(Mr. Smith Goes to Washington)
Filmes em Geral #105
Dirigido por Frank Capra.
Elenco: James Stewart, Jean Arthur, Claude Rains, Ruth Donnelly, Eugene Pallette, H.B. Warner, Beulah Bondi, Thomas Mitchell, Guy Kibbee, Edward Arnold, Harry Carey e Grant Mitchell.
Roteiro: Sidney Buchman, baseado em história de Lewis R. Foster.
Produção: Frank Capra (não creditado).
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Segundo filme da famosa e bem sucedida parceria entre o diretor Frank Capra e o ator James Stewart, “A Mulher faz o Homem” é também um dos mais notáveis trabalhos realizados por ambos em suas marcantes carreiras no cinema. Mais uma vez trazendo a história de um homem comum que enfrenta os poderosos com sua determinação e moral inabalável, Capra realizou um filme corajoso, que já na década de 30 debatia o conturbado e complexo jogo político e seus bastidores recheados de interesses escusos – um tema que, como sabemos, continua bastante atual.
O roteiro escrito por Sidney Buchman com base em história de Lewis R. Foster nos apresenta a curiosa trajetória de Jefferson Smith (James Stewart), um homem do interior que é convidado a se tornar senador dos Estados Unidos somente porque sua falta de experiência serviria como uma luva para que seus companheiros pudessem levar adiante um corrupto projeto. O problema é que Smith, auxiliado pela inteligente secretária Clarissa Saunders (Jean Arthur), acaba se empolgando com sua posição e propõe outro projeto social que, por ironia, inviabilizaria o primeiro, criando um conflito de interesses que leva o senador Joseph Paine (Claude Rains), um amigo de seu falecido pai, a acusá-lo em plena câmara do senado de se beneficiar do projeto para enriquecer, o que faz com que Smith passe a questionar os valores e os ideais dos líderes de seu país.
Apesar de um garoto dizer em certo momento que Smith é “o melhor americano que nós temos”, os valores norte-americanos tão presentes na filmografia de Capra são questionados em boa parte de “A Mulher faz o Homem”, o que chega a ser surpreendente. É verdade que no final o homem justo e idealista acaba vencendo os poderosos corruptos e a mensagem otimista do diretor ganha força, mas em grande parte do longa a sensação que temos é a de que aquele complexo jogo político realmente seria capaz de minar aquele pobre homem; e o fato é que mesmo saindo vitorioso, Smith certamente não mantém a visão pura e simplista que tinha quando chegou a Washington. Assim, se este suposto ufanismo é aparentemente reforçado pelo clipe que apresenta as estátuas de ex-presidentes dos EUA intercaladas com trechos da constituição e embalado pelos hinos da Inglaterra e dos Estados Unidos na chegada do protagonista à capital, esta reverência à história norte-americana terá reflexo no impecável terceiro ato, quando o próprio Smith questiona onde aqueles valores estavam.
É fascinante também como Capra aborda o jogo de interesses políticos nos bastidores do senado desde o início frenético do longa, quando, auxiliado pela montagem ágil de Al Clark e Gene Havlick, anuncia a morte de um importante senador e, através da maneira acelerada com que a notícia se espalha, evidencia para o espectador a importância daquele cargo para o qual Smith seria escolhido. Observe também como o movimento de câmera que revela a imponente câmara do senado concebida pela direção de arte de Lionel Banks nos insere naquele ambiente sob a perspectiva do protagonista, assim como o lento travelling que apresenta o grande número de pessoas presentes no local, fazendo com que o espectador perceba como aquilo tudo poderia intimidar Smith e forçando nossa identificação com ele.
Da mesma forma, Capra faz questão de engrandecer o Presidente do Senado durante o juramento de Smith, novamente nos colocando em sua posição e fazendo com que o espectador sinta a pressão que o próprio personagem sente por estar ali. O diretor usa a câmera com inteligência também em outros momentos, como numa conversa com Susan, a filha do senador Paine por quem Smith se apaixona, na qual Capra sequer mostra o rosto dele, ilustrando seu nervosismo através de planos de suas mãos mexendo no chapéu, o que só realça a timidez do rapaz.
Refletindo a euforia de Smith e a sua visão romantizada da capital, a fotografia de Joseph Walker prioriza os tons mais claros, o que torna ainda mais triste a sequência em que ele pensa em desistir e voltar para sua cidade, com o personagem afundado nas sombras após voltar ao Memorial de Lincoln e constatar que os valores de seu povo não passavam de ideais distantes da realidade. Por outro lado, observe como as sombras encobrem o rosto de Jim Taylor quando este discute o nome que será indicado para o cargo no senado, num contraste interessante que reforça a estratégia visual adotada. Já o design de som apresenta oscilações ainda mais fortes, especialmente nos debates no senado, o que vira motivo de piada, por exemplo, quando Smith fala pela primeira vez na câmara.
E se de maneira geral as atuações parecem um pouco exageradas (o que era comum na época), alguns nomes conseguem se destacar, como o manipulador Jim Taylor interpretado por Edward Arnold, que impõe respeito com seu corpo avantajado e sua expressão ameaçadora – aliás, é interessante como muitos políticos surgem gordos e envelhecidos, num indício da vida farta e sedentária que levam. Vale citar também o simpático Presidente do Senado interpretado por Harry Carey, que sorri constantemente, mas nem por isso deixa de contar com o respeito de todos, além é claro do imprevisível senador Paine de Claude Rains, que demonstra bem o conflito do personagem diante daquele ambiente obscuro e corrompido. É ele quem protagoniza um dos momentos tocantes do longa, quando explica para Smith que pra conseguir realizar coisas boas na política é preciso se comprometer e jogar o jogo, demonstrando um incômodo que será essencial para que sua mudança de comportamento no final faça sentido. Até por isso, é chocante o momento em que ele acusa Smith no senado e muda o foco dos debates, provocando a investigação do amigo e a proposta de expulsão dele.
Enojada diante deste desgastante jogo de interesses – especialmente após a paixão por Susan ser usada contra Smith – e cansada daquela vida vazia, a determinada Clarissa Saunders vivida com intensidade por Jean Arthur reencontra alguma razão para seguir naquela jornada somente após a chegada de Smith, que, com seu jeito simples e sonhador, devolve os valores outrora perdidos por ela diante de tanta corrupção. Conhecido como a personificação do homem comum, Stewart cai muito bem no papel do interiorano Smith, surgindo com a voz oscilante, gaguejando e evitando o olhar no início, demonstrando estar claramente assustado diante de tantas mudanças repentinas em sua vida.
Talentoso como poucos, Stewart realiza aqui um de seus melhores trabalhos, encarnando muito bem o tipo caipira que chega a cidade grande e se encanta, demonstrando deslumbramento, por exemplo, diante de obras como a estátua de Lincoln ou o Capitólio dos Estados Unidos. Além disso, os diálogos ágeis da maioria dos personagens só reforçam a grande atuação dele, que fala pausadamente no inicio, evidenciando seu deslocamento naquele local e criando uma aura de inocência que, por exemplo, faz a imprensa se aproveitar para espalhar notícias sensacionalistas com base em pequenas declarações, o que leva o protagonista a distribuidor socos e pontapés – num momento crucial que marca a perda da inocência de Smith, que passa a enxergar a dura realidade da política.
Quando Saunders explica o complexo sistema para aprovar um projeto no senado, Smith demonstra fascínio com seu queixo apoiado em suas mãos, enquanto ela demonstra tédio diante de tamanha burocracia. No entanto, com o passar do tempo o idealismo dele emociona a experiente secretária e a empatia entre eles começa a aflorar, assim como os melhores momentos da marcante atuação de Jean Arthur. Repare, por exemplo, como ela convence quando surge bêbada conversando com Diz ou quando revela a verdade para Smith sobre o esquema de propinas que impediria seu projeto de sair do papel. Já na apresentação do projeto ao senado é Stewart quem dá um show, novamente surgindo nervoso com sua voz trêmula e expressão retraída, o que torna sua postura no ato final ainda mais impressionante, quando surge confiante, determinado e se mantém firme até cair exausto após horas defendendo sua posição, numa atuação soberba e digna de aplausos.
Apoiando-se na força de Saunders (daí a origem do inventivo nome do filme em português), Smith encontra forças para defender-se das acusações que sofre no senado, numa batalha comovente que gruda o espectador na cadeira durante todo o eletrizante ato final, quando o poder de Taylor fica ainda mais evidente, controlando a máquina, a imprensa e praticamente todos os integrantes do estado no senado, numa verdadeira luta de gigantes contra um mero cidadão comum – o que, por razões óbvias, força ainda mais nossa identificação com o protagonista e nos leva a torcer por seu sucesso.
Assim, “A Mulher faz o Homem” é um grande filme sobre o complexo jogo de interesses que move a política desde a origem da humanidade. Como podemos perceber, este não é um problema recente, ainda que isto não sirva de desculpa para justificar nossa acomodação diante dos escândalos que de tempos em tempos surgem por aí. Ao que parece, no embate entre o idealismo e os interesses obscuros, foi o primeiro quem levou a pior e ficou esquecido no passado.
Olá, Roberto. Parabéns mais uma vez pela ótima resenha. Como amante de filmes antigos e em p&b, adquiri A Mulher Faz o Homem e o assistindo me deparei com uma obra-prima. Os ideais e sonhos de um homem simples sendo colocados à prova enquanto ele crê na bondade e honestidade política, onde, lentamente vê-se envolvido em um mar revolto. Quero citar o filme A Grande Ilusão onde o protagonista também é interiorano e vence graças às sua inabalável vontade a aos jogos de aparência, diferente do que ocorre com Jefferson Smith, que mantém convicção em seus métodos e caráter.
Grande abraço.
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Olá Janerson,
Obrigado por mais um comentário tão interessante.
Um grande abraço.
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