O PODEROSO CHEFÃO – PARTE II (1974)

(The Godfather: Part II) 

5 Estrelas

 

Obra-Prima

Videoteca do Beto #10

Vencedores do Oscar #1974

Dirigido por Francis Ford Coppola.

Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Diane Keaton, Robert Duvall, John Cazale, Talia Shire, Lee Strasberg, Michael V. Gazzo, Morgana King, Gianni Russo, Abe Vigoda, G. D. Spradlin, Richard Bright, Gastone Moschin, Tom Rosqui, Bruno Kirby, Frank Sivero, Francesca De Sapio, Marianna Hill, Dominic Chianese, John Aprea, Giuseppe Silato, Mario Cotone, Harry Dean Stanton, Danny Aiello e James Caan. 

Roteiro: Mario Puzo e Francis Ford Coppola, baseado em livro de Mario Puzo. 

Produção: Francis Ford Coppola.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Se a primeira parte da trilogia O Poderoso Chefão destaca-se pelo roteiro incrivelmente coeso, que abrange uma gama enorme de personagens complexos e extremamente bem desenvolvidos, além da absoluta perfeição alcançada em todos os setores da obra, esta primorosa seqüência dirigida com muita competência por Francis Ford Coppola não fica nem um pouco atrás. Além de dar continuidade à maravilhosa trama do primeiro longa, o habilidoso trabalho de toda equipe ainda divide a narrativa em duas estórias paralelas e igualmente atraentes, sugando o espectador de forma inigualável para dentro do filme. O roteiro complexo e cheio de ramificações explora ainda mais o drama psicológico dos personagens e converge mais uma vez para um final perfeitamente bem realizado.

Após a morte de Don Vito Corleone, Michael (Al Pacino) resolveu eliminar de seu caminho todos os problemas pendentes, assassinando todos aqueles que poderiam gerar algum conflito com seus interesses. Decidido a entrar no ramo do entretenimento, ele instala seus negócios em Las Vegas e Havana, através da compra de luxuosos Hotéis e Cassinos. Só que na medida em que seus negócios evoluem e seu sucesso aumenta, ele vai perdendo lentamente o que mais tem valor em sua vida. Paralelamente, acompanhamos a trajetória de Vito Corleone (Robert De Niro), desde sua fuga da Sicília para Nova York até o nascimento de seu filho Michael e sua afirmação como o homem mais poderoso da máfia.

A estrutura narrativa é propositalmente semelhante nos dois filmes. Ambas começam com uma festa em que o líder da família se divide entre dar atenção aos convidados para manter as aparências e resolver os problemas de seu obscuro negócio em sua sala particular. Em seguida, um atentado ao chefe da família é o ponto de partida para uma enorme quantidade de conflitos que serão resolvidos simultaneamente em um terceiro ato maravilhoso e genial. O encontro acontecido em Cuba entre Hyman Roth (Lee Strasberg), Michael e as pessoas mais importantes da região também remete ao primeiro filme, lembrando o encontro dos líderes das famílias mafiosas em Nova York. A diferença aqui é que além da trajetória de domínio de Michael, podemos acompanhar também a chegada de Vito Corleone ainda jovem à Nova York. Desta forma, Coppola cria a oportunidade de mostrar paralelamente e de forma brilhante a vida de pai e filho na mesma época de suas vidas, porém em épocas distintas da sociedade. E é interessante observar que apesar de estarem na mesma idade, eles enfrentam problemas diferentes para manter a sua família. Vito tem sucesso, Michael não. A diferença de épocas fica clara no belo diálogo que Michael tem com sua mãe. Sua frase final (“Os tempos estão mudando”) demonstra sua preocupação com uma possível revolta de Kay (Diane Keaton), que efetivamente acontece depois. Outra novidade nesta segunda parte da trilogia é a ligação entre a trajetória dos Corleone e fatos históricos, como a revolução cubana. Pra finalizar, o excelente roteiro de Mario Puzo e Francis Ford Coppola mantém uma característica muito importante do primeiro filme: as frases marcantes. Para citar apenas duas, temos a frase emocionada de Michael para Fredo (John Cazale): “Eu sei que foi você, Fredo!” e a atordoante revelação de Kay para Michael: “Foi um aborto Michael!”.

A direção de Coppola mantém o nível de excelência do primeiro filme, conduzindo a complexa narrativa com extrema segurança e criando planos absolutamente geniais. Observe como ele cria lentamente a sensacional cena do ataque contra Michael. Após ver o desenho de seu filho, Michael conversa tranquilamente com Kay até que ela pergunta por que as cortinas estão abertas. É a chave para que o espectador pressinta o ataque iminente, sem muito tempo de reação para os personagens que se jogam no chão imediatamente, enquanto os tiros estraçalham o quarto. A habilidade do diretor para criar cenas marcantes é incrível. Se o primeiro filme tem um enorme festival de cenas inesquecíveis, a segunda parte mantém a tradição com louvor. Para citar algumas cenas maravilhosas, temos o ataque de Vito ao “Mão Negra” (Gastone Moschin), a festa inicial para o filho de Michael, o impressionante ataque contra Michael em sua casa seguido pela caça noturna aos atiradores, a chegada à Cuba e a explosão da revolução cubana, a impagável vingança de Vito em plena casa de Don Ciccio (Giuseppe Sillato), a realista e reveladora discussão entre Michael e Kay e a emblemática cena da morte de Fredo no barco, com Michael olhando pela janela.

Coppola também repete o excelente trabalho do primeiro filme na condução de atores, extraindo atuações magníficas do espetacular elenco. Robert De Niro e Al Pacino disputam acirradamente o respeitável posto de melhor atuação do filme. De Niro consegue tornar verossímil o seu jovem Vito Corleone, utilizando inclusive a voz rouca criada por Marlon Brando no primeiro filme. Observe sua reação na engraçada cena em que Don Roberto vem lhe dizer que além de não tirar um inquilino irá reduzir o preço do aluguel. Vito olha para o seu amigo duas vezes como forma de intimidar o cidadão e quando consegue o que queria ele diz “Grazie!” com uma cara cínica de quem já esperava por aquilo. Na cena em que Clemenza (Bruno Kirby) invade uma casa para roubar um tapete, ele pergunta “Essa casa é do seu amigo?” e ao ouvir a resposta, faz um movimento com os lábios típico de quem está impressionado e ao mesmo tempo duvidando da informação. Esta cena, aliás, é o ponto inicial para o envolvimento de Vito com o crime, já que ele quase presencia um assassinato. Na memorável cena da vingança na Itália, ele fica observando de longe, com a blusa no braço e um olhar sério de quem aguarda aquele momento há muitos anos. Quando Don Ciccio brinca com o nome dele, De Niro dá um sorrisinho cínico. Em seguida o homem pergunta o nome do pai dele e De Niro se aproxima e sussurra com a voz rouca “Antonio Andollini, e isto é pra você!” e esfaqueia o homem, saindo correndo em seguida. E finalmente, na maravilhosa cena do assassinato de Don Fanucci, ele é frio o suficiente para matar o homem e se livrar dos vestígios do crime, e De Niro é muito competente quando demonstra essa frieza de Vito, olhando para os lados antes de se jogar a arma fora e saindo naturalmente do local do crime para encontrar sua família. Al Pacino mais uma vez está perfeito como Michael Corleone. Sua transformação em relação ao primeiro filme é evidente. Firme, ele conduz com segurança os negócios da família, que em contrapartida vai se afastando cada vez mais dele, como fica evidente em seu retorno pra casa, quando vê o carrinho de seu filho atolado na neve e a casa vazia. Observe como na cena em que responde para o senador Pat Geary (G.D. Spradlin, brilhante neste embate com Pacino) “minha oferta é esta… nada!”, sua cadeira se move pra trás e pra frente demonstrando sutilmente sua inquietação e raiva. Quando Tom Hagen lhe conta sobre a perda de seu filho, ele respira fundo, muda de uma feição tranqüila para um rosto prestes a explodir, olha pra baixo, mexe com as mãos e finalmente pergunta “Era um menino?”. A resposta vaga de Tom é o estopim para a explosão de Michael que Pacino demonstra com maestria. Quando percebe que foi traído pelo irmão numa apresentação de dançarinas, seu olhar e respiração deixam claro para o espectador sua frustração. E finalmente, no enterro de Mama Corleone, ao abraçar seu irmão, ele olha para uma pessoa presente, e somente este olhar é o suficiente para mostrar que ele não perdoou Fredo. John Cazale é extremamente competente como Fredo, num papel que ganhou muita importância dentro da trama. Sua melhor cena é a discussão final com Michael, quando ele revela toda sua angústia e os motivos de sua traição. Cazale retrata com muita veracidade o sofrimento de Fredo, o irmão mais velho (e preterido) de Michael. Observe como ele altera a voz, olha para o alto, movimenta as mãos e se joga na cadeira ao discutir com o irmão, que se mantém imponente e firme na conversa. A composição visual dos dois no plano demonstra a diferença entre eles, já que Michael se mantém olhando por cima, enquanto Fredo está diminuído na cena.

Diane Keaton está ainda melhor como a amargurada Kay Adams, esposa do mafioso. Lentamente ela se afasta do violento marido e Keaton retrata esta gradual transformação com perfeição. Junto com Pacino, ela cria uma cena maravilhosa que evolui gradualmente para um final trágico na realista discussão dentro do Hotel. Primeiro Kay pede educadamente para que Rocco se retire. Repare que a feição de Keaton vai lentamente se alterando conforme ela vai contando seu plano de ir embora para Michael. Enquanto conversam, Pacino solta o colarinho e depois pega uma bebida. Quando ele grita que não vai permitir que ela vá embora e leve seus filhos, Keaton fixa o olhar no chão e diz “neste momento não sinto amor por você”. Pacino acende um cigarro e diz que eles vão juntos no outro dia. A explosão dela em cena é iminente. Ela range os dentes e Michael diz que sabe que ela o culpa por ter perdido o bebê e que eles vão ter outro filho. Ela olha para o alto, respira fundo e diz: “Michael, oh Michael, você está cego!”. Pacino, que estava tranqüilo e até demonstrando certa pena de sua esposa, começa a mudar seu comportamento. Então, com os olhos cheios de lágrimas, ela revela que não perdeu o bebê, e sim fez um aborto porque não quer continuar com esta relação. Pacino se transforma. Seus olhos arregalam, sua boca treme e sua respiração praticamente para. Ela continua falando e o tapa violentíssimo vem em seguida. Um show de interpretação da dupla, que marca o fim do relacionamento, como comprova a emblemática cena em que Michael fecha a porta na cara de Kay. O homem tranqüilo havia se transformado em um criminoso amargurado e frio. Talia Shire tem um desempenho muito bom como a renovada Connie. Ela se mostra uma mulher liberal, fumando e querendo viajar com o namorado. Superficialmente, ela demonstra ter superado a perda de seu marido, mas em seu coração ela nunca perdoou Michael pelo que ele fez, como fica evidente na conversa que eles têm no inicio do filme. Robert Duvall tem outra boa atuação como Tom Hagen, o paciente conselheiro da família, afastado por Michael em um momento estratégico da trama, mas de suma importância nos negócios da família. Podemos destacar ainda muitos atores do elenco de apoio, como Lee Strasberg fazendo o inteligente Hyman Roth, Michael V. Gazzo como o italianíssimo Frankie Pentangeli, G.D. Spradlin como o cínico senador Pat Geary e Bruno Kirby como o esperto jovem Clemenza.

