ÚLTIMOS DIAS (2005)

(Last Days)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #114

Dirigido por Gus Van Sant.

Elenco: Michael Pitt, Lukas Haas, Asia Argento, Scott Green, Nicole Vicius, Ricky Jay, Harmony Korine, Kim Gordon, Ryan Orion e Thadeus A. Thomas.

Roteiro: Gus Van Sant.

Produção: Dany Wolf.

Últimos Dias[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Nomeado pela mídia como a voz de toda uma geração (talvez a última verdadeira revolução que o rock foi capaz de realizar), Kurt Cobain entrou para a história como outro dos grandes nomes da história da música a morrer aos 27 anos de idade e, o que foi ainda mais chocante, através de um suicídio até hoje repleto de mistérios. Assim, não surpreende que sua história tenha inspirado algumas obras deste então, tamanho o apelo popular que o líder do Nirvana alcançou ao longo dos anos. No entanto, ao tentar imaginar como teriam sido os “Últimos Dias” da vida do cantor, Gus Van Sant optou por uma abordagem difícil, extremamente intimista e que, paradoxalmente, está longe de explorar o potencial popular de seu personagem. Apesar da corajosa escolha, no entanto, o diretor parece ter exagerado no tom respeitoso que adota, criando um filme pesado, é verdade, mas excessivamente frio.

Livremente inspirado em Kurt Cobain, “Últimos Dias” narra os momentos finais de Blake (Michael Pitt), o vocalista de uma banda de sucesso que se isola em sua mansão para tentar fugir das pressões exercidas pela indústria da música, pela imprensa e pelos fãs. Ao lado dos amigos Asia (Asia Argento) e Scott (Scott Green), ele definha lentamente enquanto busca escrever sua última canção.

Responsável pela direção e pelo roteiro, Gus Van Sant estabelece desde cedo à atmosfera melancólica que predomina a narrativa através do visual opaco e da ausência da trilha sonora, nos permitindo acompanhar longas sequências silenciosas e angustiantes que refletem o estado de espírito de Blake, como quando ele assiste televisão caído no chão ou quando mergulha num lago solitário, acompanhado apenas pelo som diegético da cachoeira e, posteriormente, pelo barulho das chamas que ardem na fogueira que o aquece. Quando a trilha sonora de Rodrigo Lopresti finalmente surge, ela emula o som das badaladas do relógio da igreja que ouvíamos em cenas anteriores, anunciando o fim trágico que a narrativa alcançará (e que grande parte do público certamente já sabe antes mesmo do filme começar).

Responsável também pela montagem, Van Sant conduz a narrativa num ritmo propositalmente lento, refletindo a forte depressão que assola o protagonista. Esta sensação incômoda é reforçada também pelas paredes descascadas da casa, pelos objetos velhos e enferrujados como a geladeira (design de produção de Tim Grimes) e até mesmo pelas roupas sujas e sem vida que Blake usa. Os figurinos de Michelle Matland, aliás, são responsáveis por recriar a icônica imagem de Cobain através do visual que marcou o grunge, como a camisa listrada em vermelho e cinza, a calça jeans e os óculos amarelos que o protagonista usa em determinado instante.

Atmosfera melancólicaNo lago solitárioParedes descascadasA fotografia cinza de Harris Savides também contribui ao explorar os dias nublados e as noites escuras e mal iluminadas com competência, criando este visual melancólico que permanece até mesmo nas cenas em meio à natureza, através dos filtros que tiram parte do brilho de locais como o pântano e o lago em que Blake procura se refugiar quando recebe as visitas de Donovan (Ryan Orion). Além disso, nos instantes que precedem o suicídio a fotografia se torna ainda mais sombria, praticamente não permitindo que o espectador veja o caminho que Blake segue até sua casa.

Ocultar, aliás, também é uma estratégia visual do diretor. Evitando mostrar o rosto de Blake na maior parte do tempo e adotando planos distantes que quase sempre mostram as costas do personagem, Van Sant nos distancia daquele homem amargurado, como se não quisesse nos envolver ou criar empatia entre o protagonista e a plateia – algo que fica evidente no longo zoom out que nos afasta da casa enquanto Blake toca uma música. A estratégia é reforçada também pela composição de Michael Pitt, que murmura palavras incompreensíveis na maior parte do tempo devido à sua inflexão na voz, baseando sua atuação na expressão corporal, já que são raros os momentos em que podemos ver suas expressões faciais. Depressivo e constantemente apático, Blake mal sabe o que diz quando recebe a visita de um vendedor das páginas amarelas (Thadeus A. Thomas), falando coisas completamente sem sentido que evidenciam seu estado deplorável, comprovado na bizarra sequência em que ele veste uma roupa feminina e ouve músicas românticas encostado numa porta. É a decadência e o vazio dominando um astro recluso do rock após anos de sucesso, fama e muito dinheiro.

Mas mesmo lesado, balbuciando palavras e mal conseguindo se comunicar, Blake demonstra seu grande talento musical com o violão nas mãos e, ainda que seja difícil compreender o que ele canta, nós podemos sentir a emoção que flui daquela canção. É o talento sobrepondo pela última vez a doença que destruiu aquele homem. Por não ter acesso aos direitos autorais, jamais ouvimos qualquer canção do Nirvana em “Últimos Dais”, mas esta bela “Last Days” cantada por Blake num quarto escuro faz clara alusão ao estilo marcante de Kobain de cantar. Além disso, Van Sant inclui óbvias referências à Courtney Love ao mencionar a mulher distante da qual Blake sente falta e que ainda exerce forte influencia sobre ele. E os próprios créditos fazem questão de ressaltar a fonte de inspiração da narrativa.

Icônica imagem de CobainInstantes que precedem o suicídioGrande talento musicalCompondo outro plano distante que nos permite ver o jardineiro iniciando seu trabalho à direita e o corpo de Blake caído dentro da casa à esquerda, Van Sant anuncia de maneira respeitosa que seu protagonista está morto. Sem jamais julgar o personagem ou justificar seus atos, ele nos permite sentir o peso da depressão que o devasta, mas, por outro lado, nos distancia tanto do protagonista que nós praticamente não sentimos sua perda. Nós realmente nos importamos com sua morte (estou me referindo ao personagem e não ao ícone Kobain)? A resposta pode variar, e como atestado de qualidade narrativa isto não é um bom sinal.

Assim, “Últimos Dias” cumpre sua proposta e nos permite acompanhar os momentos finais de um ícone do rock, mas jamais permite um envolvimento maior do que este de espectador, nos afastando um pouco mais da narrativa do que eu pelo menos gostaria. Respeitar o ícone é bom, mas talvez Van Sant tenha exagerado. E olha que eu sou um grande fã do Nirvana.

Últimos Dias foto 2Texto publicado em 17 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira