IRREVERSÍVEL (2002)

(Irreversible) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #6

Dirigido por Gaspar Noé.

Elenco: Monica Bellucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, Philippe Nahon, Jo Prestia, Stéphane Drouot, Mourad Khima, Jean-Luis Costes e Gaspar Noé.

Roteiro: Gaspar Noé.

Produção: Christophe Rossignon.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucas vezes me senti tão angustiado e incomodado por um período tão longo de tempo durante um filme como nesta impressionante obra dirigida pelo argentino Gaspar Noé. Durante 54 minutos somos bombardeados com uma dose cavalar de agonia e pura tensão, causando quase uma sensação de taquicardia. Poucas vezes também me senti tão impotente e incapaz, já que no decorrer da estória, meu coração ia se acalmando pelo ritmo cada vez menos angustiante da narrativa, mas sempre com o pensamento cruel de que o destino daquelas pessoas era irreversível.

Alex (Monica Bellucci) é a atual namorada de Marcus (Vincent Cassel) e ex-namorada de Pierre (Albert Dupontel). Os três convivem numa boa, apesar de esporádicas demonstrações de ciúme – como numa conversa dentro do metrô – até que um crime brutal altera o destino de todos eles para sempre.

Surpreendente desde o início, Irreversível apresenta os créditos da produção antes mesmo da primeira cena e, posteriormente, narra de forma invertida (do final pra o início) como uma pessoa normal pode se transformar no mais cruel assassino quando impulsionado pela paixão e pelo desejo de vingança. Ao percorrer este caminho, o espectador será surpreendido com duas cenas violentas, chocantes e incrivelmente realistas e terminará com a estranha sensação de alívio pelo que vê, misturada com uma angústia pelo que ele sabe que irá acontecer na vida daquelas pessoas.

Os primeiros minutos de Irreversível são muito difíceis de suportar, em grande parte por mérito de Noé, que utiliza uma câmera inquieta, que se movimenta aleatoriamente, fazendo até mesmo círculos e chegando a ficar de ponta-cabeça, além de diversas vezes utilizar um close em lâmpadas acesas que contrasta fortemente com o escuro ambiente. Auxiliado pelo ótimo trabalho de som, que simula o barulho de uma sirene aumentando e diminuindo o volume, e pela fotografia avermelhada, o espectador tem uma crescente sensação de náuseas que faz a cena parecer um pesadelo. Contribui também o ambiente extremamente pesado e incomodo dentro de uma boate gay, com cenas explícitas e uma linguagem extremamente ofensiva. Esta inquietação reflete também o estado mental de Marcus, que está completamente atordoado, fora de si. O diretor também demonstra sua capacidade ao controlar esta angústia que o espectador sente, diminuindo esta sensação na medida em que o filme vai passando (e a estória vai voltando). Noé é responsável também, ao lado de Benoît Debie, pelo excelente trabalho de direção de fotografia que é extremamente importante durante todo o filme, refletindo o estado psicológico dos personagens. Após o início obscuro e avermelhado, a fotografia passa a ser grossa e granulada na cena do ataque dentro da boate, o que ilustra bem o ambiente sujo e o momento obscuro que Marcus e Pierre estão vivendo. Já quando eles são perseguidos por travestis, a câmera de mão (handycam) cria o ar documental necessário à cena, o que a torna muito mais realista e tensa. Na casa de Alex e Marcus a fotografia é mais limpa, destacando a cor branca, e a câmera já se movimenta lentamente, o que nos dá uma sensação de paz. A trilha sonora também é extremamente diferente ao longo do filme, mudando de uma trilha pesada e alta no inicio (e até mesmo na festa heterossexual) para uma música romântica e lenta no lar do casal. Gradualmente o filme vai retirando aquele clima tenso e o trabalho em conjunto de direção, montagem e direção de fotografia é diretamente responsável por isto. Finalmente, Noé é inteligente até em pequenos detalhes, como nos interessantes movimentos de câmera em que ele circula objetos (sirene e a mangueira no jardim) no sentido anti-horário, o que é coerente com a narrativa que volta no tempo. A excelente montagem (também responsabilidade de Noé) acerta ao separar a narrativa em grandes blocos, o que evita confundir demais o espectador, já preocupado em remontar a história em sua cabeça. Completando o excelente trabalho técnico, podemos destacar o extraordinário resultado alcançado pelos efeitos visuais, como na cena do ataque com o extintor que cria o rosto do ator sendo massacrado com perfeição.

O excelente roteiro, escrito pelo próprio Noé, tem trechos sutis que refletem no restante da narrativa, como a cena em que Alex diz para Pierre que para ela o importante é saber que está dando prazer para o homem numa relação sexual. Obviamente as palavras dela devem ser corretamente interpretadas, já que na cena mais violenta do filme ela claramente só tem dor (física e psicológica). Em outro momento, Alex conta sobre o livro que está lendo, dizendo que o futuro já está definido e não temos o que fazer a respeito, numa clara alusão à própria estória contada pelo filme. O livro também diz que os sonhos revelam parte deste futuro, o que tem relação com o sonho de Alex sobre o túnel vermelho que se divide em dois. O roteiro coeso também serve de base para as impecáveis interpretações do elenco. Vincent Cassel explora muito bem a enorme transformação de Marcus. Típico machão, ele bebe muito e paquera todas as mulheres em uma festa, mas por outro lado, quando está normal, é um cara atencioso, carinhoso e engraçado. Ele não pensa duas vezes na hora de trair Alex no banheiro desta mesma festa, e ao mesmo tempo, vai até o fim do mundo em busca de vingança quando sua mulher é violentada. Quando Marcus vê Alex ensangüentada (em um incrível trabalho de efeitos visuais), por exemplo, o som do coração e o zoom da câmera refletem a angústia dele e a realista reação de Cassel é extremamente bem captada pelo close de Noé. Observe como ele estava bebendo água e sorrindo e, ao ver Alex, sua mudança no rosto causa um enorme impacto, complementada pelo seu comovente e angustiante choro, jogado em cima dela. Um pequeno detalhe nesta cena mostra como julgamos por aparências, quando uma pessoa comenta: “uma prostituta foi estuprada”. Alex não é prostituta, só estava no lugar errado na hora errada.

Pierre, interpretado com competência por Albert Dupontel, é o oposto do descolado Marcus. Centrado e inseguro, consegue o carinho de Alex, mas talvez pela diferença de gostos entre os dois (ela adora dançar e ele não gosta, por exemplo) não conseguiu manter o seu namoro com ela, se tornando “apenas um amigo”. Observe como Dupontel é hábil ao demonstrar que ainda é apaixonado por Alex através de pequenos detalhes como o seu jeito tímido de dançar com ela na festa, como se evitasse um contato maior para evitar ceder à paixão, e a frase preocupada (“É imprudência!”) que só falamos para pessoas que temos carinho, quando ela está saindo da festa. Pierre é também o personagem que tomará a mais surpreendente atitude, mostrando que até mesmo o mais centrado dos homens pode perder a cabeça em algum momento de sua vida. A cena do extintor é com certeza uma das cenas mais violentas e angustiantes que já presenciei em um filme. Completando o elenco principal, Monica Bellucci oferece uma interpretação segura como Alex, e é o grande destaque do longa. Observe a sutileza com que ela diz para uma amiga na festa que está vivendo um momento especial em sua vida. Posteriormente saberemos que ela está grávida, mas a dica já foi dada aqui. Quando faz o teste de gravidez, ela sai do banheiro lentamente, senta, coloca a mão na boca e, levantando os olhos, dá um sorriso. Ainda com a mão na boca, Bellucci dá um suspiro, apóia os cotovelos no joelho e pensa, olhando para o nada. Lentamente ela vai mudando para um olhar mais sério e uma feição de quem está pensativa, demonstrando que está ciente da grande mudança que estaria para acontecer na sua vida. Esta detalhada composição de Bellucci mostra o misto de alegria e preocupação tão comum neste momento. Em seguida ela acaricia a barriga, num movimento típico de quem sabe que está carregando um filho. Mas é na longa e angustiante cena do estupro que Bellucci demonstra todo o seu talento. Cometendo um erro típico das pessoas que estão com raiva, Alex age sem pensar e sai sozinha da festa, recusando o pedido do embriagado Marcus de acompanhá-la. E neste caminho ela irá encontrar o cruel destino que infelizmente estava reservado pra ela. Confesso que mesmo com a absurda cena do extintor, o momento que mais me incomodou foi esta longa cena do estupro, este crime abominável que é cometido contra a mulher. Nesta cena Noé fixa a câmera no chão, como se nós fossemos testemunhas impotentes do terrível ato de violência. E a interpretação de Bellucci é simplesmente perfeita, com as mãos trêmulas, os gritos e os olhos arregalados nos transmitindo com perfeição o tamanho de sua dor e desespero.

O final de Irreversível causa um interessante contraste de sentimentos no espectador. Ao ver Alex com a mão na barriga, Noé faz um travelling que passa pelo quadro de “2001 – Uma Odisséia no espaço”, numa alusão ao filme de Kubrick, que pode ser interpretada como uma referência ao ser que está sendo criado dentro da barriga dela, assim como o bebê do quadro. A referência se repetirá no final com as imagens em preto e branco piscando na tela, o que remete a outro momento de 2001, com a diferença de que lá eram imagens psicodélicas. Ao sair pela janela, o plano termina no jardim, com Alex lendo o citado livro e muitas crianças correndo em volta dela. A fotografia é colorida (toalha laranja, grama verde) e a câmera começa a girar no sentido horário em volta da mangueira, como se fosse o relógio voltando para a realidade. Esta bela cena nos causa uma sensação de alívio, ao ver aquela moça em paz, sonhando com o futuro, num ambiente tão tranqüilo. Porém, as imagens em preto e branco e a frase final “O tempo destrói tudo” nos faz voltar para a triste realidade, lembrando que o final daquela estória era mesmo irreversível. Alex, Pierre e Marcus teriam suas vidas destruídas em ambientes semelhantes, dentro de um corredor vermelho (eles quando entram no Rectum e ela quando entra na passagem subterrânea) e nós não podemos fazer nada a respeito.

Extremamente incômodo e desagradável, Irreversível é o tipo de filme que dificilmente queremos ver novamente. Ao mesmo tempo, é um exemplo claro de que um filme pode ser competente sem necessariamente ser agradável. O impacto provocado pelas cenas realistas, a qualidade das interpretações e a ótima direção nos garantem um filme impecável, que nos obriga refletir sobre importantes questões, mesmo que utilize o choque para isto. É inevitável o sentimento de desconforto quando o filme termina, mas com o passar do tempo, percebemos que é inegável também a grande qualidade da obra.

Irreversivel 

Texto publicado em 17 de Setembro de 2009 por Roberto Siqueira

4 comentários sobre “IRREVERSÍVEL (2002)

  1. Lygia Falco 9 maio, 2012 / 3:45 pm

    Olá, Roberto.

    Este realmente é um filme desagradável mas com um grande conteúdo.
    Gostaria de dividir um momento interessante da cena do estupro que provavelmente passou batido por muitas das pessoas que o assistiram.
    No momento em que ela está sendo cruelmente estuprada no túnel vermelho, talvez no meio da cena (não me lembro ao certo), no fundo do túnel aparece uma pessoa, que visualiza aquela crueldade acontecendo, se vira e vai embora.
    Talvez tenha sido o momento em que senti maior impotência e raiva. Saber que alguém esteve presente naquele situação devastadora e não fez nada.

    Gostaria apenas de dividir esse e saber sua opinião.

    A propósito, parabéns pela crítica.

    Lygia Falco.

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    • Roberto Siqueira 9 maio, 2012 / 11:45 pm

      Olá Lygia,
      Obrigado pela visita, pelo elogio e pelo comentário. Adorei!
      Sobre o momento mencionado, é verdade, e infelizmente é algo comum de acontecer, já que as pessoas vivem com medo e raramente “se arriscam” numa situação destas. Por isso, devemos louvar atitudes como daquele jovem que tentou impedir uma agressão à um mendigo.
      Abraço.

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  2. Rivaben 18 setembro, 2009 / 11:09 am

    Fala Beto,

    Algumas considerações:

    1 – Muito boa a percepção da câmera girando no sentido horário e anti-horário, não tinha me atentado a isso

    2 – Depois de um tempo, apesar do incomodo provocado, você vai querer assistir o filme de novo e de novo… é uma obra prima!

    3 – Na minha opinião, a alusão a Kubrick e seu 2001 também pode ser associada a um contexto maior: a mensagem sobre a irreversibilidade das coisas. Sinto que Noé brinca com o espectador mostrando que 2001 também anteviu algo irreversível (o domínios dos computadores na vida humana, por exemplo?)

    Ótima análise.

    Parabéns,

    Abs,

    Riva

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    • Roberto Siqueira 18 setembro, 2009 / 7:50 pm

      Obrigado pelos comentários Riva. Realmente, quem gosta de bons filmes, vai querer ver novamente, mesmo com o incomodo provocado. Muito boa sua observação sobre o 2001, bem legal!
      Abraço.

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