O ritmo das duas narrativas paralelas é muito bem coordenado pela excelente montagem de Barry Malkin, Richard Marks e Peter Zinner, que cria grandes blocos narrativos em cada período, o que evita tirar o espectador da história constantemente. As transições entre os dois períodos distintos são sempre muito interessantes, como a seqüência que salta da imagem de Vito ainda criança para seu neto Antonio Corleone e a transição de Michael para Vito logo após o diálogo com Mama Corleone, num dos dois planos que Pacino e De Niro dividem no longa. Outra transição interessante corta de Vito e Michael na janela do trem para Mama Corleone morta, com Fredo e Connie aparecendo em seguida, lembrando o espectador que a única coisa que mantinha Fredo vivo era sua mãe. Agora Michael não tinha mais motivos para não matá-lo. A excelente fotografia de Gordon Willis volta com um tom ainda mais escuro e denso. Observe como ele mergulha metade do rosto de Michael e Connie por inteiro nas sombras na cena em que eles conversam sobre uma suposta viagem dela, deixando somente um ponto da tela (o ponto cego) com alguma luz. Outro exemplo é o olho de Vito completamente escondido nas sombras enquanto aguarda Fanucci no prédio. As inúmeras cenas noturnas colaboram com esta sensação de escuridão, como o ataque contra Michael ou o início da revolução cubana. Willis também é extremamente competente na divisão clara entre as duas narrativas, utilizando uma paleta grossa e cores opacas quando narra a vida de Vito, desde sua fuga da Itália até os seus primeiros anos em Nova York, retratando o ambiente hostil e a vida dura que ele tinha. Além disso, a imagem desgastada dá um ar mais antigo às cenas. Repare que a maravilhosa rua da feira livre destaca as cores verde, vermelho e amarelo, porém em um tom sem vida. Willis alterna para uma paleta mais limpa quando narra a vida de Michael, sem deixar de utilizar os ambientes escuros e sombrios nas duas situações. A trilha sonora cria simpáticas variações para a excelente música tema do primeiro filme, como na cena que Michael conversa com seu filho no quarto (onde as notas lembram canções de ninar para bebês) e quando Vito segura Michael no colo e diz que lhe ama muito, ao som da música tema tocada em um violão atrás dele. A maravilhosa Direção de Arte de Angelo P. Graham cria uma Nova York absolutamente incrível. Observe como a citada feira livre é extremamente detalhada, com barracas de frutas cobertas por toldos coloridos, comércio de animais, roupas penduradas nas janelas, sujeira nas ruas e carros da época. Os detalhes também estão presentes nas cidades de Havana, Miami e Las Vegas, dentro dos luxuosos hotéis perfeitamente decorados e nas agitadas ruas da capital cubana, recheadas de crianças pobres. Os figurinos desta vez ficaram sob a responsabilidade de Theadora Van Runkle, que mantém o estilo marcante do primeiro filme no visual dos gângsteres e capricha também no visual da trama paralela, com a típica roupa italiana de Vito Corleone completada pelo tradicional chapéu que Michael também utilizou no primeiro filme.

Assim como no maravilhoso “O Poderoso Chefão”, o terceiro ato de “O Poderoso Chefão – Parte II” também finaliza com perfeição a narrativa. A morte de Fredo acontece simultaneamente ao assassinato de Roth e a descoberta do suicídio de Pentangeli, eliminando mais uma vez os problemas pendentes de Michael. Só que desta vez ele vai refletir amargamente sobre o resultado de suas ações. Observe em particular a composição visual na cena da morte de Fredo. Primeiro Coppola mostra Fredo rezando enquanto Michael olha pela janela. Ao som do tiro, a câmera volta para o barco, agora só com o assassino sentado e os pássaros voando ao fundo. Michael, solitário na janela, chegara ao fundo do poço, sem sua mulher, sem seus filhos e assassinando o próprio irmão. Ao mostrar Michael pensativo e solitário na sala, Coppola salta para o passado, criando uma emblemática e bela cena final. Ao ver Carlo sendo apresentado à Connie, Michael revelando que iria para a marinha e Fredo, Sonny e Tom conversando na mesa, a reflexão que fazemos é como aquele homem tranqüilo se transformou naquele monstro ao final do segundo filme. Pensamos também como aquela família conseguiu cair em tamanha decadência. Com a chegada de Don Vito, Michael fica sozinho na cozinha, assim como está no presente. Só que agora ele está solitário e desolado, pois venceu todos os inimigos, mas perdeu tudo que ele amava, ou seja, a família.

Trabalhando de forma ainda mais intensa o drama psicológico de seus personagens, “O Poderoso Chefão – Parte II” consegue a proeza de ser ainda mais complexo narrativamente que o primeiro filme. A incrível decadência de um homem poderoso e o resultado desastroso de seus atos torna esta segunda parte da saga ainda mais pesada e sombria. Contando novamente com competência na direção, roteiro, atuações e toda a parte técnica, reafirma a excelência do trabalho de Coppola, Puzo, Willis e companhia e garante um lugar eterno no coração daqueles que realmente gostam de cinema. Obra-prima.

 

Texto publicado em 02 de Setembro de 2009 por Roberto Siqueira

O PODEROSO CHEFÃO (1972)

(The Godfather) 

5 Estrelas

 

Obra-Prima 

Videoteca do Beto #9

Vencedores do Oscar #1972

Dirigido por Francis Ford Coppola.

Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, Diane Keaton, Robert Duvall, Richard S. Castellano, James Caan, Talia Shire, Sterling Hayden, John Marley, Richard Conte, Al Lettieri, Gianni Russo, John Cazale, Morgana King, Lenny Montana, Abe Vigoda, Tony Giorgio, Victor Rendina, Alex Rocco, Salvatore Corsitto, John Martino, Simonetta Stefanelli e Al Martino. 

Roteiro: Mario Puzo e Francis Ford Coppola, baseado em livro de Mario Puzo. 

Produção: Albert S. Ruddy.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando a tela escura anunciar “Mario Puzo’s The Godfather” ao som da eterna e maravilhosa trilha sonora de Nino Rota e o personagem Bonasera (Salvatore Corsitto) aparecer na tela dizendo: “Eu acredito na América”, tenha certeza que você está prestes a assistir uma das melhores e mais importantes obras que o cinema já produziu em toda a sua existência. Afirmar algo deste tipo é muito perigoso, já que dificilmente alguém conseguirá ver todos os filmes produzidos desde o inicio da sétima arte. Mas a obra-prima de Francis Ford Coppola é uma proeza técnica e narrativa tão perfeita, além de brilhantemente interpretada, que dificilmente algum filme conseguiu ou conseguirá alcançar o seu nível de excelência ao longo dos anos.

Vito Corleone (Marlon Brando) é o líder da imigrante família italiana que manda e desmanda na cidade de Nova York, através de sua influencia no mundo dos jogos, prostituição entre outras coisas. Através da troca de favores (e de outros métodos mais intimidadores quando necessário), os Corleone conseguem ter ao seu lado todas as pessoas influentes da cidade e, consequentemente, dão as cartas na região. A vida segue tranqüila pra eles até que o gangster Sollozzo (Al Lettieri) oferece aos Corleone uma participação no negócio dos narcóticos em troca de proteção política. Com a recusa de Don Vito, iniciam-se os conflitos entre as famílias e, como conseqüência, inicia-se também a ascensão de Michael Corleone (Al Pacino) de filho protegido e pouco envolvido nos negócios a novo chefe da família mafiosa.

“O Poderoso Chefão” é, acima de tudo, uma proeza narrativa. Criar um roteiro tão complexo, que envolva um número tão grande de personagens importantes e profundamente bem desenvolvidos (basta ver o número de atores que citei no cabeçalho da crítica), amarrando todas as pontas da narrativa ao longo de todo o filme (e muito mais que isso, ao longo de toda trilogia!), é motivo suficiente para considerá-lo uma obra singular na história do cinema. Além destas qualidades, o roteiro conta ainda com inúmeras frases simplesmente geniais e inesquecíveis. Para citar apenas duas delas, temos a famosa fala de Vito Corleone “Vou fazer uma oferta que ele não pode recusar”, repetida depois por Michael ao longo da trilogia, e a fala de Peter Clemenza (Richard S. Castellano, em grande atuação) logo após o assassinato de Paulie (John Martino) no carro: “Leave the gun. Take the cannoli” (no original em inglês), que em português seria “Deixe a arma. Pegue o cannoli”. Esta frase resume perfeitamente a alma dos mafiosos, ou seja, pessoas que não hesitam na hora de matar alguém que atrapalhe o seu caminho, mas que em contrapartida, têm valores familiares muito bem definidos. A comida preparada por sua esposa é tão importante pra ele quanto cumprir a ordem de seu chefe da máfia. Só que, além do maravilhoso roteiro escrito por Mario Puzo e Francis Ford Coppola, o filme ainda conta com um trabalho técnico absolutamente impecável e atuações do mais alto nível, o que faz dele uma obra-prima magnífica e inigualável.

Logo na primeira conversa entre Don Corleone e Bonasera somos introduzidos ao sombrio ambiente da trama. Percebemos que se trata de uma família composta por muitas pessoas que são lideradas por um respeitado senhor conhecido como “Padrinho” e que ouve pacientemente os pedidos de ajuda dos amigos presentes na festa de casamento de sua filha. Sua reação ao pedido do cantor Johnny Fontane (Al Martino, em papel inspirado em Frank Sinatra), gritando e depois beijando o amigo, deixa claro o jeito paternal que ele tem de comandar o grupo. Fica claro também o código de ética do mafioso quando este se irrita com um amigo que só lembra dele para pedir favores. Em outro determinado momento, ele se recusa a tirar uma foto da família sem a presença de seu filho Michael, o que evidencia a importância que aquele filho em especial tem pra ele. Todo este bem trabalhado primeiro ato apresenta cuidadosamente os personagens e servirá de base para o complexo desenrolar da trama, que é extremamente bem conduzida por Coppola. A direção de Copolla, aliás, é perfeita. Observe como suas escolhas de enquadramentos e movimentos de câmera sempre podem significar algo a mais do que simplesmente o que vemos na tela. Um exemplo disso é o momento em que Michael decide se envolver nos negócios da família e cita o plano que tem em mente para se vingar de Sollozzo e do capitão McCluskey (Sterling Hayden). A câmera lentamente se aproxima dele, agigantando-o na tela e demonstrando visualmente o nascimento simbólico do sucessor de Vito Corleone. Neste momento crucial da narrativa, Michael está deixando de ser um personagem secundário para ser o personagem principal da saga e o movimento de câmera traduz isso perfeitamente. O diretor é preciso na criação de planos criativos, como por exemplo na cena da morte de Carlo, captada pela frente do carro e que transmite uma sensação de agonia ainda maior ao espectador que vê os pés da vítima se debatendo no vidro. Coppola também é absolutamente competente na criação de cenas fortes e inesquecíveis. O filme tem uma coleção inigualável de grandes cenas, como o chocante recado dado ao produtor de cinema, a tensa seqüência na porta do hospital e o tocante momento de carinho que Vito e Michael tem dentro dele, o diálogo reflexivo entre os mesmos Vito e Michael na casa deles, a impressionante armadilha contra Sonny (James Caan), a surra de Sonny em Carlo (Gianni Russo) no meio da rua, o bem orquestrado e maravilhoso final da trama ocorrido durante o batizado e que resolve todos os problemas de Michael de uma vez só, e aquela que pra mim talvez seja a melhor cena do longa, o jantar entre Michael, Sollozzo e o Capitão McCluskey em um restaurante.

Coppola também foi extremamente feliz na escolha do elenco perfeito para o filme (e olha que ele teve que enfrentar a resistência dos chefões da Paramount a nomes como Brando e Pacino). As atuações são um show à parte. A começar pela lendária performance de Marlon Brando como o icônico Don Vito Corleone. A perfeição de seu trabalho é tão grande que dispensa qualquer comentário a respeito. Brando consegue criar, antes dos 50 anos de idade e no mesmo ano em que viveu um viril amante em “O Último Tango em Paris”, um perfeito e realista senhor de idade já no fim da vida, através das bochechas inchadas com algodão, do olhar cansado, da sobrancelha cerrada e da voz rouca. Praticamente todas as suas participações em cena são perfeitas e fica até difícil destacar alguma. Em todo caso, repare como sua demonstração de insatisfação é sutil e precisa na cena em que seus filhos contam que Michael assassinou uma pessoa. Vito sabia que aquela notícia alteraria todo o futuro de seu filho. Ele fecha os olhos, acena negativamente com a cabeça, vira o rosto e faz um gesto com a mão para que eles se retirem, sendo prontamente atendido, o que também ilustra o respeito que Don Vito conquistou. Quando Tom Hagen (Robert Duvall, muito bem como o fiel conselheiro e filho adotivo de Vito) lhe dá uma trágica notícia, seu choro contido e seu pedido com a voz embargada pelo fim da guerra transmitem uma emoção inigualável, de uma forma que só um ator do seu gabarito conseguiria fazer. Comovente também é o momento em que ele diz a tocante frase: “Veja como massacraram meu garoto” com a sobrancelha e o semblante refletindo toda sua imensa tristeza. Toda cena em que Brando participa é perfeita, criando um personagem absolutamente inesquecível e inigualável. O outro grande destaque da obra é Al Pacino. Seu Michael, inicialmente alguém que não quer envolver-se nos negócios da família (até por vontade do pai), é um personagem que passa por uma incrível e maravilhosa mudança gradual durante toda a narrativa, e o ator retrata muito bem todo este arco dramático. O diálogo inicial entre Michael e Kay (Diane Keaton, em outra excelente atuação, que aqui, por exemplo, demonstra com sutileza seu espanto com os métodos da família Corleone, ficando boquiaberta e sem palavras, com os olhos arregalados) é o contraponto ideal para a emblemática cena final do longa, mostrando o quão irônica aquela conversa entre os dois se tornou. O tímido e quieto Michael do diálogo inicial com Kay, com cabelo pro lado e tom de voz baixo, se torna uma pessoa extremamente autoconfiante e respeitada ao longo do filme, passando a utilizar um cabelo mais engomado e uma voz muito mais firme. A postura de Michael quando faz a oferta de compra do cassino de Moe (Alex Rocco) é um claro sinal de seu novo estilo, muito mais agressivo. Nesta mesma cena, seu irmão Fredo (John Cazale) defende Moe e Michael fala para Fredo nunca mais se posicionar contra a família (o que refletirá na trama do segundo filme, reforçando a genialidade do roteiro). Pacino demonstra toda a energia de Michael, por exemplo, na brilhante cena do jantar no restaurante. Observe como ele, ao voltar do banheiro com a arma, fixa os olhos em um ponto demonstrando que não está mais preocupado em escutar o que dizem os outros dois personagens presentes. Sua preocupação agora é agir na hora certa, e sua ação eminente se torna palpável, o que torna a cena extremamente verossímil. Ao partir para o ataque sem pestanejar, sua transformação está consumada. Ele é competente também nos momentos de sutileza, como na magnífica conversa que tem com Vito na casa deles. Este diálogo, aliás, mostra de forma muito clara o enorme talento dos dois atores. Observe como Vito pergunta do neto, dá um sorriso de satisfação com a resposta, pede algo que já havia pedido antes e depois percebe que esqueceu, chegando à conclusão de que está ficando velho. Michael escuta atentamente os conselhos do pai, sorri e olha pra baixo quando fala de seu filho e toca carinhosamente seu velho quando pergunta o que está lhe incomodando. Pacino é extremamente competente na árdua tarefa de contracenar com um monstro sagrado como Marlon Brando, o que torna ainda melhor esta bela cena. James Caan interpreta muito bem o explosivo Santino Corleone (apelidado de Sonny), dando claros sinais de que não tem o equilíbrio psicológico e o jogo político necessários para ser o sucessor de Don Vito, através de suas reações extremas e seus impulsos vingativos e violentos. Porém, apesar de toda esta agressividade, o gangster tem um código de ética peculiar, assim como toda sua família, como podemos testemunhar na cena em que ele quebra a máquina fotográfica de um paparazzi e joga dinheiro no chão, como quem diz: “Compre outra pra você, mas pare de encher o meu saco”. Destacar cada integrante do elenco é até desnecessário. Basta dizer que nenhuma atuação pode ser considerada de baixo nível. Durante um simples jantar em família, por exemplo, Coppola e seu fantástico elenco evidenciam uma série de problemas de relacionamentos. Connie, interpretada com competência (e um exagero perfeitamente aceitável devido ao enorme sofrimento da personagem) por Talia Shire, mostra que não se dá bem com seu violento marido Carlo (Gianni Russo, muito bem na cena da briga com Connie e no diálogo final com Michael). Sonny deixa claro que odeia o modo como Carlo trata sua irmã e Mama Corleone (Morgana King) mostra sutilmente que não gosta da interferência dos irmãos no casamento de sua filha. Tudo isso em poucos segundos e sem diálogos expositivos, genial.

Como se a excepcional direção de Coppola e o elenco maravilhoso não fossem suficientes, “O Poderoso Chefão” conta ainda com um trabalho técnico espetacular. A começar pela famosa direção de fotografia de Gordon Willis (apelidado por causa deste filme de “O Príncipe das Sombras”). Seu estilo se tornou padrão para os filmes do gênero, que passaram a utilizar o forte contraste luz e sombra como regra desde então. Desde a primeira cena, podemos notar constantemente os personagens, e até mesmo os ambientes, mergulhados nas sombras criadas brilhantemente por Willis. Observe como parte do rosto deles está encoberto na cena inicial dentro da sala de Vito, na conversa entre Michael e Carlo a respeito do assassinato de Sonny ou quando Tom Hagen conta para Vito que seu filho está morto. E estes são apenas alguns exemplos dentre vários que podemos citar. Willis também consegue alternar dos momentos sombrios para os momentos alegres com perfeição. Observe atentamente como a fotografia é mais colorida na cena do casamento, demonstrando toda a alegria daquela festa. Só que mesmo este colorido é opaco, já que ele nunca utiliza cores extravagantes demais, o que dá um ar documental a esta cena. Nesta mesma cena, a fotografia, em conjunto com os figurinos, destaca visualmente o personagem Michael, o único homem presente que não está vestido com o tradicional terno e gravata. Ele é diferente e o visual ilustra isso. Os figurinos criados por Anna Johnstone, aliás, são absolutamente marcantes. Vestidos com ternos, gravatas, chapeis e sobretudos, os gângsteres de “O Poderoso Chefão” influenciaram o visual da grande maioria dos filmes do gênero que vieram depois. Marcante também é o incrível trabalho de Direção de Arte de Warren Clymer, que cria uma Nova York dos anos 40 rica em detalhes, como a fachada das casas e bares e os modelos dos automóveis da época. O trabalho de maquiagem também merece destaque, principalmente pelo já citado envelhecimento de Marlon Brando. A engenhosa montagem (resultado do trabalho de Marc Laub, Barbara Marks, William Reynolds, Murray Solomon e Peter Zinner) consegue manter igualmente atraentes todas as tramas da narrativa e ainda nos brinda com um final extraordinário, resolvendo todos os conflitos através de ações paralelas e simultâneas, previamente planejadas por Michael. A perfeita montagem é crucial para o excelente resultado desta seqüência final. Além disso, apesar da narrativa cobrir vários anos da família Corleone, a passagem do tempo jamais soa episódica. Perceba como em determinado momento Kay pergunta para Michael há quanto tempo ele está de volta e ele responde: “Há um ano”. Minutos antes, Vito alertava para o possível retorno de seu filho na reunião dos chefes de família. Para finalizar, merece destaque o incrível realismo alcançado nas cenas violentas, como os tiros disparados contra Solozzo e McCluskey e o assassinato de Sonny.

“O Poderoso Chefão” conta ainda com um turbilhão de emoções, sempre utilizadas na dose certa. Temos momentos comoventes, como a tocante cena em que Vito sorri ao receber o carinho de Michael no hospital. Um romance entre Michael e a belíssima italiana Apollonia (vivida com muito charme por Simonetta Stefanelli) que, mesmo terminando de forma trágica, serve como um pequeno alívio para a trama carregada. A ação fica por conta das cenas extremamente violentas e realistas. E finalmente, o filme apresenta até uma dose de humor negro, como a cena em que Michael está prestes a ligar para Luca Brasi (Lenny Montana). No momento em que ele pega o telefone chegam dois peixes mortos numa caixa, simbolizando que Luca está morto. Michael coloca o telefone no ganho em seguida.

Extremamente competente em todos os setores, “O Poderoso Chefão” é talvez o filme que mais tenha se aproximado da perfeição. Mostrando da maneira mais realista possível o submundo de Nova York dominado pela máfia italiana, o filme acompanha brilhantemente a ascensão de Michael Corleone e o efeito que ela provocou em sua família. Reforçado ainda por atuações brilhantes, uma direção impecável, um trabalho técnico magnífico e um roteiro incrivelmente complexo e coerente, o primeiro filme da maravilhosa trilogia não pode ser reconhecido de outra forma que não uma perfeita e completa obra-prima da história do cinema. Espero que o cinema ainda seja capaz de produzir obras desta magnitude, mas isto é reconhecidamente algo difícil de voltar a acontecer. De qualquer forma, somente o fato de saber que um dia ele já foi capaz de produzi-lo é motivo suficiente para nos apaixonarmos por esta maravilhosa arte eternamente.

Texto publicado em 10 de Agosto de 2009 por Roberto Siqueira