A FRATERNIDADE É VERMELHA (1994)

(Trois Couleurs: Rouge)

 

Videoteca do Beto #99

Dirigido por Krzysztof Kieslowski.

Elenco: Irene Jacob, Jean-Louis Trintignant, Jean-Pierre Lorit, Teco Celio, Jean Schlegel, Frédérique Feder, Juliette Binoche, Benoít Régent, Julie Delpy, Zbigniew Zamachowski, Samuel Le Bihen e Marion Stalens.

Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz.

Produção: Marin Karmitz.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após falar sobre a liberdade e a igualdade, Krzysztof Kieslowski encerra a excelente trilogia das cores com este “A Fraternidade é Vermelha”, abordando o tema da amizade através da relação sincera entre um juiz aposentado e uma jovem modelo. Mantendo o apuro visual e a sensibilidade dos outros dois filmes, o longa apresenta ainda um fechamento perfeito para a trilogia, que amarra toda a narrativa com elegância e deixa o espectador com a sensação de que toda a jornada realmente valeu a pena.

A modelo Valentine (Irene Jacob) atropela um cachorro e descobre, através do endereço em sua coleira, que o cão pertence a um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant). Ao devolver o animal, ela descobre também que o juiz tem o estranho hábito de escutar as conversas telefônicas de seus vizinhos, o que provoca repulsa na garota. Mas, com o passar do tempo, eles acabaram desenvolvendo uma bela amizade, que passaria por cima dos defeitos de cada um.

Após empregar um tom bastante melancólico em “A Liberdade é Azul” e flertar com o bom humor (na realidade, humor negro) em “A Igualdade é Branca”, Krzysztof Kieslowski equilibra tudo neste “A Fraternidade é Vermelha”, que narra à história da alegre Valentine e do amargo juiz aposentado que ela conhece. E depois da direção econômica de “A Igualdade é Branca”, Kieslowski volta a empregar movimentos de câmera muito elegantes, como os travellings que saem da rua e vão até os apartamentos de Valentine e Auguste (Jean-Pierre Lorit) no inicio do filme e logo após ela sair chorando da casa do juiz, além dos curiosos planos subjetivos que acompanham o som através dos fios de telefone na abertura do longa, indicando a importância deste aparelho na trama, ou o plano do farol do carro dela, momentos antes do atropelamento que mudaria tantos destinos. O diretor cria ainda belos planos, como quando Valentine recusa o beijo do fotógrafo (Samuel Le Bihen) sob o domínio das sombras na tela ou durante o ensaio fotográfico da garota, além de apresentar um interessante movimento de câmera, simulando a queda do livro que ajudou o juiz a passar numa importante prova no passado. E assim como nos filmes anteriores, Kieslowski repete o curioso momento em que uma velinha tenta jogar uma garrafa no lixo. Só que aqui, ao contrário de Karol e Julie, Valentine ajuda a velha senhora, numa ação que reflete sua própria felicidade, o que não acontecia com os outros dois personagens citados. O que a velinha estava fazendo em Genebra se nos outros dois filmes ela estava em Paris? Não importa. Como já afirmei antes, vejo o cinema de Kieslowski como um cinema de sensações. Não precisamos entender certas coisas, apenas sentir. E são as sensações provocadas no espectador e os sentimentos dos personagens que ligam os três filmes, não apenas a história deles.

Mantendo o apuro visual e o rigor estético da trilogia, a excelente fotografia de Piotr Sobocinski obviamente destaca o vermelho neste último filme, completando as cores da bandeira francesa e o lema da revolução. Além disso, a ótima direção de arte espalha pela narrativa diversos objetos vermelhos, como a fachada do café na rua, o carro de Auguste, a saia de Valentine na academia, os assentos do teatro, os detalhes das fotos no ensaio dela e, principalmente, o fundo da foto da propaganda de chicletes protagonizada pela garota. Além disso, a velha e mal cuidada casa do juiz, pouco iluminada e com cores sem vida, reflete a personalidade sombria de seu dono, que fica evidente quando ao ouvir Valentine dizer pra ele que “só falta parar de respirar”, o juiz responde que “é uma boa idéia”. Também mantendo o padrão da trilogia, a trilha sonora de Bertrand Lenclos é bela e econômica, pontuando apenas alguns momentos especiais, como o choro de Valentine após ouvir o juiz falar do problema de seu irmão com as drogas ou quando o tom sombrio da trilha acompanha a escalada de Auguste no apartamento da ex-namorada Karin (Frédérique Feder), momentos antes de vê-la transando com outro pela janela.

Com inteligência, o roteiro escrito por Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz intercala as histórias de Valentine e Auguste, duas pessoas que sequer se conhecem, mas que se cruzam pelo caminho em diversos momentos da vida, e acertadamente mantém o foco da narrativa na garota, o que é mérito também da excelente montagem de Jacques Witta, que emprega um ritmo mais dinâmico que o adotado em “A Liberdade é Azul” e mais lento que o empregado em “A Igualdade é Branca”, reforçando o tom equilibrado de “A Fraternidade é Vermelha”. Desta forma, podemos acompanhar a trajetória da bela Valentine, interpretada por Irene Jacob, que se sai bem com seu jeito dócil, bastante coerente com a espirituosa personagem. Sempre sorridente e apaixonada pelo ciumento namorado Michel (que está viajando), Valentine transforma o velho juiz com seu espírito alegre e a atriz demonstra isto com competência em seu semblante. Esta mudança começa no momento em que Valentine atropela um cachorro, que ela descobriria ser do cético juiz, iniciando um relacionamento que se transformaria numa grande amizade em pouco tempo. Só que a relação não começa bem. Ao descobrir que o juiz escuta as conversas telefônicas dos vizinhos, ela decide contar para um deles (que tem um caso extraconjugal), mas desiste da idéia ao ver a família do homem na casa. Em seguida, o juiz fala sobre os problemas do irmão dela e Valentine desaba, num choro que faria o juiz se arrepender e se entregar, desencadeando diversas mudanças na vida deles e de outros personagens. Jean-Louis Trintignant também está muito bem, demonstrando a amargura do velho juiz em sua voz e seu semblante pesado, se transformando lentamente através do convívio com Valentine. Traumatizado pela profissão que escolheu e pelas decisões que tomou no passado, o juiz tenta justificar sua atitude ao dizer que antes não sabia quem estava certo, mas agora sabe quem tem razão, graças à escuta telefônica. Este trauma fica ainda mais evidente quando ele afirma, numa conversa tocante com Valentine, que poderia ter feito como no caso do marinheiro absolvido (que era culpado), que acabou construindo uma família depois (“Quantos outros eu poderia ter salvado?”, questiona). Mas, de alguma forma misteriosa, o juiz se comove com a reação de Valentine e se entrega, provocando a revolta dos vizinhos, que começam a atirar pedras na casa dele. Só que ele não guarda mágoa. Parece compreender aquelas pessoas e até guarda as pedras, como uma espécie de troféu, que simboliza sua atitude corajosa ao se entregar (“No lugar deles eu faria a mesma coisa”, diz, se referindo também aos que foram condenados por ele no passado). E nestas enormes coincidências da vida (o tema principal da trilogia), a decisão do juiz transformaria também a vida de Auguste, agora formado e responsável por julgar o caso do velho juiz, que, por sua vez, determinou o fim de seu namoro ao decidir se entregar – algo indicado num plano sutil no boliche, quando um travelling para a esquerda revela um copo de cerveja quebrado e o local abandonado (momentos antes, nós acompanhamos Auguste e a namorada combinando a ida ao boliche, mas ele não compareceu e ela acabou conhecendo outro homem).

Como podemos notar, a presença do acaso é ainda mais forte neste terceiro filme da trilogia. O que teria acontecido com todas aquelas pessoas se Valentine não tivesse atropelado o cachorro? Nunca saberemos. Kieslowski parece acreditar que a vida é feita de uma sucessão de coincidências, moldadas por uma força maior, que podemos interpretar como Deus, como destino ou como o que quer que seja. Mas o fato é que nos três filmes, acreditamos estar vendo pessoas reais e não personagens, que enfrentam problemas do cotidiano e que estão sujeitas ao acaso, seja este um acidente de carro, uma amizade feita no metrô ou uma amizade que surge de um atropelamento. E a verdade é que a amizade entre Valentine e o velho juiz se consolida naturalmente, como acontece na vida e não como usualmente acontece nos filmes. A prova da consolidação da amizade acontece quando o juiz vai assistir ao desfile de Valentine, onde uma conversa franca entre eles revelará muito sobre aquele homem. A traição da esposa o deixou amargo, mas, em outra coincidência da vida, o homem que conquistou sua mulher seria julgado e condenado por ele, que se aposentaria logo em seguida. Nesta mesma conversa, a linha tênue entre a amizade e o amor fica evidente quando o juiz diz que talvez não tenha conhecido Valentine na época certa, ao falar dos traumas amorosos do passado. Ao associar a cor vermelha, que simboliza a paixão, ao filme que aborda o tema da amizade, “A Fraternidade é Vermelha” parece dizer que a distancia entre o sentimento de amor e o de amizade não é tão grande assim. São sentimentos que exigem comprometimento, respeito, compreensão, admiração e muitas outras qualidades, e só se diferenciam pela questão da atração física, nada mais.

