SHAKESPEARE APAIXONADO (1998)

(Shakespeare in Love)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #188

Vencedores do Oscar #1998

Dirigido por John Madden.

Elenco: Joseph Fiennes, Gwyneth Paltrow, Geoffrey Rush, Colin Firth, Judi Dench, Tom Wilkinson, Ben Affleck, Martin Clunes, Simon Callow, Imelda Staunton, Steven O’Donnell, Tim McMullan, Rupert Everett, Steven Beard, Antony Sher, Patrick Barlow, Sandra Reinton, Nicholas Boulton, Jim Carter e Roger Morlidge.

Roteiro: Tom Stoppard e Marc Norman.

Produção: Donna Gigliotti, Marc Norman, David Parfitt, Harvey Weinstein e Edward Zwick.

Shakespeare Apaixonado[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Num ano em que tivemos tantas produções interessantes, “Shakespeare Apaixonado” está longe de merecer todos os prêmios que recebeu, assim como Gwyneth Paltrow jamais deveria vencer o Oscar de Melhor Atriz concorrendo, entre outras grandes atrizes, com a grande atuação de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”. No entanto, a temporada de premiações não justifica o ódio coletivo que tomou conta de cinéfilos por todo o mundo pelo longa dirigido por John Madden. Criativo, envolvente e com ótimas atuações (sim!), a história fictícia do romance que inspirou William Shakespeare a escrever seu maior clássico é um filme delicioso, que merece ser admirado pelo que é, ou seja, um bom filme e nada mais.

Escrito por Tom Stoppard e Marc Norman, “Shakespeare Apaixonado” nos traz o famoso personagem título (Joseph Fiennes) no auge de uma crise criativa, impossibilitado de escrever sua nova peça que, inicialmente, deveria se chamar “Romeu e Ethel, a filha do pirata”. No entanto, sua inspiração volta com força total quando ele conhece a bela Viola De Lesseps (Gwyneth Paltrow), uma moça da alta sociedade com quem ele vive um intenso romance proibido, que servirá como base para o seu novo trabalho.

Extremamente bem estruturado e criativo, o roteiro de Stoppard e Norman emprega um tom de fábula à narrativa, trazendo um Shakespeare até mesmo engraçado em seu desespero diante do bloqueio criativo que o acomete. Desenvolvendo ainda outros personagens interessantes como a própria Viola e o espalhafoso, mas adorável Philip Henslowe de Geoffrey Rush, o roteiro escorrega apenas ao criar um Lord Wessex extremamente unidimensional e desprezível, deixando pouco espaço para que Colin Firth demonstre seu talento. Já Tom Wilkinson transmite toda a insegurança de Hugh Fennyman antes de sua participação na peça, num momento singelo e tocante que humaniza um personagem até então pouco significativo, enquanto Judi Dench encarna a poderosa Rainha da Inglaterra com autoridade, transmitindo segurança em cada frase pronunciada, numa participação rápida e eficiente que, ainda assim, jamais justificaria o Oscar que ela recebeu.

Espalhafoso, mas adorável Philip HensloweLord Wessex unidimensionalInsegurança de Hugh FennymanRepleto de diálogos elegantes inspirados na obra de Shakespeare, o roteiro utiliza diversos momentos do romance entre o dramaturgo e Viola como inspiração para passagens famosas da história de Romeu e Julieta, como o encontro na sacada e a noite de amor, que surgem logo após ele viver estas experiências com sua musa inspiradora. O texto faz ainda uma curiosa menção a John Webster, dramaturgo contemporâneo de William Shakespeare que se especializou em peças trágicas como “The White Devil” e “The Duchess of Malfi”.

Conduzindo esta narrativa envolvente com segurança, John Madden tem méritos ainda por tornar crível a relação central da narrativa, já que o sucesso deste romance é essencial para que “Shakespeare Apaixonado” funcione. Obviamente, a boa química entre os atores colabora muito neste sentido. Muito menos talentoso que o irmão famoso, Joseph Fiennes confere leveza e carisma ao dramaturgo, saindo-se muito bem em momentos especiais, como quando conta o final da peça num ensaio, no qual a expressão de alívio misturada com ressentimento em seu rosto transmite a satisfação do autor por ter concluído sua obra e, simultaneamente, a aflição do homem por trás do artista por estar perdendo a mulher amada.

Noite de amorDramaturgoDonzela apaixonadaMulher amada que é vivida por Gwyneth Paltrow, que se sai bem como a donzela apaixonada, pronunciando as lindas frases escritas por Shakespeare com fervor e transmitindo os sentimentos da personagem com precisão. E nem mesmo seu disfarce risível compromete sua atuação, já que a narrativa claramente brinca com este aspecto que poderia soar incômodo, como quando o barqueiro afirma que o disfarce dela “não enganaria uma criança” após revelar para Shakespeare que Thomas Kent, na verdade, é uma mulher. Completando o elenco, Ben Affleck tem uma pequena participação como Ned, que vive Mercutio na peça e é também quem sugere o famoso título “Romeu e Julieta”, enquanto Imelda Staunton vive a engraçada Ama de Viola, remetendo à atuação igualmente simpática de Pat Heywood no filme de Franco Zeffirelli.

Ajudando em nossa completa imersão naquele ambiente, a excepcional reconstituição de Londres concebida pelo design de produção de Martin Childs recria as ruas sujas da cidade com precisão e ainda cria ambientes grandiosos como os teatros e a casa de Viola, assim como a figurinista Sandy Powell capricha nas vestimentas portentosas das pessoas da alta classe, contrastando diretamente com as roupas rasgadas e maltrapilhas da fatia pobre da população, utilizando ainda vestimentas nos ensaios da peça que remetem diretamente ao citado clássico “Romeu e Julieta”, de 1968.

Disfarce risívelReconstituição de LondresVestimentas nos ensaiosAtravés da composição dos planos e da paleta de cores escolhida, Madden e seu diretor de fotografia Richard Greatrex também fazem diversas referências visuais a “Romeu e Julieta”, como na cena do baile e na conversa do casal na sacada. Explorando muito bem a beleza dos cenários, a fotografia de Greatrex se sai ainda melhor nas belas cenas noturnas, que ganham um colorido especial graças às escolhas dos diretores, como na conversa entre Shakespeare e Viola num barco, onde os rostos deles surgem iluminados enquanto o restante do plano é dominado pelas sombras. Madden também compõe belos planos na primeira noite de sexo deles, numa clássica cena de amor hollywoodiana que funciona muito bem aqui pelo carisma dos personagens e pelas escolhas estilísticas do diretor.

Ainda na parte técnica, a montagem de David Gamble confere um ritmo agradável ao longa, servindo também para escancarar a fonte de inspiração de Shakespeare ao intercalar cenas do ensaio da peça e do romance deles, numa sequência elegante que funciona ainda melhor graças à trilha sonora delicada de Stephen Warbeck. Outro momento inspirado acontece quando os atores ensaiam o duelo de espadas e são atacados pela turma do outro teatro, passando a misturar ensaio e realidade num balé coreografado com destreza pelo diretor. Nesta mesma sequência, quando Shakespeare e Viola se escondem embaixo do palco e se beijam, repare como o som ao redor praticamente some, num interessante recurso narrativo que ilustra a percepção deles naquele instante. É como se o mundo tivesse parado para que eles curtissem aquele momento.

Conversa entre Shakespeare e Viola num barcoDuelo de espadasSe escondem embaixo do palco e se beijamEmbalada por uma trilha sonora agora sombria, a tragédia toma conta da tela quando Viola descobre a existência da esposa de Shakespeare e, segundos depois, a morte de Marlowe (Rupert Everett) é anunciada, num momento chave da narrativa que começa a preparar o clímax. Esta sensação é ampliada pelo fechamento do teatro e a revelação de que ela é uma mulher no último ensaio, criando o conflito que nos levará ao desfecho empolgante de “Shakespeare Apaixonado”. Preparado com cuidado, o clímax no teatro é conduzido com precisão por John Madden e engrandecido pelas atuações apaixonadas. Assim, quando a interpretação da peça termina e os aplausos surgem efusivos após um breve silêncio, o espectador também está eufórico pela beleza do que vê na tela, num ótimo exemplo de como utilizar clichês com eficiência. Por mais previsível que seja, funciona muito bem.

O final bem amarrado ainda abre a deixa para a próxima obra de Shakespeare conhecida como “Noite de Reis” e protagonizada justamente por uma mulher chamada Viola, o que atesta a qualidade do roteiro, que aproveita muito bem a interessante ideia de misturar a obra de William Shakespeare com acontecimentos fictícios de sua vida pessoal.

Criativo, leve e muito bem interpretado, “Shakespeare Apaixonado” não é o melhor filme de 1998, mas nem por isso devemos fechar os olhos para os seus méritos. Misturando fatos e personagens reais com acontecimentos fictícios, o longa nos diverte com graça e leveza enquanto nos permite acompanhar um verdadeiro gênio em pleno processo criativo. E que sentimento pode nos dar mais inspiração do que o amor?

Shakespeare Apaixonado foto 2Texto publicado em 23 de Março de 2014 por Roberto Siqueira

GÊNIO INDOMÁVEL (1997)

(Good Will Hunting)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #174

Dirigido por Gus Van Sant.

Elenco: Matt Damon, Robin Williams, Ben Affleck, Stellan Skarsgård, Minnie Driver, Casey Affleck, Cole Hauser e John Mighton.

Roteiro: Matt Damon e Ben Affleck.

Produção: Lawrence Bender.

Gênio Indomável[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Matt Damon e Ben Affleck ainda eram apenas jovens em início de carreira quando surpreenderam o mundo do cinema com o excelente e complexo roteiro deste “Gênio Indomável”, longa eficiente dirigido por Gus Van Sant e que conta ainda com atuações inspiradas do próprio Damon e de Robin Williams. Com um protagonista fascinante e outros personagens igualmente interessantes, não é difícil se envolver rapidamente pela narrativa e se importar com a trajetória daqueles personagens tão humanos e, por isso, tão repletos de defeitos e qualidades.

O longa acompanha a trajetória de Will Hunting (Matt Damon), um jovem com facilidade assustadora para resolver equações matemáticas que vive no subúrbio e trabalha como servente de uma importante universidade. Após resolver um complexo problema deixado no quadro negro, o garoto chama a atenção do premiado professor Gerald Lambeau (Stellan Skarsgård), mas uma briga de rua acaba levando-o a prisão. O professor então faz um acordo para conseguir sua libertação, assumindo a responsabilidade pelo garoto e comprometendo-se a ajudá-lo a resolver seus problemas emocionais através do auxilio de um psiquiatra. Depois de algumas tentativas frustradas, cabe ao terapeuta Sean Maguire (Robin Williams) a árdua missão de tentar compreender aquele rapaz.

Escrito por Damon e Affleck, o excelente roteiro de “Gênio Indomável” tem o mérito de trazer em sua estrutura narrativa muito bem desenvolvida uma coleção de diálogos marcantes, como quando Sean relembra como conheceu a amada esposa e em sua divertida recordação sobre as idiossincrasias do casal, sendo responsável também por criar e desenvolver personagens ambíguos e complexos como Will e o próprio Sean. Da mesma forma, mesmo personagens secundário como Chuckie (Ben Affleck), Skylar (Minnie Driver) e o professor Gerald Lambeau ganham espaço suficiente para demonstrarem suas características e se humanizarem diante do espectador, o que só enriquece a narrativa e os aproxima da plateia. Assim, o espectador se vê fisgado pela trama e interessado nos personagens antes mesmo que se de conta de como isto ocorreu.

Ciente de que a força da narrativa se concentra no roteiro e no elenco, a equipe técnica liderada por Gus Van Sant evita chamar muito a atenção, fazendo um trabalho discreto e eficiente. Assim, o diretor de fotografia Jean Yves Escoffier busca realçar tons dourados na maior parte do tempo, especialmente quando Will está raciocinando, numa ilustração visual do quão valioso é o dom daquele garoto iluminado. O amarelo, aliás, está presente em muitas cenas, seja através dos objetos selecionados pelo design de produção de Melissa Stewart para enfeitar o consultório de Sean ou mesmo dos figurinos de Beatrix Aruna Pasztor (repare a camisa de Sean na primeira conversa com Will, por exemplo).

Tons douradosObjetos no consultório de SeanCamisa de Sean na primeira conversa com WillPor sua vez, a trilha sonora de Danny Elfman ressalta o clima melancólico do longa através de suas lindas músicas e de composições instrumentais inspiradas, ao passo em que a montagem de Pietro Scalia imprime um bom ritmo ao transitar entre as sessões e o cotidiano nada glamoroso de Will, alternando também no uso de cortes secos – como ocorre durante um jantar entre Lambeau e Sean no qual de repente surgem os amigos de Will lutando – e transições elegantes, como na sequência em que Will explica porque não trabalharia para a ASN, quando ele começa a falar na empresa e, com seu rosto em close-up, continua o discurso, mas agora já no consultório de Sean.

Cotidiano nada glamorosoWill explica porque não trabalharia para a ASNRosto em close-upVoltando ao elenco, enquanto o dispensável Morgan de Casey Affleck é o bobo da turma, com perguntas idiotas e comportamento infantil, Damon e Affleck (ainda muito jovens) compõem personagens mais complexos, comportando-se como verdadeiros adolescentes às vezes, mas criando um laço de amizade convincente graças à boa química existente entre eles. Criando empatia também com Minnie Driver e especialmente com Robin Williams, Damon tem um desempenho memorável como o genial e emocionalmente descontrolado Will, falando sempre de maneira rápida, mas com clareza e convicção, como na ótima cena do bar em que ele conhece e impressiona Skylar, se impondo intelectualmente diante de um desconhecido e conquistando a garota através de sua rara inteligência. Vivendo um típico underdog, Damon surge sempre reativo, usando sua agressividade como um mecanismo de defesa para tentar afastar o sofrimento causado pela traumática infância.

Genial e emocionalmente descontroladoConhece e impressiona SkylarSempre reativoSomente alguém com talento e conhecimento de causa poderia ser capaz de furar o bloqueio psicológico criado por Will. Numa interpretação contida e minimalista, Robin Williams tem a chance de comprovar seu talento na composição de personagens com grande força dramática, saindo-se muito bem como o terapeuta Sean, o único capaz de compreender o rebelde genial. Com um desempenho sublime, Williams dá um show em diversos momentos, como na bela conversa no parque, na qual a sinceridade de Sean deixa Will sem palavras, ou no instante em que dá sinais de descontrole quando Will menciona sua falecida esposa, transmitindo com precisão o quanto sofre pela morte dela através de sua expressão contida que lentamente cede lugar à explosão furiosa de raiva. Este é o trauma que ele não consegue superar, por isso, Sean e Will se entendem e compreendem um ao outro. Eles são muito parecidos, apenas estão em momentos distintos da vida.

Interpretação contida e minimalistaSinceridade de Sean deixa Will sem palavrasSinais de descontroleJá a simpática Skylar de Minnie Driver raramente consegue transpor a couraça de defesa de Will, mas nem por isso ela desiste dele e o casal até consegue criar empatia em momentos divertidos como a paquera num bar que gera o primeiro beijo. No entanto, as diferenças sociais entre eles (ele, órfão do subúrbio, ela, herdeira de uma boa quantia de dinheiro) acabam gerando uma forte discussão, na qual os dois atores se saem muito bem. Enquanto Driver demonstra o quanto Skylar sofre por não conseguir conter o ímpeto de Will, Damon demonstra de maneira seca o quanto ele pode ser agressivo quando é acuado. Will é um personagem complexo, que tem medo de se relacionar e se ferir e, por isso, é incapaz de dizer que a ama – o que nos leva a tocante cena em que ela segura o choro ao falar com ele por telefone sem conseguir arrancar as três palavras mais desejadas entre os casais.

Paquera num barForte discussãoTocante cena em que ela segura o choroFechando os destaques do elenco, o paternal professor Lambeau vivido por Stellan Skarsgård encontra em Will aquilo que ele não conseguiu ser. Ainda que tenha o reconhecimento de todos por seus conhecimentos matemáticos, ele não conquistou o respeito de quem mais importava: ele mesmo. Frustrado ao ver tanto potencial desperdiçado, Lambeau não consegue esconder sua decepção – e a expressão constantemente abatida de Skarsgård transmite muito bem este sentimento. Na visão dele (e do próprio Chuckie, melhor amigo de Will), é uma pena ver um garoto tão brilhante desperdiçando sua vida. Mas Sean não vê da mesma forma, o que nos leva a uma interessante reflexão sobre o conceito de “sucesso”. Premiado e bem sucedido, Lambeau jamais conseguiu alcançar a paz e a felicidade plena que Sean alcançou enquanto viveu ao lado da mulher amada.

Na condução deste elenco talentoso, Gus Van Sant dirige “Gênio Indomável” com discrição, empregando raros movimentos de câmera ousados, como a câmera lenta que alivia o início da primeira briga de rua dos garotos, tirando parte do impacto que só aparece mesmo no final da cena, além de alguns poucos travellings, como numa conversa entre Sean e Lambeau num bar e especialmente nas tomadas aéreas da cidade. Em todo caso, o diretor tem todo o mérito por extrair boas atuações de grande parte do elenco.

Paternal professor LambeauPrimeira briga de ruaConversa entre Sean e Lambeau num barMas é mesmo no excepcional roteiro de Damon e Affleck que reside o grande trunfo de “Gênio Indomável”. Assim, o final redondo amarra muito bem as pontas soltas da narrativa, concluindo o arco dramático de Will e Sean de maneira plenamente satisfatória na emocionante cena em que o terapeuta convence o garoto que “ele não tem culpa”. Ambos reconheceram suas deficiências. Ambos foram corajosos o suficiente para enfrentá-las. E o mais interessante é que isto acontece de maneira tão sutil que eles sequer percebem o quanto estão mudando.

Sutileza talvez seja a palavra que melhor defina “Gênio Indomável”. Assim como Will Hunting não nota o instante em que começa a mudar, o espectador também não percebe o momento em que é fisgado pela narrativa. Simplesmente acontece.

Gênio Indomável foto 2Texto publicado em 06 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira