ADORÁVEL VAGABUNDO (1941)

(Meet John Doe)

2 Estrelas 

 

Filmes em Geral #106

Dirigido por Frank Capra.

Elenco: Gary Cooper, Barbara Stanwyck, Walter Brennan, Edward Arnold, Spring Byington, Gene Lockhart, Sterling Holloway, James Gleason, Rod La Rocque e Regis Toomey.

Roteiro: Robert Riskin, baseado em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr.

Produção: Frank Capra e Robert Riskin (não creditados).

Adorável Vagabundo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Reconhecido pela capacidade de conduzir filmes com mensagens otimistas que ilustravam como poucos o sonho norte-americano daquela época, Frank Capra era um diretor popular, é verdade, mas que tinha também o reconhecimento da crítica justamente pela maneira como utilizava estas características marcantes para realizar bons filmes. Infelizmente, isto não é o que acontece em “Adorável Vagabundo”, longa sofrível estrelado por Gary Cooper e Barbara Stanwyck que, além de narrar uma história extremamente previsível, ainda peca pela abordagem exageradamente melodramática do diretor.

O roteiro escrito por Robert Riskin com base em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr. até parte de uma premissa interessante: após ser demitida pelo novo editor do jornal onde trabalhava, Ann Mitchell (Barbara Stanwyck) publica sua última matéria contando a história de John Doe, um homem amargurado que iria suicidar-se na noite do natal como um protesto contra o que ele achava que estava errado na sociedade. A coluna chama a atenção do público e de toda a mídia, mas o problema é que Ann tinha inventado toda a história e, diante da enorme repercussão da matéria, ela é chamada de volta ao jornal. Após decidirem levar a farsa adiante, eles passam a procurar por alguém que personifique este personagem inventado e escolhem John Willoughby (Gary Cooper), que assume a nova personalidade e passa a rodar o país levando adiante a ideologia criada para o personagem.

Nos primeiros planos de “Adorável Vagabundo”, Capra faz questão de mostrar centenas de pessoas felizes trabalhando ou servindo ao exército, passando a ideia que será à base da narrativa: a força do cidadão comum. Em seguida, a simples troca de uma placa com dizeres sobre a imprensa livre já anuncia a mudança no comando de um jornal que culminará na demissão de todos os 40 funcionários e levará Ann a escrever a matéria que revolucionará o país. E então os diversos problemas do longa vem à tona, a começar por piadas nada inspiradas como no embaraçoso monólogo de Bert (Regis Toomey) na prefeitura e na chegada de John ao jornal, quando um dos presentes diz que não se suicidaria no natal por ser supersticioso.

Capra também erra a mão quando tenta colocar peso dramático na narrativa, apelando para a trilha sonora de Dimitri Tiomkin em diversos momentos desnecessários e acertando em raras ocasiões, como quando a trilha inspiradora embala o momento em que a mãe de Ann entrega o diário do pai contendo o texto que inspiraria o discurso de esperança de John Doe. Aliás, esta abordagem melodramática ganha força no próprio visual do filme. Repare, por exemplo, como Capra e seu diretor de fotografia de George Barnes procuram valorizar os rostos das pessoas comuns, expondo suas imperfeições através da maneira como iluminam as cenas e forçando nossa identificação com eles, até por contrastar diretamente com as cenas dominadas pelos tons mais escuros que acompanham os homens poderosos como Norton (Edward Arnold), o dono do jornal.

Pessoas felizes trabalhandoRostos das pessoas comunsHomens poderososPor outro lado, “Adorável Vagabundo” também tem sua parcela de acertos. É interessante, por exemplo, acompanhar a guerra nos bastidores da imprensa e os interesses de Norton naquela manifestação popular. Repare também como os instantes que antecedem o primeiro discurso de John Doe são tensos justamente pela maneira que Capra conduz a sequência, não permitindo que o espectador antecipe qual dos dois textos ele vai ler – e aqui vale notar o trabalho de Cooper, que gagueja no início, como se não soubesse exatamente o que fazer, mas com o passar do tempo ganha confiança e começa a gostar da reação das pessoas àquelas palavras, falando com mais firmeza e empolgação. Seria uma grande cena, não fosse o conteúdo da mensagem, que joga para o próprio povo a responsabilidade de buscar soluções para a resolução de seus problemas, praticamente isentando os políticos de seus deveres diante da sociedade.

O problema do roteiro está justamente em seu discurso previsível e apelativo, que dificulta bastante o trabalho dos atores, ainda que o elenco tenha gente talentosa como Gary Cooper e Barbara Stanwyck. Vivendo a esperta e ambiciosa Ann, Stanwyck oscila entre bons momentos, como quando se emociona ao ouvir as palavras de seu pai sendo lidas por Doe, e cenas embaraçosas, como aquela que encerra o longa (voltaremos a ela em instantes). Já a atuação mais contida de Gary Cooper cai bem no personagem, um homem simples que é lentamente sugado pra dentro daquele turbilhão e acaba se envolvendo sem perceber exatamente o que estava acontecendo. Repare, por exemplo, como Cooper olha para a comida com desejo e para os objetos de decoração com deslumbramento quando chega ao jornal, saindo-se bem numa das raras vezes em que o longa consegue nos fazer rir, quando Doe está distraído mexendo na estatua de uma mulher nua e se assusta ao ouvir um empolgado “Olá!”, sem notar que Ann havia chegado ao local.

No restante do elenco, Edward Arnold compõe um Norton imponente com sua voz grave e em tom sempre controlado, destacando-se em momentos especiais como o jantar em que presenteia uma desconfiada Ann e anuncia seu plano eleitoral, provocando a mesma reação nela e na plateia: “Uau!”. Além disso, tanto Arnold quanto Cooper têm um bom desempenho na forte discussão entre John e Norton durante a reunião do poderoso dono do jornal com importantes homens da cidade que precede o clímax da narrativa. Mas o grande destaque do elenco vai mesmo para a atuação de James Gleason na cena em que Connell revela o plano de Norton para Doe num bar, soando convincente como um homem amargurado diante de tudo que estava prestes a acontecer e emocionando quando menciona a morte do pai. No entanto, o problema desta cena reside no teor nacionalista e recheado pelo idealismo norte-americano tão comum na filmografia de Capra, evidenciado nas diversas menções do personagem ao “país livre” e à liberdade de expressão.

Primeiro discurso de John DoeSe emociona ao ouvir as palavras de seu paiForte discussão entre John e NortonEssencial para o sucesso de sequências como aquela que acompanha as viagens de John sobrepondo planos e imagens do mapa dos EUA num ritmo empolgante, a montagem de Daniel Mandell é responsável também pela sensação de desconforto causada no tumulto durante a “Convenção John Doe”, obtida através da rápida justaposição de planos e dos próprios enquadramentos confusos de Capra – que, se soam deselegantes, ao menos tem função narrativa. Além do rápido plano geral empregado por Capra que revela o grande número de pessoas no local, o que impressiona durante a “Convenção John Doe” é o design de som, que capta com precisão o burburinho da plateia, a chuva e a distorção do microfone, além da revolta que explode na multidão após os homens comandados por Norton cortarem os microfones e incentivarem as vaias.

Infelizmente, Capra pesa demais a mão no ato final e, além do visual exageradamente escuro da última cena no alto do prédio, o tom carregado pelo melodrama excessivo e a atuação over de Stanwyck criam um dramalhão típico das novelas mexicanas.

Conhecido como um grande defensor dos ideais norte-americanos, o ítalo-americano Frank Capra desta vez pesou a mão e fez deste “Adorável Vagabundo” um longa decepcionante, com uma mensagem óbvia demais e incrivelmente piegas.

PS: A ideologia associada a John Doe torna o assassino de “Seven” ainda mais especial pela ironia que a escolha de seu nome naturalmente carrega.

Adorável Vagabundo foto 2Texto publicado em 22 de Maio de 2013 por Roberto Siqueira

PACTO DE SANGUE (1944)

(Double Indemnity)

 

Filmes em Geral #74

Filmes Comentados #5 (Comentários transformados em crítica em 22 de Novembro de 2011)

Dirigido por Billy Wilder.

Elenco: Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson, Porter Hall, Jean Heather, Tom Powers, Byron Barr, Richard Gaines, Fortunio Bonanova, John Philliber e James Adamson.

Roteiro: Billy Wilder e Raymond Chandler, baseado em livro de James M. Cain.

Produção: Buddy G. DeSilva.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Filme essencial para entender o que é o noir, “Pacto de Sangue” destaca-se pelo envolvente roteiro e pelos fascinantes personagens que povoam o universo obscuro e predominantemente noturno criado por Billy Wilder. Surgido numa época em que o público havia perdido a “inocência” devido aos acontecimentos do período (como a guerra mundial), o filme atingia os anseios de uma platéia que esperava por filmes mais próximos da realidade, com pessoas comuns agindo de formas inesperadas.

Escrito pelo próprio Billy Wilder em conjunto com Raymond Chandler e baseado em livro de James M. Cain, “Pacto de Sangue” narra a história de Walter Neff (Fred MacMurray), um competente vendedor de seguros que é seduzido pela esposa de um cliente, a charmosa Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), e convencido a assassinar o marido dela, tomando ainda o cuidado de fazer o crime parecer um acidente, para que ela possa receber o seguro em dobro. Mas, para isto, eles terão que enganar o chefe de Neff, o astuto Barton Keyes (Edward G. Robinson).

Ao contrário da maioria dos filmes que envolvem um assassinato, “Pacto de Sangue” já inicia revelando quem é o assassino. Isto acontece porque o foco do ótimo roteiro não está no exercício de descobrir quem cometeu o crime, mas sim em revelar como e porque ele cometeu aquele assassinato e o que ele fez para não ser descoberto – “Fiz por dinheiro e por uma mulher. Fiquei sem o dinheiro e também sem a mulher.”, diz Neff. Repleto de trechos deliciosos (“Seu homenzinho lhe tirou da cama?”, pergunta Neff. “Foi o Zelador”, responde Keyes) e sempre num ritmo acelerado, o roteiro apresenta um verdadeiro festival de diálogos marcantes, como o primeiro entre Neff e Phyllis ou o inteligente diálogo expositivo durante a caminhada até o trem, no qual apesar de Phyllis afirmar já saber todo o plano, Neff insiste em repassar cada etapa, o que permite ao espectador saber com antecedência como eles completarão o crime. Repleta de reviravoltas e surpresas, a interessante trama também nos permite acompanhar como funciona a empresa de seguros, que faz de tudo para não pagar o segurado investigando caso a caso com muito cuidado, mostrando ainda o outro lado, através das pessoas que buscam se beneficiar ilicitamente do seguro.

Este cuidadoso filtro é feito por Barton Keyes, interpretado por Edward G. Robinson e que conhece tudo sobre o ramo de seguros. Solteiro, extremamente confiante e viciado em trabalho, ele é o típico workaholic, que não larga sua profissão por nada e sente enorme prazer no que faz. Robinson está perfeito no papel, com falas rápidas que demonstram o conhecimento que Keyes tem do assunto, além de sua enorme confiança e ansiedade. O espectador é apresentado aos seus rígidos métodos de trabalho logo no início, através do caso do motorista do caminhão, que serve para aumentar a tensão quando ele começa a investigar o crime de Neff.

Mas nem mesmo o capcioso Keyes poderia imaginar que entre as pessoas que tentam burlar o sistema de seguros está Walter Neff, seu melhor corretor e profundo conhecedor do negócio. Justamente por conhecer os caminhos, Neff pensa em cada detalhe antes de executar o plano. E é sob a ótica dele que acompanhamos a trama, graças à narração que expõe seu ponto de vista durante toda a história e que é fundamental para que o espectador embarque na narrativa sob a perspectiva do criminoso. Com falas rápidas e muito cinismo, Fred MacMurray tem uma boa atuação na pele de Neff, demonstrando como o corretor vai lentamente se entregando ao plano de Phyllis até finalmente resolver ajudá-la. Repare, por exemplo, como na cena em que o Sr. Dietrichson (Tom Powers) assina o seguro sem saber, ele puxa o papel para ler enquanto fala e, cuidadosamente, Neff puxa o papel de cima de volta para encobrir o que estáem baixo. Atroca de olhares entre Neff e Phyllis neste momento chega a ser assustadora.

Os olhares entre eles, aliás, chamam bastante atenção em outros momentos também, como no primeiro contato, carregado de tensão sexual e que revela a atração mútua quase que imediatamente. O sexo, aliás, também é abordado de maneira sutil por Wilder, na cena em que ela vai pela primeira vez à casa de Neff e consegue convencê-lo a ajudá-la. Repare como ela aparece deitada nos ombros dele e, após um corte para a sala de Keyes, voltamos para a casa dele com Phyllis se maquiando num canto do sofá enquanto ele fuma um cigarro no outro canto. A cena sugere o sexo, mas não mostra nada, e é justamente neste momento que ele decide ajudá-la. Representando muito bem a mulher fatal, Barbara Stanwyck exala sensualidade, mas também se sai bem nos aspectos minimalistas de sua atuação, como quando ela mexe as mãos e evita olhar nos olhos dele ao insinuar sobre o seguro contra acidentes para o marido, demonstrando um nervosismo que denuncia sua intenção de matar o Sr. Dietrichson e receber o seguro desde aquele instante.

E como estamos falando de um film noir, os personagens não podem ser caracterizados como bons ou maus, e esta ambigüidade fica evidente especialmente em Neff e Phyllis. Repare, por exemplo, como inicialmente ele se irrita com a proposta dela (ela nunca fala diretamente, só sugere) e só depois, com a paixão crescente, é que aceita cometer o assassinato. Já Phyllis hesita na hora de cometer o crime perfeito ao descobrir que está apaixonada por Neff, mesmo com ele não acreditando nela. E o próprio Neff hesita na hora de se livrar e incriminar Zachetti (Byron Barr), deixando claro que ele não é uma pessoa ruim, apenas cometeu um erro grave, algo que fica evidente logo após a execução do crime, quando surge nervoso, trêmulo e sem saber como agir (“Coloco óculos ou não?”, se questiona). Por não ser um frio assassino, Neff evita até mesmo o contato com as pessoas, como quando não se posiciona de frente para o Sr. Jackson (Porter Hall) na sala de Keyes – em outro bom momento de MacMurray.

No aspecto visual, “Pacto de Sangue” segue a cartilha imaginaria do noir, com a fotografia obscura de John F. Seitz carregando no contraste entre o preto e o branco, sempre com claro predomínio dos pontos negros na tela, como acontece na cena do assassinato, desde a saída da casa dos Dietrichson até quando Neff e Phyllis saem de carro. Além disso, a trilha sonora de Miklós Rózsa também apresenta um tom obscuro que casa muito bem com a atmosfera do filme – e o beijo entre Neff e Phyllis dentro do carro depois da cena do crime é um exemplo da típica cena do filme noir, com o rosto dos dois encobertos pela sombra e a maior parte da tela em total escuridão.

Conduzindo todo este competente trabalho com firmeza, Wilder ainda cria planos magníficos, como na cenaem que Phyllise Keyes visitam Neff, onde podemos vê-la escondida atrás da porta, com Neff no meio do plano e Keyes em profundidade, conversando com o amigo sem ver a moça escondida. Quando ele se aproxima, a tensão aumenta e a trilha acompanha o momento com precisão. Wilder também insere elementos ao longo da narrativa que deixam a trama ainda mais interessante, como os encontros de Neff com Lola (Jean Heather), o ciúme de Phyllis e o caso dela com Zachetti. Auxiliado ainda pela montagem de Doane Harrison, Wilder conduz com perfeição a cena chave da trama, que é a simulação da morte do Sr. Dietrichson, onde a presença de um homem no fundo do trem só amplia a tensão, também reforçada pela trilha sonora. O clímax sombrio (com a mudança repentina de comportamento de Phyllis) e o encontro entre Keyes e Neff no escritório fecham o longa com perfeição.

“O cara que você procurava estava muito perto Keyes, do outro lado da sua mesa”, diz Neff. “Mais perto que isso Walter”, responde Keyes. “Também te amo Keyes”, conclui Neff. Este diálogo final mostra o quanto eles eram amigos, mas ainda assim Keyes cumpriu o seu dever e entregou Neff para a polícia. A amizade dos dois impediu que Keyes enxergasse a verdade. Com uma narrativa envolvente, personagens fascinantes e uma atmosfera única, “Pacto de Sangue” é um dos legítimos representantes do film noir que mereceram o seu lugar na galeria dos grandes filmes da sétima arte.

PS: Comentários divulgados em 21 de Setembro de 2009 e transformados em crítica em 22 de Novembro de 2011.

Texto atualizado em 22 de Novembro de 2011 por Roberto Siqueira