E assim como no boliche, um close num copo (agora no teatro) indica um evento futuro, revelando a tempestade que se aproxima e que ligará definitivamente os personagens dos três filmes. E da mesma forma que Valentine sabe que o juiz se entregou através de uma notícia no jornal, é no jornal que ele lê sobre a tempestade e a tragédia envolvendo a balsa na qual Valentine viajava no canal da Mancha, que também afundou um iate, com a ex-namorada de Auguste e seu novo parceiro. Observe novamente a sutileza da narrativa ao abordar as surpresas do destino, ao constatar que o sofrimento de Auguste por perder a namorada agora se transformaria em alívio ao descobrir que era ele quem deveria estar no iate ao lado dela. E é aí que a trilogia das cores se torna ainda mais intrigante e a razão para a escolha destas três histórias faz ainda mais sentido, quando os sete sobreviventes do acidente da balsa são anunciados na televisão. São eles: Julie, Karol, Dominique, Olivier, o barman Steven, o juiz Auguste e Valentine. É mágico ou não é? Kieslowski amarra toda a trilogia com elegância e, pra completar, compõe um plano belíssimo com a imagem de Valentine saindo do barco, que remete ao cartaz da propaganda que ela fez e encerra a trilogia das cores.

Tratando de seres humanos, com qualidades e defeitos, e também do acaso (ou destino) que afeta todos nós, a bela trilogia das cores é cinema da mais alta qualidade, destes que não explicam muita coisa, preferindo deixar o espectador interpretar cada obra à sua maneira. Com sensibilidade e competência, Kieslowski fecha sua trilogia nesteA Fraternidade é Vermelha”, questionando os valores da revolução francesa e mostrando que os seres humanos são imperfeitos, mas é justamente nesta imperfeição que está a graça de todos nós, seres capazes de amar e odiar, chorar e sorrir, se alegrar e sofrer. Isto nada mais é do que viver.

Texto publicado em 29 de Junho de 2011 por Roberto Siqueira

A IGUALDADE É BRANCA (1994)

(Trois Couleurs: Blanc)

 

Videoteca do Beto #98

Dirigido por Krzysztof Kieslowski.

Elenco: Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy, Janusz Gajos, Jerzy Stuhr, Aleksander Bardini, Jerzy Trela, Jerzy Nowak, Cezary Harasimowicz, Michel Lisowski e Juliette Binoche.

Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz.

Produção: Marin Karmitz.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após associar a sensação de liberdade à perda no belo “A Liberdade é Azul”, Krzysztof Kieslowski resolveu abordar o segundo tema do lema da revolução francesa, através da história de um casal em separação, formado por uma jovem francesa e por um polonês. Mas, ao apostar numa narrativa mais leve e bem humorada, o diretor faz deste “A Igualdade é Branca” o filme mais fraco da trilogia, o que não significa dizer que o longa não tenha muitas qualidades.

O polonês Karol (Zbigniew Zamachowski) decide voltar à Polônia após se divorciar de sua esposa Dominique (Julie Delpy), com quem vivia em Paris. Apósvoltar à terra natal, Karol consegue ganhar muito dinheiro e decide se vingar da esposa de uma maneira bastante diferente e criativa.

Ao contrário do triste filme inicial da trilogia das cores, este “A Igualdade é Branca” apresenta uma história mais leve, apesar de também conter muitos momentos intimistas, que demonstram a dor de seu personagem principal, um homem completamente apaixonado por sua esposa, mas que não consegue consumar esta paixão sexualmente. Claramente investindo num tom mais cômico, o roteiro escrito pela dupla Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, responsável por toda a trilogia, aborda sutilmente a dificuldade que cidadãos estrangeiros enfrentam tanto em Paris como em Varsóvia (e na maioria das grandes cidades do mundo), como fica evidente na dificuldade tanto de Karol quanto de Dominique quando são interrogados fora de seu país. Quando Karol questiona se o fato de não falar francês é motivo para não ouvir seus argumentos, na realidade o longa está questionando onde está a igualdade pregada pelo lema da revolução francesa. A igualdade existe para aqueles que são iguais, não para os que são diferentes. Só que o lado crítico não tem grande destaque na narrativa, que pende mais para o bom humor que nos outros dois filmes, com muitos momentos de alivio cômico, como quando Karol diz para Mikolaj (Janusz Gajos) sobre sua esposa apontando para um prédio ao sair do metrô e Mikolaj pergunta se sua ex-esposa é “Brigitte Bardot”, por causa do cartaz de “O Desprezo” ao lado do apartamento dela. Além deste momento, podemos citar muitos outros em que o riso contido é inevitável no espectador, como quando Mikolaj diz que havia um amigo dentro da mala extraviada no aeroporto e quando Karol diz que está em casa, após apanhar muito dos homens que roubaram sua mala e o encontraram lá dentro.

Também fugindo um pouco do padrão estabelecido no longa anterior, Kieslowski apresenta uma direção convencional, com poucos movimentos de câmera estilizados, apresentando planos mais discretos e menos inspirados que nos outros dois filmes. Ainda assim, o longa inicia com um curioso plano subjetivo, que acompanha uma mala pelas esteiras de um aeroporto, intercalando com imagens do polonês Karol, que se dirige a um tribunal de Paris, onde será confirmado o seu divórcio, para sua tristeza e dor. Mas nem tudo é tão diferente em “A Igualdade é Branca” e novamente Kieslowski abusa de closes e planos mais fechados, que realçam as reações dos personagens e nos aproximam deles, além de novamente utilizar o close para destacar objetos, como um copo de vodka e uma lista telefônica. Também estão presentes os momentos que remetem aos outros filmes da trilogia, como a rápida aparição de Julie (Juliette Binoche) no tribunal e a velinha que tenta colocar uma garrafa de vidro no lixo, observada atentamente pelo triste Karol, que tinha acabado de se separar e ouvir o banco dizer que seu cartão de crédito expirou. Assim como Julie, ele não tinha forças para ajudar aquela senhora (o que não aconteceria com a protagonista do terceiro filme da trilogia), mas pelo menos Karol notou sua presença, algo que Julie não fez. Auxiliado pela montagem de Urszula Lesiak, o diretor procura manter o foco da narrativa na vida de Karol, deixando Dominique de lado na maior parte do tempo, mas faz questão de ressaltar a importância que ela ainda tem na vida dele através de pequenos momentos simbólicos, como quando Karol beija uma estátua, evidenciando sua solidão numa cena silenciosa e tocante. Aliás, o silêncio predomina grande parte da narrativa graças à ausência da trilha sonora de Zbigniew Preisner, que, por outro lado, sempre que aparece, procura ilustrar os sentimentos dos personagens, como quando embala os felizes amigos poloneses na neve, após a tocante cena em que um tiro de festim tirou a idéia de suicídio da cabeça de Mikolaj. Após o tiro de Karol, ambos estavam aliviados e prontos para seguir em frente, algo reforçado pela fotografia clara de Edward Klosinski, que destaca o branco através da neve. Aliás, mantendo o rigor estético da trilogia, a cor branca tem destaque na maior parte da narrativa, numa óbvia referência ao nome do filme (o que também contribui para o citado clima leve do longa). Ainda assim, Klosinski sabe variar do tom leve para momentos sombrios, como quando Karol caminha sozinho na beira de um rio após chegar à Polônia ou quando ele compra um cadáver para simular a própria morte. E curiosamente, ainda que priorize a cor branca, o visual pouco colorido e os figurinos tristes e sem vida, que normalmente usam cores escuras, mantém uma atmosfera melancólica sob aquela superfície bem humorada, que ilustra bem o personagem principal, feliz e bem sucedido em sua volta à Polônia, mas ainda sofrendo por sua amada esposa.

Interpretada pela bela Julie Delpy, Dominique é a mulher responsável por todo este sofrimento de Karol, que só acontece porque, após o casamento, ele não consegue consumar a relação sexualmente, fazendo com que a jovem exija a separação. Após conseguir o divórcio na justiça, ela se vê livre para buscar outra pessoa, mas ainda tem um último encontro com Karol quando volta pra casa, numa tentativa desesperada daquele homem de manter a mulher que ama – o que não acontece porque ele novamente não consegue transar com ela. Demonstrando bem o quanto Dominique ainda deseja Karol através de seu olhar, sofrendo por não tê-lo como gostaria, Delpy mistura este olhar fatal com um ar de crueldade, evidenciando que ela certamente ama Karol, mas não se conforma com a falta de sexo e por isso decide deixá-lo. Esta crueldade vem à tona quando Dominique geme enquanto conversa com o ex-marido por telefone, deixando clara a razão pela qual o deixou pra trás. Triste e deprimido, Karol acaba pedindo esmola no metrô de Paris e, ironicamente, esta atitude mudaria novamente o seu destino e o de sua mulher, pois será ali que ele conhecerá o amigo Mikolaj. Após retornar à Polônia, Karol decide recomeçar a vida e, mostrando esperteza para lidar com o mundo dos negócios, acaba comprando um terreno antes dos interessados e revendendo por um valor dez vezes maior (“Só preciso de dinheiro”, responde ao ser acusado de ser desonesto), o que lhe permite abrir uma empresa e convidar o amigo Mikolaj, cedendo 30% do negócio pra ele. Momentos antes, ele havia acabado de salvar o amigo, que estava decidido a suicidar-se e desiste da idéia após um disparo com bala de festim, numa bela cena, conduzida em câmera lenta e sem trilha sonora por Kieslowski, que, desta forma, mantém uma atmosfera fria e realista e evita o melodrama. Aliás, a amizade entre Karol e Mikolaj é vital para o sucesso da narrativa é a dupla Zbigniew Zamachowski e Janusz Gajos se sai muito bem na tarefa. Aqueles dois homens sofrem por razões diferentes, e encontram nesta amizade uma força extra para sobreviver (“Todos nós sofremos”, diz Karol, e Mikolaj responde: “Eu sei, mas quero sofrer menos”).

Só que mesmo bem sucedido, Karol ainda pensa em Dominique e sofre por ela, como atesta o momento em que liga somente para escutar sua voz – e Zamachowski demonstra bem a emoção do personagem neste momento, especialmente quando ela desliga e o deixa novamente sozinho. Sem alternativa e desesperado para chamar a atenção dela, Karol decide simular a própria morte e deixar toda sua herança para Dominique, num momento de puro humor negro que novamente atesta o tom leve de “A Igualdade é Branca”. Para isto, conta com a ajuda de Mikolaj, que retribui a ajuda de Karol na hora de sua “morte” (repare que ambos colaboram com a suposta morte do outro, mas nos dois casos eles continuam vivos). Mas quando Karol observa a tristeza de Dominique no enterro, ao invés de se sentir bem (como provavelmente imaginou que aconteceria) ele fica triste, ao constatar que ela realmente o amava e não veio apenas por causa da herança. Por isso, decide aparecer para ela no quarto, provocando um susto enorme na moça, numa cena em que vale destacar a reação verossímil de Delpy ao vê-lo, bastante assustada e confusa com o que está acontecendo. Após o susto, eles se beijam e finalmente fazem amor, num momento em que as sombras tomam conta da tela, chegando a escurecê-la completamente, mas ficando totalmente clara quando Dominique chega ao tão sonhado orgasmo, somente para voltar à escuridãoem seguida. Umplano então destaca as mãos dadas do casal, indicando uma volta da relação que não acontece, porque Karol ainda tinha o desejo de vingança dentro dele. Após o sexo, Dominique dorme em lençóis vermelhos que simbolizam a volta da paixão, mas Karol já havia sumido e armado a prisão da ex-mulher, agora suspeita de participar de sua “morte”, consumando sua vingança (que teve um sabor ainda mais especial porque ela confessou ao amigo Mikolaj que o ama no telefone).

Quando a polícia invade o quarto e prende Dominique por suspeitar de sua participação no “assassinato” do marido, temos também a chave para compreender o tema de “A Igualdade é Branca”. Assim como no julgamento de Karol em Paris, o idioma é uma barreira para Dominique, que escuta as palavras do policial em polonês e é obrigada a aguardar a tradução para o francês, numa situação inversa ao julgamento que determinou a separação do casal. Também sendo discriminada fora de sua terra natal, ela é condenada e vai para a prisão, onde é visitada por Karol a distancia. Só que ao vê-la gesticulando, dizendo que não vai fugir e vai ficar na Polônia com ele, Karol se emociona, comprovando que ainda a ama, assim como ela também o ama. Após a vingança, eles estavam “quites”, estavam “iguais” e livres novamente para amar.

Ligeiramente mais leve que os outros dois filmes da trilogia das cores, “A Igualdade é Branca” mantém as melhores características do cinema de Kieslowski, ao contar com sensibilidade a história de um casal que se ama de verdade, mas que não consegue consumar este amor por diversas situações inusitadas. Novamente, o acaso interfere na vida dos personagens, as imagens falam mais do que as palavras e as sensações transmitidas ao espectador valem mais do que qualquer outra coisa. Novamente, o diretor questiona um dos lemas da revolução francesa, mas não de maneira ácida, preferindo uma forma mais delicada e singela, em outro filme repleto de simbolismos que abre muitas possibilidades de interpretação. E novamente, é o espectador quem sai ganhando. Se Dominique e Karol agora estavam iguais, certamente os cinéfilos têm uma enorme dívida com o grande diretor polonês.

Texto publicado em 26 de Junho de 2011 por Roberto Siqueira