ALTA FIDELIDADE (2000)

(High Fidelity)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #110

Dirigido por Stephen Frears.

Elenco: John Cusack, Iben Hjejle, Todd Louiso, Jack Black, Lisa Bonet, Catherine Zeta-Jones, Joan Cusack, Tim Robbins, Chris Rehmann, Ben Carr, Lili Taylor, Natasha Gregson Wagner e Harold Ramis.

Roteiro: D.V. DeVincentis, Steve Pink, John Cusack e Scott Rosenberg, baseado em livro de Nick Hornby.

Produção: Tim Bevan e Rudd Simmons.

Alta Fidelidade[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Amadurecer nunca foi fácil. Desde os primeiros momentos da vida em que somos obrigados a deixar fases deliciosas para trás e encarar novas e pesadas responsabilidades (como ir para a escola, por exemplo), o processo de amadurecimento do ser humano pode ser complicado e difícil dependendo da maneira como encaramos cada etapa. Pra piorar, os tempos modernos trouxeram tecnologias maravilhosas que, por outro lado, permitem que retornemos a este passado delicioso sempre que possível, seja jogando aquele videogame que amávamos, assistindo aquele seriado ou desenho ou até mesmo ouvindo as mesmas músicas de antes. Isto não é necessariamente algo ruim, mas pode tornar-se um problema sério quando esta facilidade nos impede de seguir adiante. E é justamente este o caso do protagonista deste ótimo “Alta Fidelidade”, um longa sensível a respeito da dificuldade de um homem de encarar as responsabilidades que surgem pela frente.

Escrito a oito mãos por D.V. DeVincentis, Steve Pink, John Cusack e Scott Rosenberg com base em livro homônimo de Nick Hornby, “Alta Fidelidade” narra o cotidiano de Rob Gordon (John Cusack), o dono de uma pequena loja de discos em Chicago que está se separando da namorada Laura (Iben Hjejle). Fanático por música, ele passa seus dias vendendo discos e discutindo o cenário musical com seus dois funcionários Dick (Todd Louiso) e Barry (Jack Black), mas o fim do relacionamento faz com que ele reflita sobre os inúmeros relacionamentos frustrados que teve na vida.

Repleto de diálogos interessantes como aquele em que Rob e Barry discutem os significados da palavra “ainda”, o roteiro de “Alta Fidelidade” traz pequenas joias como a pouco romântica, porém verdadeira proposta de casamento de Rob, que foge completamente dos clichês. Além disso, o texto parece um verdadeiro presente para os fãs da música, trazendo inúmeras referências a bandas famosas e outras desconhecidas do grande público, além das interessantes listas criadas pelos personagens (como sabemos, criar listas é uma brincadeira capaz de viciar nove entre dez fãs de música e de cinema também!), que estão espalhadas por toda a narrativa.

A criatividade não para por aí. Se num primeiro momento somos levados a enxergar Rob como uma vítima, nossa expectativa é completamente subvertida quando ele revela as quatro coisas ruins que fez para Laura, quebrando a imagem de pobre homem sofrido e dando os primeiros sinais do quanto ele fugia de um relacionamento sério – algo que sua mãe já havia indicado antes numa conversa telefônica. Em seguida, as explicações dele para cada acontecimento escancaram seus medos e angustias, tornando o personagem mais humano diante dos nossos olhos, ainda que não justifique suas ações.

Prendendo a atenção do espectador através do carisma dos personagens, o diretor Stephen Frears e seu montador Mick Audsley saltam no tempo sempre num ritmo ágil e sem jamais tornar a trama confusa, apostando nos flashbacks que trazem as fracassadas experiências amorosas do protagonista e ousando quebrar a quarta parede praticamente o filme inteiro ao permitir que o protagonista fale diretamente com o expectador, o que, auxiliado pelo carisma de Cusack e pelos closes e planos fechados de Frears que acompanham Rob constantemente, ajuda a criar empatia entre o personagem e a plateia.

Até mesmo os aspectos técnicos são usados para externar os sentimentos do protagonista. Deixando as janelas quase sempre fechadas ou apenas parcialmente abertas, o diretor de fotografia Seamus McGarvey cria um visual sombrio que, reforçado pelas cores sem vida que decoram o apartamento dele, conferem um ar de esconderijo ao local – afinal, é ali que Rob se esconde do mundo adulto ao seu redor, com seus LPs dispostos em ordem alfabética no apartamento e seus pôsteres de bandas na parede (design de produção de David Chapman e Therese Deprez). Finalmente, a trilha sonora recheada de canções maravilhosas de Howard Shore acerta ao retratar os diversos sentimentos conflitantes do protagonista, saltando de músicas empolgantes para baladas intimistas com facilidade.

Num papel difícil e crucial para o sucesso do longa, Cusack está muito bem, carregando a narrativa com facilidade e muita desenvoltura. Com sua expressão de derrotado e seu comportamento quase recluso, Rob é alguém difícil de lidar, escondendo-se atrás do humor autodepreciativo como forma de evitar falar abertamente sobre sua falta de coragem para encarar um relacionamento com seriedade. Se suas mudanças de penteado e no estilo das roupas são notáveis ao longo das experiências amorosas (figurinos de Laura Bauer), seu comportamento praticamente mantém-se o mesmo, o que o leva a acreditar que todos seus relacionamentos são apenas versões distorcidas do primeiro. Obcecado por explicações, Rob torna-se quase paranoico enquanto busca superar o fim de suas relações amorosas, sem perceber que os relacionamentos em si são também a razão de sua paranoia, já que ele não suporta a ideia de manter um compromisso duradouro com alguém.

Janelas parcialmente abertasExpressão de derrotadoMudanças de penteadoA gama de personagens interessantes e verdadeiros, porém, não se restringe ao protagonista. Sempre reservada e centrada, Laura surge como um verdadeiro porto seguro para aquele homem, soando quase sempre como adulta diante daquele homem tão juvenil – e neste sentido, as expressões sérias e o tom de voz controlado da atriz Iben Hjejle são essenciais para a construção desta imagem. E enquanto Todd Louiso se sai bem como o tímido e antissocial Dick, falando com dificuldades e evitando olhar diretamente para as pessoas, Jack Black diverte-se como o vendedor de discos fanático por música que quase rouba a cena sempre que aparece, ainda que abuse do overacting em alguns momentos. Saindo-se muito bem na maior parte do tempo, Black demonstra desenvoltura também no palco, quando seu Barry finalmente demonstra que também pode ser um pouco eclético.

Além da sempre engraçada e espalhafatosa Liz de Joan Cusack, vale citar também as participações de Catherine Zeta-Jones, que demonstra sua forte presença na pele de Charlie; Bruce Springsteen, que aparece rapidamente durante um pensamento de Rob; e Tim Robbins, que em pouco tempo consegue fazer seu Ian Ray ser ao mesmo tempo educado e irônico. Além disso, Robbins participa da cena mais engraçada do filme, na qual acompanhamos os desfechos imaginados por Rob para o fim de uma conversa com Ray.

Reservada e centrada LauraVendedor de discos fanáticoEducado e irônicoVerdadeira declaração de amor pela música, “Alta Fidelidade” é acima de tudo um estudo sobre um homem com enorme dificuldade de encarar o amadurecimento que todos nós temos que passar um dia. E por mais que continuemos amando nossos discos da adolescência (ok, nossos CDs ou compilações em mp3), é bem mais fácil quando sabemos encarar o momento de deixar a rebeldia adolescente para trás e dar novos passos adiante na longa e árdua caminhada da vida adulta.

Alta Fidelidade foto 2Texto publicado em 12 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

CORAÇÃO SATÂNICO (1987)

(Angel Heart)

 

Videoteca do Beto #47

Dirigido por Alan Parker.

Elenco: Mickey Rourke, Robert De Niro, Lisa Bonet, Charlotte Rampling, Brownie McGhee, Stocker Fontelieu, Michael Higgins, Elizabeth Whitcraft, Eliott Keener, Katheleen Wilhoite e George Buck.

Roteiro: Alan Parker, baseado em livro de William Hjortsberg.

Produção: Elliot Kastner e Alan Marshall.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Profundamente perturbador, “Coração Satânico” jamais apela para a trilha sonora ou monstros repugnantes que saltam na tela como forma de provocar o medo no espectador. Seu mérito está no excelente roteiro e na firmeza com que Alan Parker conduz a narrativa, utilizando sua categoria como diretor para criar um visual cheio de estilo, levando o espectador a descobrir junto com o protagonista o trágico destino que este inevitavelmente encontrará. Durante esta intrigante jornada, seremos envolvidos por um clima sombrio e macabro, repleto de imagens chocantes e, o que é melhor, presenteados com um final incrivelmente surpreendente.

Em 1955, na cidade de Nova York, o detetive particular Harry Angel (Mickey Rourke) é contratado pelo misterioso cliente Louis Cyphre (Robert De Niro) para encontrar um cantor, conhecido como Johnny Favorite, que sumiu há doze anos. O problema é que quanto mais se aprofunda na investigação, mais confuso Harry fica, envolvendo-se com pessoas estranhas, que curiosamente morrem logo após entrar em contato com ele. Nesta jornada, Harry conhecerá um mundo místico e encontrará um caminho sem volta.

Desde o início sombrio, numa rua suja em que um gato olha o corpo de um homem morto, a obscura e excelente fotografia (Direção de Michael Seresin) cria um ambiente sombrio e macabro, que se estenderá por toda a narrativa. Observe a quantidade de vezes em que a cena é iluminada apenas pelo vão existente nos ventiladores, que aparecem constantemente e remetem ao momento em que Johnny rouba a vida de Harry dentro de um hotel, como se fizessem questão de lembrá-lo de algo que ele aparentemente esqueceu. Além disso, sempre que aparecem, os ventiladores tem a função narrativa de indicar o próximo assassinato. A ótima direção de arte de Armin Ganz e Kristi Zea transporta o espectador para o ano de 1955, através do visual sujo da cidade, dos carros velhos e das casas antigas, além é claro de contar com os ótimos figurinos de Aude Bronson-Howard e a excelente trilha sonora de Trevor Jones que abusa do blues, música típica do período e da região de New Orleans. Todo este bom trabalho técnico auxilia o diretor Alan Parker na criação de cenas absolutamente marcantes e de um impacto visual incrível, com destaque para o macabro ritual envolvendo dança e a morte de uma galinha, e para a cena de sexo entre Harry e Epiphany Proudfoot (Lisa Bonet), banhada pela água da chuva que se transforma em sangue e repleta de imagens aterrorizantes. Além destas cenas, vale ressaltar que todas as mortes também são bastante realistas e comprovam o cuidado com o visual por parte do diretor.

Mas “Coração Satânico” também é um filme de atores. E que atores. O excelente Mickey Rourke oferece uma atuação sutil em diversos momentos e extremamente visceral em outros, demonstrando sua enorme capacidade de interpretação. Um dos melhores atores de sua geração, o minimalista Rourke demonstra em seus sorrisos, olhares desconfiados e pequenos gestos (como quando joga sal por cima do ombro quando conversa com Louis) o cuidado que teve ao compor o personagem. Rourke está bem solto no papel e transmite com perfeição ao espectador a angústia de Harry na busca pelo cantor desaparecido. Sua explosão final ao saber da verdade, quando chora de raiva e reflete no olhar a dúvida e perplexidade com o que ouve, só ratifica a qualidade da grande atuação de Rourke. Já Robert De Niro tem uma atuação bastante misteriosa, olhando sempre com firmeza para o detetive e dando dicas de sua verdadeira identidade. Desde sua primeira aparição, demonstra seu talento criando um Louis Cyphre completamente sombrio e enigmático. Suas unhas enormes, sua roupa preta e o ar superior soam completamente coerentes com o personagem, ainda mais quando sua verdadeira identidade é revelada. O grande ator também demonstra talento no único momento em que existe espaço para o humor – mesmo que de forma irônica – quando diz sorrindo para Harry “olhar o linguajar” dentro de uma igreja.

É interessante notar também como as dicas do final surpreendente são espalhadas por todo o excelente roteiro do próprio Alan Parker (baseado em livro de William Hjortsberg), como o fato de todas as pessoas morrerem ao se envolver com Harry. Repare como Louis Cyphre (em inglês, junte os nomes e terá o som de Lúcifer) se diz estrangeiro (ora, o inferno não fica nos EUA até que se prove o contrário) e ironicamente se apresenta em cima de uma igreja, dizendo que seu contrato com Johnny Favorite seria executado somente após a morte dele e afirmando ter ajudado em sua carreira, o que é bastante lógico e coerente. Em outro momento, ele diz que em algumas tribos o ovo simboliza a alma e em seguida devora o ovo, simbolizando o que faria com a alma de Harry no futuro. Mesmo assim, o inteligente roteiro é sutil o suficiente para não permitir que o espectador descubra a verdadeira identidade de Harry até o espetacular momento em que é revelada. Até mesmo o próprio Harry vive uma série de situações que sinalizam seu destino, como quando descobre um altar macabro dentro da Igreja onde conheceu Louis. Observe também como as crianças e os animais (especialmente os frangos, mas também os cachorros) não gostam de Harry, talvez por enxergar sua verdadeira e nada bela natureza. As crianças choram ao vê-lo, enquanto os animais atacam.

O ambiente sombrio em que a trama se passa mais parece pertencer a um pesadelo, onde todas as ações tomadas pelo protagonista parecem levar a um novo caminho, ainda mais tortuoso que o anterior. A cada descoberta de Harry o espectador fica ainda mais intrigado e se vê ansioso pela resolução da investigação. Quanto mais próximo da verdade o detetive chega, mais temeroso o espectador se torna, praticamente pressentindo o trágico destino de Harry Angel. E a revelação final, irônica e absolutamente nocauteante, é de uma genialidade impar, daquelas que dá vontade de ver o filme novamente assim que os créditos começam a aparecer na tela, enquanto Harry desce pelo elevador e vai de encontro ao seu inferno particular.

Utilizando um ambiente sombrio e uma cidade ainda mais tenebrosa como pano de fundo para uma narrativa inteligente e surpreendente, que mistura elementos místicos à tradicional estrutura dos thrillers de suspense, e contando ainda com dois dos maiores atores de sua geração em grandes atuações, o diretor Alan Parker brinda o espectador com um trabalho fantástico, que merece ser apreciado nos mínimos detalhes. E felizmente, o diretor, ao menos pelo que se sabe, não precisou vender sua alma para conseguir este feito.

Texto publicado em 06 de Março de 2010 por Roberto Siqueira