CISNE NEGRO (2010)

(Black Swan)

 

Filmes em Geral #82

Dirigido por Darren Aronofsky.

Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Winona Ryder, Barbara Hershey, Toby Hemingway, Janet Montgomery, Kristina Anapau e Ksenia Solo.

Roteiro: Andres Heinz e Mark Heyman, baseado em história de Andres Heinz.

Produção: Scott Franklin, Mike Medavoy, Arnold Messer e Brian Oliver.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dona de uma das raras carreiras consistentes na infância e adolescência, Natalie Portman chegou à maturidade profissional confirmando o talento que seu início promissor sugeria – algo que ficou evidenciado no ótimo “Closer”. Mas foi sob a direção de Darren Aronofsky neste excepcional “Cisne Negro” que a atriz ofereceu seu melhor desempenho, justamente reconhecido pela academia de Hollywood com o prêmio Oscar. Oferecendo uma atuação nada menos que sensacional, ela transmite com precisão e intensidade o doloroso processo de metamorfose de uma talentosa e recalcada bailarina, profundamente afetada por distúrbios psicológicos.

Adaptado para o cinema por Mark Heyman, John J. McLaughlin e Andres Heinz a partir de argumento do próprio Heinz, “Cisne Negro” tem início quando um grupo de bailarinas passa a competir pelo papel principal de uma adaptação de “O Lago dos Cisnes”, após a aposentadoria forçada da estrela Beth MacIntyre (Winona Ryder). Escolhida para o desafiador papel principal, a talentosa Nina (Natalie Portman) passa a ser pressionada pelo exigente diretor artístico Thomas Leroy (Vincent Cassel), mas enfrenta sérias dificuldades, especialmente após a chegada da sensual Lilly (Mila Kunis). Pra piorar, ela sequer pode contar com o apoio de sua mãe, a ex-bailarina Erica (Barbara Hershey).

Trazendo elementos de suspense e terror, “Cisne Negro” faz um maravilhoso estudo de personagem, explorando os conflitos psicológicos de sua protagonista ao mesmo tempo em que narra sua trajetória dentro da companhia de balé. Não por acaso, a câmera constantemente acompanha Nina por trás dos ombros, já que acompanhamos a narrativa sempre sob o ponto de vista dela, o que faz com que o espectador compartilhe suas angústias e até mesmo suas alucinações – que só descobriremos serem distúrbios psicológicos depois de muito tempo de projeção. Empregando closes que, além de realçar a marcante atuação de Portman, nos aproximam mais da personagem, Aronofsky torna quase palpável o sofrimento da garota através do detalhe de seu pé girando – repare que o ótimo design de som permite escutar até mesmo o estalar dos dedos de seus pés -, de planos fechados de suas unhas sangrando e da exposição crua de seus ferimentos nas costas. Da mesma forma, o diretor praticamente nos coloca dentro dos ensaios de Nina, com a câmera girando e acompanhando seus movimentos, conferindo ainda extremo realismo à narrativa ao nos apresentar a rotina desgastante das bailarinas – o que não deixa de ser também uma bela homenagem ao próprio balé.

Utilizando as músicas diegéticas dos ensaios, de uma caixa de música ou até mesmo do celular de Nina, Clint Mansell emprega variações interessantes do tema do “Lago dos Cisnes”, criando uma trilha sonora fabulosa que aumenta a carga de tensão da narrativa, reforçada pelo ritmo dinâmico da montagem de Andrew Weisblum que, auxiliado pela câmera agitada de Aronofsky, nos transmite a sensação de confusão mental da protagonista. O montador se destaca ainda nas ótimas cenas de balé, especialmente no ato final, quando a troca rápida de imagens empolga sem jamais deixar o espectador perdido na cena, como já havia acontecido no sonho que abre “Cisne Negro”. Aliás, estas duas seqüências realçam também o ótimo trabalho do diretor de fotografia Matthew Libatique, que cria um belo contraste entre o preto e branco, cores predominantes na narrativa que simbolizam a dualidade da protagonista.

Mantendo a unidade visual pretendida por Aronofsky, o design de produção de David Stein mantém o predomínio do preto e branco na decoração dos ambientes (observe o apartamento de Thomas, por exemplo), assim como os figurinos de Amy Westcott também optam por roupas nestes tons na maior parte do tempo. Talvez o único local em que estas cores não predominam, o quarto rosa de Nina funciona quase como um refúgio, mas ainda assim sua mãe surge como um fantasma quando ela resolve seguir um conselho de Thomas, assustando a garota que interrompe a masturbação e se esconde como uma criança embaixo do edredom. Esta infantilização fica mais evidente quando, em pleno processo de transformação, ela decide se livrar da caixa de música e dos bichos de pelúcia, deixando as lembranças da infância para trás.

A explicação para este comportamento talvez esteja na figura superprotetora de sua mãe, que chega a ser autoritária e opressora em diversos momentos, criando um enorme bloqueio psicológico em Nina que a impede de liberar a sexualidade tão necessária no papel de cisne negro (repare como até os desenhos sinistros da mãe dela intimidam a garota). Demonstrando este lado explosivo e temperamental com precisão, por exemplo, na cena em que ameaça jogar um bolo no lixo, Barbara Hershey cria uma figura gradualmente assustadora, que caminha entre a preocupação extrema e uma suspeita crueldade ao falar das dificuldades que Nina enfrentará, num comportamento que reflete a frustração por ter abandonado a carreira de bailarina para ter sua filha. Mas como diz Thomas em certo momento, o maior obstáculo de Nina é ela mesma, algo que Aronofsky faz questão de ressaltar ao utilizar muitos espelhos, ilustrando a dupla personalidade da garota, que vê seu próprio rosto em outras pessoas, como quando sonha com Lilly e quando cruza alguém no túnel de acesso ao metrô. Aliás, na primeira vez que Nina vê Lilly no metrô, os movimentos parecidos e as roupas (branca de Nina e preta de Lilly) indicam que a ameaça representada pela espontânea Lilly será o agente motivador da mudança de Nina, pois a garota simboliza o lado ainda inexplorado de sua personalidade.

Surgindo indefesa com seu rosto meigo e sua sensibilidade extrema, Natalie Portman demonstra com perfeição o medo que Nina demonstra do mundo, assim como seu controle absoluto sobre tudo que faz, num perfeccionismo exagerado que reflete a criação rígida que recebeu e a impede de se soltar (“Eu quero ser perfeita”, diz). Por isso, a garota representa um verdadeiro paradoxo para Thomas: por um lado, sua técnica refinada lhe garante o posto de bailarina ideal para o papel puramente técnico do cisne branco, mas por outro, sua timidez lhe impede de encarnar o incisivo papel do cisne negro. Ainda assim, ela é a escolhida – e chega a ser comovente o momento em que Nina conta chorando para a mãe que foi escolhida para o papel principal. Transmitindo ainda a timidez da personagem através do baixo tom de voz, como quando fala de sexo com Thomas, e ao desviar o olhar, como quando briga com Lilly, Portman oferece um desempenho magnífico que garante a empatia instantânea da platéia, demonstrando ainda enorme dedicação ao papel por não usar dublê nas cenas de balé e, especialmente, pela forma física extremamente magra que demonstra a fragilidade de Nina.

Chegando a soar ameaçador, o Thomas de Vincent Cassel se mostra um líder controverso, que por um lado extrai o melhor de sua estrela, mas por outro utiliza métodos nada convencionais para conseguir isto. Ainda assim, Cassel confere tridimensionalidade ao personagem, transmitindo a sensação de que ele realmente se importa com a garota (“Você pode ser brilhante, mas é covarde!”, diz). Ainda que pareça duro demais em diversos momentos, sua alegria ao ver o sucesso da apresentação de Nina parece genuína, graças ao bom desempenho do ator. Também genuína parece a felicidade de Lilly com o sucesso da colega, o que não deixa de ser intrigante. Bastante solta e sensual no papel, Mila Kunis oferece um desempenho competente, deixando o espectador sempre na dúvida quanto às reais intenções da garota. E fechando o elenco, Winona Ryder aproveita muito bem as poucas cenas em que aparece, demonstrando a amargura de Beth por não aceitar o fim dos dias de glória.

Num momento crucial, Nina se rebela contra a mãe e sai com Lilly, iniciando sua transformação – algo ilustrado de maneira sutil por Aronofsky quando a garota coloca uma roupa preta por cima da roupa branca no banheiro. Após a noitada, Nina volta para casa acompanhada por Lilly (e repare o plano escolhido pelo diretor quando elas entram no apartamento, filmado através do espelho, numa dica sutil da natureza daquele momento). Mais uma vez inspirada, Portman nos convence de que Nina realmente está alcoolizada, o que é essencial para o sucesso da cena. Em seguida, a forte cena de sexo termina com Nina mais uma vez vendo seu rosto no corpo de Lilly, em mais um sinal de sua transformação – e nesta cena vale destacar também os ótimos efeitos visuais, que fazem a tatuagem de Lilly simular as asas do cisne negro. Após a “noitada”, a transformação estaria completa, não fosse o temor que ela ainda tinha de perder o lugar para Lilly, comprovado quando ela chega atrasada ao ensaio e encontra a outra em seu lugar.

Enxergando penas saindo das costas, imaginando seu pé se entortando e vendo os dedos grudados no pé (novamente, mérito dos bons efeitos visuais), Nina passa a encarnar de vez o papel do cisne (e só temos certeza de que tudo aquilo não passa de alucinação quando a vemos dançando com asas negras e olhos vermelhos e, num plano rápido sob o ponto de vista da platéia, ela surge com braços e olhos normais). E então um verdadeiro espetáculo de direção, fotografia e montagem amarra tematicamente a narrativa com perfeição, com a “morte” da velha Nina, ferida com um pedaço de espelho que ela imaginou ter usado para assassinar Lilly, dando lugar à nova Nina – e impressiona a mudança de Portman na pele do cisne negro, exalando confiança com seus olhos arregalados, seus gemidos e seus leves movimentos corporais, deixando para trás o olhar tímido, a respiração ofegante e os movimentos calculados de antes. Quando retorna ao palco novamente na pele do cisne branco, a trilha triunfal indica o desfecho trágico e a conclusão perfeita surge no salto de Nina, que pode ou não ser um salto para a morte regido pelos intensos aplausos da platéia, numa despedida marcante da personagem. Assim como em “O Lutador”, o final em aberto sugere, mas não confirma a morte da protagonista, permitindo que cada espectador interprete à sua maneira.

Ao afirmar que “foi perfeito” após o salto final, Nina poderia muito bem estar se referindo ao pensamento do espectador, que sai extasiado diante da intensidade do que viu. Contando com a atuação fabulosa de Natalie Portman para expor o cruel processo criativo de uma artista, “Cisne Negro” praticamente insere o espectador dentro da mente de sua protagonista, explorando temas complexos como a sexualidade retraída e a dupla personalidade de maneira extremamente sensorial. Assim como a apresentação apaixonada de Nina no “Lago dos Cisnes”, este magnífico estudo psicológico de personagem repleto de simbolismos e com requintes de terror merece os aplausos da platéia.

Texto publicado em 17 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

IRREVERSÍVEL (2002)

(Irreversible) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #6

Dirigido por Gaspar Noé.

Elenco: Monica Bellucci, Vincent Cassel, Albert Dupontel, Philippe Nahon, Jo Prestia, Stéphane Drouot, Mourad Khima, Jean-Luis Costes e Gaspar Noé.

Roteiro: Gaspar Noé.

Produção: Christophe Rossignon.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucas vezes me senti tão angustiado e incomodado por um período tão longo de tempo durante um filme como nesta impressionante obra dirigida pelo argentino Gaspar Noé. Durante 54 minutos somos bombardeados com uma dose cavalar de agonia e pura tensão, causando quase uma sensação de taquicardia. Poucas vezes também me senti tão impotente e incapaz, já que no decorrer da estória, meu coração ia se acalmando pelo ritmo cada vez menos angustiante da narrativa, mas sempre com o pensamento cruel de que o destino daquelas pessoas era irreversível.

Alex (Monica Bellucci) é a atual namorada de Marcus (Vincent Cassel) e ex-namorada de Pierre (Albert Dupontel). Os três convivem numa boa, apesar de esporádicas demonstrações de ciúme – como numa conversa dentro do metrô – até que um crime brutal altera o destino de todos eles para sempre.

Surpreendente desde o início, Irreversível apresenta os créditos da produção antes mesmo da primeira cena e, posteriormente, narra de forma invertida (do final pra o início) como uma pessoa normal pode se transformar no mais cruel assassino quando impulsionado pela paixão e pelo desejo de vingança. Ao percorrer este caminho, o espectador será surpreendido com duas cenas violentas, chocantes e incrivelmente realistas e terminará com a estranha sensação de alívio pelo que vê, misturada com uma angústia pelo que ele sabe que irá acontecer na vida daquelas pessoas.

Os primeiros minutos de Irreversível são muito difíceis de suportar, em grande parte por mérito de Noé, que utiliza uma câmera inquieta, que se movimenta aleatoriamente, fazendo até mesmo círculos e chegando a ficar de ponta-cabeça, além de diversas vezes utilizar um close em lâmpadas acesas que contrasta fortemente com o escuro ambiente. Auxiliado pelo ótimo trabalho de som, que simula o barulho de uma sirene aumentando e diminuindo o volume, e pela fotografia avermelhada, o espectador tem uma crescente sensação de náuseas que faz a cena parecer um pesadelo. Contribui também o ambiente extremamente pesado e incomodo dentro de uma boate gay, com cenas explícitas e uma linguagem extremamente ofensiva. Esta inquietação reflete também o estado mental de Marcus, que está completamente atordoado, fora de si. O diretor também demonstra sua capacidade ao controlar esta angústia que o espectador sente, diminuindo esta sensação na medida em que o filme vai passando (e a estória vai voltando). Noé é responsável também, ao lado de Benoît Debie, pelo excelente trabalho de direção de fotografia que é extremamente importante durante todo o filme, refletindo o estado psicológico dos personagens. Após o início obscuro e avermelhado, a fotografia passa a ser grossa e granulada na cena do ataque dentro da boate, o que ilustra bem o ambiente sujo e o momento obscuro que Marcus e Pierre estão vivendo. Já quando eles são perseguidos por travestis, a câmera de mão (handycam) cria o ar documental necessário à cena, o que a torna muito mais realista e tensa. Na casa de Alex e Marcus a fotografia é mais limpa, destacando a cor branca, e a câmera já se movimenta lentamente, o que nos dá uma sensação de paz. A trilha sonora também é extremamente diferente ao longo do filme, mudando de uma trilha pesada e alta no inicio (e até mesmo na festa heterossexual) para uma música romântica e lenta no lar do casal. Gradualmente o filme vai retirando aquele clima tenso e o trabalho em conjunto de direção, montagem e direção de fotografia é diretamente responsável por isto. Finalmente, Noé é inteligente até em pequenos detalhes, como nos interessantes movimentos de câmera em que ele circula objetos (sirene e a mangueira no jardim) no sentido anti-horário, o que é coerente com a narrativa que volta no tempo. A excelente montagem (também responsabilidade de Noé) acerta ao separar a narrativa em grandes blocos, o que evita confundir demais o espectador, já preocupado em remontar a história em sua cabeça. Completando o excelente trabalho técnico, podemos destacar o extraordinário resultado alcançado pelos efeitos visuais, como na cena do ataque com o extintor que cria o rosto do ator sendo massacrado com perfeição.

O excelente roteiro, escrito pelo próprio Noé, tem trechos sutis que refletem no restante da narrativa, como a cena em que Alex diz para Pierre que para ela o importante é saber que está dando prazer para o homem numa relação sexual. Obviamente as palavras dela devem ser corretamente interpretadas, já que na cena mais violenta do filme ela claramente só tem dor (física e psicológica). Em outro momento, Alex conta sobre o livro que está lendo, dizendo que o futuro já está definido e não temos o que fazer a respeito, numa clara alusão à própria estória contada pelo filme. O livro também diz que os sonhos revelam parte deste futuro, o que tem relação com o sonho de Alex sobre o túnel vermelho que se divide em dois. O roteiro coeso também serve de base para as impecáveis interpretações do elenco. Vincent Cassel explora muito bem a enorme transformação de Marcus. Típico machão, ele bebe muito e paquera todas as mulheres em uma festa, mas por outro lado, quando está normal, é um cara atencioso, carinhoso e engraçado. Ele não pensa duas vezes na hora de trair Alex no banheiro desta mesma festa, e ao mesmo tempo, vai até o fim do mundo em busca de vingança quando sua mulher é violentada. Quando Marcus vê Alex ensangüentada (em um incrível trabalho de efeitos visuais), por exemplo, o som do coração e o zoom da câmera refletem a angústia dele e a realista reação de Cassel é extremamente bem captada pelo close de Noé. Observe como ele estava bebendo água e sorrindo e, ao ver Alex, sua mudança no rosto causa um enorme impacto, complementada pelo seu comovente e angustiante choro, jogado em cima dela. Um pequeno detalhe nesta cena mostra como julgamos por aparências, quando uma pessoa comenta: “uma prostituta foi estuprada”. Alex não é prostituta, só estava no lugar errado na hora errada.

Pierre, interpretado com competência por Albert Dupontel, é o oposto do descolado Marcus. Centrado e inseguro, consegue o carinho de Alex, mas talvez pela diferença de gostos entre os dois (ela adora dançar e ele não gosta, por exemplo) não conseguiu manter o seu namoro com ela, se tornando “apenas um amigo”. Observe como Dupontel é hábil ao demonstrar que ainda é apaixonado por Alex através de pequenos detalhes como o seu jeito tímido de dançar com ela na festa, como se evitasse um contato maior para evitar ceder à paixão, e a frase preocupada (“É imprudência!”) que só falamos para pessoas que temos carinho, quando ela está saindo da festa. Pierre é também o personagem que tomará a mais surpreendente atitude, mostrando que até mesmo o mais centrado dos homens pode perder a cabeça em algum momento de sua vida. A cena do extintor é com certeza uma das cenas mais violentas e angustiantes que já presenciei em um filme. Completando o elenco principal, Monica Bellucci oferece uma interpretação segura como Alex, e é o grande destaque do longa. Observe a sutileza com que ela diz para uma amiga na festa que está vivendo um momento especial em sua vida. Posteriormente saberemos que ela está grávida, mas a dica já foi dada aqui. Quando faz o teste de gravidez, ela sai do banheiro lentamente, senta, coloca a mão na boca e, levantando os olhos, dá um sorriso. Ainda com a mão na boca, Bellucci dá um suspiro, apóia os cotovelos no joelho e pensa, olhando para o nada. Lentamente ela vai mudando para um olhar mais sério e uma feição de quem está pensativa, demonstrando que está ciente da grande mudança que estaria para acontecer na sua vida. Esta detalhada composição de Bellucci mostra o misto de alegria e preocupação tão comum neste momento. Em seguida ela acaricia a barriga, num movimento típico de quem sabe que está carregando um filho. Mas é na longa e angustiante cena do estupro que Bellucci demonstra todo o seu talento. Cometendo um erro típico das pessoas que estão com raiva, Alex age sem pensar e sai sozinha da festa, recusando o pedido do embriagado Marcus de acompanhá-la. E neste caminho ela irá encontrar o cruel destino que infelizmente estava reservado pra ela. Confesso que mesmo com a absurda cena do extintor, o momento que mais me incomodou foi esta longa cena do estupro, este crime abominável que é cometido contra a mulher. Nesta cena Noé fixa a câmera no chão, como se nós fossemos testemunhas impotentes do terrível ato de violência. E a interpretação de Bellucci é simplesmente perfeita, com as mãos trêmulas, os gritos e os olhos arregalados nos transmitindo com perfeição o tamanho de sua dor e desespero.

O final de Irreversível causa um interessante contraste de sentimentos no espectador. Ao ver Alex com a mão na barriga, Noé faz um travelling que passa pelo quadro de “2001 – Uma Odisséia no espaço”, numa alusão ao filme de Kubrick, que pode ser interpretada como uma referência ao ser que está sendo criado dentro da barriga dela, assim como o bebê do quadro. A referência se repetirá no final com as imagens em preto e branco piscando na tela, o que remete a outro momento de 2001, com a diferença de que lá eram imagens psicodélicas. Ao sair pela janela, o plano termina no jardim, com Alex lendo o citado livro e muitas crianças correndo em volta dela. A fotografia é colorida (toalha laranja, grama verde) e a câmera começa a girar no sentido horário em volta da mangueira, como se fosse o relógio voltando para a realidade. Esta bela cena nos causa uma sensação de alívio, ao ver aquela moça em paz, sonhando com o futuro, num ambiente tão tranqüilo. Porém, as imagens em preto e branco e a frase final “O tempo destrói tudo” nos faz voltar para a triste realidade, lembrando que o final daquela estória era mesmo irreversível. Alex, Pierre e Marcus teriam suas vidas destruídas em ambientes semelhantes, dentro de um corredor vermelho (eles quando entram no Rectum e ela quando entra na passagem subterrânea) e nós não podemos fazer nada a respeito.

Extremamente incômodo e desagradável, Irreversível é o tipo de filme que dificilmente queremos ver novamente. Ao mesmo tempo, é um exemplo claro de que um filme pode ser competente sem necessariamente ser agradável. O impacto provocado pelas cenas realistas, a qualidade das interpretações e a ótima direção nos garantem um filme impecável, que nos obriga refletir sobre importantes questões, mesmo que utilize o choque para isto. É inevitável o sentimento de desconforto quando o filme termina, mas com o passar do tempo, percebemos que é inegável também a grande qualidade da obra.

Irreversivel 

Texto publicado em 17 de Setembro de 2009 por Roberto Siqueira