(Reservoir Dogs)
Videoteca do Beto #82
Dirigido por Quentin Tarantino.
Elenco: Harvey Keitel, Tim Roth, Michael Madsen, Steve Buscemi, Chris Penn, Lawrence Tierney, Kirk Baltz, Edward Bunker e Quentin Tarantino.
Roteiro: Quentin Tarantino.
Produção: Lawrence Bender.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Violência gráfica, narrativa não-linear, diálogos triviais e repletos de referências a cultura pop, trilha sonora de extremo bom gosto e atuações de grande nível. Todas as marcas registradas do cinema diferente e criativo de Quentin Tarantino podem ser percebidas em “Cães de Aluguel”, excelente filme que marcou a estréia de um dos diretores mais influentes da década de 90.
Seis criminosos profissionais são reunidos por Joe Cabot (Lawrence Tierney) para assaltar uma loja de joalherias que receberia uma valiosa carga de diamantes. Inesperadamente, algo dá errado e dois deles morrem quando os policiais cercam o local, mas todos os outros conseguem fugir. Mr. Orange (Tim Roth), ferido, é levado por Mr. White (Harvey Keitel), e em seguida Mr. Pink (Steve Buscemi) chega ao galpão onde todos combinaram de se encontrar, revoltado com a possibilidade de alguém ter traído o grupo. O último a chegar é Mr. Blonde (Michael Madsen), que provocou a ira dos parceiros ao começar a atirar durante o assalto por que algum funcionário da loja disparou o alarme. Caberá a Eddie (Chris Penn) tentar apaziguar a situação, mas o clima de desconfiança aumenta a cada minuto que passa.
Quentin Tarantino é certamente um dos diretores mais influentes dos últimos anos, imprimindo sua marca registrada em todos os seus filmes e conquistando fãs em cada canto do planeta. Reconhecidamente um grande diretor, Tarantino demonstra, no entanto, ainda mais talento como roteirista, algo notável desde este trabalho de estréia. Repleto de diálogos ágeis sobre coisas do cotidiano, humor negro e até mesmo piadas racistas, o roteiro de “Cães de Aluguel” chama a atenção justamente por conferir um realismo singular à narrativa, que definiu os padrões do cinema contemporâneo ao misturar elementos narrativos clássicos com diversas referências à cultura pop, a começar pelo divertido diálogo sobre as músicas da Madonna, passando pela constante menção ao programa de rádio “K-Billy, o som dos anos 70” e chegando até mesmo a citar “o quarteto fantástico”. Além disso, o fato dos personagens falarem de maneira informal, com muitos palavrões e piadas de humor negro, os torna ainda mais reais, aproximando-os do espectador, que se identifica com aqueles diálogos corriqueiros, afinal de contas, nós também passamos o dia comentando coisas banais. Só que em determinados momentos, a face criminosa de todos eles vem à tona (o que os diferencia da maioria dos espectadores), como no curioso diálogo entre Mr. White e Mr. Pink (“Matou alguém?”; “Tiras”; “Não matou pessoas de verdade?”; “Não, só tiras”), que revela também o lado ético daqueles “profissionais” do crime, revoltados com a morte de uma jovem de 20 anos. E os próprios codinomes dos personagens demonstram a criatividade de Tarantino, utilizando cores para evitar que eles se identifiquem e corram o risco de entregar os colegas numa eventual prisão.


Outra característica marcante do cinema de Tarantino que também surge pela primeira vez em “Cães de Aluguel” é a narrativa não-linear, sempre dividida em capítulos, que abusa dos flashbacks, neste caso para mostrar como cada integrante foi contratado por Joe. E se a estrutura narrativa não-linear normalmente prende a atenção do espectador, o vigor com que Tarantino conduz a trama desde o primeiro momento, quando sua câmera inquieta gira em torno da mesa e nos aproxima daquele grupo de criminosos, torna o longa ainda mais interessante. Os movimentos de câmera, aliás, confirmam o talento do diretor, como podemos notar no plano que se inicia num chão de banheiro, mostrando o lixo e a sujeira do local, seguido por um travelling que nos leva ao final do corredor onde Mr. White e Mr. Pink conversam, diminuindo os personagens na tela e ilustrando o quanto eles estavam perdidos naquele momento. Em outro momento, quando Joe diz para ninguém revelar o nome, Tarantino dá um close no rosto de Mr. White, indicando que aquele personagem quebraria esta sagrada regra. E finalmente, durante a briga entre Mr. White e Mr. Pink no galpão, Tarantino emprega um zoom out que lentamente revela a presença de Mr. Blonde escorado numa parede, apenas observando toda aquela confusão. Além disso, o diretor não hesita em nos apresentar cenas extremamente violentas, mantendo o espectador sempre atento a narrativa na expectativa de que algo surpreendente possa acontecer a qualquer momento, alcançando um nível de realismo bastante ousado para a época.


Profundo conhecedor (e amante) de cinema, Tarantino sabe também que não é preciso utilizar uma montagem acelerada para manter a atenção do espectador. Desta forma, a montagem de Sally Menke utiliza poucos cortes, prolongando bastante as cenas, o que serve também para mostrar o resultado nada agradável daquele ambiente violento, como quando a câmera passeia pelos corpos caídos após a troca de tiros entre Joe, Eddie e Mr. White. O trabalho de Menke se destaca ainda na interessante seqüência em que vemos Mr. Orange decorando a história do encontro com os policiais no banheiro, quando em poucos minutos ele passa do treinamento com seu amigo policial para o momento em que fala diante de Joe, Eddie e Mr. White – e aqui vale observar a inserção de um flashback de algo que nem existiu, conferindo legitimidade a história inventada pelo personagem. E o próprio local escolhido para acolher os criminosos confere ainda mais realismo ao que se passa na tela, com as paredes descascadas e os tijolos à mostra dentro do abandonado galpão, reforçado pela fotografia crua de Andrzej Sekula, que adota um visual granulado e cores sem vida que aproximam a imagem da realidade. Por outro lado, Sekula dá vida aos tons de vermelho, aumentando o choque das cenas de violência, sempre banhadas com muito sangue. E é curioso notar como a trilha sonora diegética, recheada com excelentes músicas dos anos 70, cria um paradoxo ao associar um som agradável à violência extremamente gráfica, deixando o espectador com um sentimento misto de prazer e repulsa.


As atuações, de forma geral, são bastante convincentes e mantém o clima constante de tensão de “Cães de Aluguel”, conseguindo criar personagens ameaçadores graças à firmeza de todo elenco. Observe, por exemplo, como Keitel e Roth soam extremamente convincentes no caminho do galpão, quando Mr. Orange grita de dor e Mr. White tenta acalmá-lo. Já no galpão, Roth convence Keitel e o espectador de que ele não sabe de nada sobre o traidor, o que aumenta o choque no momento em que ele revela a verdade. Keitel, por sua vez, se sai bem nas intensas discussões com os outros integrantes do grupo, como quando parte pra cima de Mr. Blonde logo após sua chegada ao galpão ou quando defende Mr. Orange diante das insinuações de Mr. Pink, interpretado com competência por Steve Buscemi. Já Michael Madsen está assustador como Mr. Blonde, com sua voz tranqüila e um olhar calmo que personificam o verdadeiro psicopata, capaz de provocar a ira em qualquer um – repare sua expressão de cinismo ao provocar Mr. White com a frase “Vai latir o dia inteiro, cachorrinho?”. Sua insanidade vem à tona na impressionante cena da tortura do policial Marvin Nash (Kirk Baltz), onde Tarantino evita mostrar a barbárie desviando a câmera no último instante, mas faz questão de mostrar as conseqüências daquele ato insano, através do rosto desfigurado de Nash, agora sem uma das orelhas, que pode ser vista na mão de Mr. Blonde – e aqui o diretor não resiste ao seu característico humor negro, personificado na brincadeira de Mr. Blonde com a orelha do rapaz. Observe ainda como a cena é pontuada pela deliciosa música tocada no rádio, dando uma estranha sensação de prazer ao espectador enquanto este assiste aquela repugnante cena de tortura. Através de um plano-seqüência, Tarantino ainda acompanha Mr. Blonde enquanto ele caminha tranquilamente pra buscar gasolina no carro, voltando ao galpão em seguida para incendiar o policial. Mas em outro momento surpreendente, Mr. Orange salva Marvin com tiros repentinos e revela que ele é o policial infiltrado no grupo. E fechando os destaques do elenco, Chris Penn e Lawrence Tierney também estão ótimos como Eddie e Joe, demonstrando entrosamento com Mr. Blonde na cena do escritório, mas mostrando-se firmes quando necessário, principalmente após tudo dar errado no assalto. Tierney se destaca ainda quando Joe passa as instruções para o grupo, em outro momento inspirado pelos afiados diálogos de Tarantino, que resultam na engraçada discussão a respeito dos codinomes de cada um. Já Penn se destaca quando Eddie fica furioso após Mr. Orange matar Mr. Blonde, expondo com competência a fúria do personagem.





“Cães de Aluguel” apresenta ainda duas seqüências marcantes, daquelas capazes de tirar o fôlego do espectador. A primeira delas é o flashback dos momentos anteriores e seguintes ao crime (o assalto em si nunca é mostrado), revelando como Mr. Orange foi atingido por uma civil e apresentando o momento em que ele chama Mr. White de Larry, num minuto de fraqueza que impediria o parceiro de levá-lo ao hospital posteriormente. Já o outro momento de extrema tensão acontece quando Eddie, Joe e Mr. White apontam as armas entre eles, resultando na morte de Eddie e Joe, na revelação da traição de Mr. Orange e na morte dos dois últimos integrantes do grupo. Estas duas cenas simbolizam a atmosfera de tensão que domina praticamente toda a narrativa.
Quentin Tarantino chamou a atenção da indústria cinematográfica ao introduzir elementos da cultura pop, misturados à violência extrema e realista, num roteiro coeso e inventivo que resultou neste intrigante “Cães de Aluguel”, um verdadeiro sopro de criatividade no cinema dos anos 90, que influenciou muito do que aconteceu nos anos seguintes.
Texto publicado em 09 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira