reencontro com Bullingdon só fechará este ciclo cruel na vida do irlandês. E seu final, sozinho, pobre e debilitado, não condiz com a interessante vida que ele teve.

Não contente em criar uma visão assustadora do futuro em “Laranja Mecânica” e em possibilitar inúmeras interpretações para o destino da humanidade em “2001, uma odisséia no Espaço”, Stanley Kubrick decidiu também olhar para o passado e fazer um retrato minucioso e absolutamente deslumbrante do século XVIII neste magnífico “Barry Lyndon”. Repleto de planos capazes de tirar o fôlego de qualquer um, este grande trabalho do genial diretor também brinda o espectador com uma intrigante estória, que acompanha a trajetória de um jovem sonhador até sua completa transformação naquilo que mais odiava. E nem por isso podemos dizer que ele era uma má pessoa, pois era apenas um ser humano, com defeitos e virtudes. Exatamente como o diretor de “Barry Lyndon”, chato, perfeccionista, mas dono de um talento assombroso, capaz de deixar na historia do cinema tantas obras marcantes. E Barry Lyndon é mais uma delas.

Texto publicado em 04 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira