BONNIE & CLYDE – UMA RAJADA DE BALAS (1967)

(Bonnie and Clyde)

 

Filmes em Geral #22

Dirigido por Arthur Penn.

Elenco: Warren Beatty, Faye Dunaway, Michael J. Pollard, Gene Hackman, Estelle Parsons, Denver Pyle, Dub Taylor, Evans Evans, Gene Wilder, Harry Appling e Mabel Cavitt.

Roteiro: Robert Benton e David Newman.

Produção: Warren Beatty.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Considerado o marco inicial da melhor fase de Hollywood (a chamada “Nova Hollywood”), “Bonnie & Clyde, uma rajada de balas” atingiu em cheio os anseios de uma platéia ávida por filmes diferentes, que fugissem do padrão ético e moral dominante no cinema norte-americano até aquele momento. Com o fim do rígido controle do “Código de Produção” próximo (ele seria substituído no ano seguinte pelo ainda vigente sistema de censura por idades), reforçado pelo turbulento momento vivido pelos estúdios à beira da falência e pela nova e bem sucedida forma de se fazer cinema em outros países como a Itália (neo—realismo, já existente há algumas décadas), o Japão (Akiro Kurosawa) e a França (nouvelle vague), o cinema norte-americano se viu obrigado a abrir as portas para os jovens diretores que surgiam. A soma de todos estes fatores resultou na fase mais frutífera da história de Hollywood e “Bonnie & Clyde” foi o responsável por puxar a fila.

Durante a grande depressão, Bonnie Parker (Faye Dunaway) conhece o ex-presidiário Clyde Barrow (Warren Beatty) enquanto este tenta roubar um carro na frente de sua casa. Atraída pelo rapaz e pela promessa de “fama e glória” da vida de crimes, ela o acompanha e ambos iniciam uma seqüência de assaltos e assassinatos pelas estradas dos Estados Unidos, acompanhados do mecânico C. W. Moss (Michael J. Pollard), a quem conheceram no caminho. Logo depois, Buck (Gene Hackman), o irmão de Clyde recém saído da cadeia, une-se ao grupo acompanhado de sua esposa Blanche (Estelle Parsons), e o quinteto fica famoso em todo país, passando a ser perseguido implacavelmente pela polícia.

“Bonnie & Clyde” é certamente um dos filmes mais importantes e com maior influência na história do cinema. Para entender sua importância, no entanto, é vital contextualizar seu lançamento e entender o que acontecia no cinema e no mundo na época. No final dos anos sessenta, o mundo vivia uma espécie de revolução liderada pelos jovens, com ideais libertários e o famoso lema “paz e amor”. Não à toa, foi nesta época que surgiu o movimento hippie e festivais como o Woodstock, refletindo bem o pensamento do público jovem na ocasião. Influenciados pelos inovadores cineastas da nouvelle vague, que estouraram para o mundo alguns anos antes, além de outros talentos mundo afora como Fellini, Kurosawa e Bergman, um grupo de jovens diretores decidiu mudar radicalmente a forma de fazer cinema em Hollywood, abordando temas nada convencionais e estilizando o visual, inclusive nas cenas violentas. Somado a todos os fatores já citados anteriormente, o caminho estava pavimentado para que diretores talentosos como Penn e atores jovens e ousados como Beatty pudessem produzir e brigar por filmes como “Bonnie & Clyde”, o primeiro desta nova safra (ao lado de “A primeira noite de um homem”) que marcaria a fase áurea do cinema de Hollywood em todos os tempos.

A ousadia temática de “Bonnie & Clyde” aparece logo no início da narrativa, quando Bonnie Parker demonstra interesse pela vida bandida de Clyde (“Como é assaltar?”), seguida pela seqüência em que ambos bebem cerveja, falam sobre armas com certa conotação sexual (repare o olhar sensual de Dunaway para a arma de Beatty) e partem para um assalto, fugindo em disparada num carro em alta velocidade. Somente depois de toda esta aventura é que ambos perguntam “qual seu nome?”. O clima revolucionário ganha força quando o casal fora da lei se depara com uma família despejada e atira contra uma placa, finalizando com a orgulhosa frase “Nós roubamos bancos”. Esta frase volta a aparecer quando o casal se encontra com C.W. Moss e pergunta: “Nós roubamos banco. Há algo de errado nisto?”. A pergunta é direcionada a Moss, mas serve também para a fatia conservadora da platéia. O filme veio para mudar a forma de fazer cinema em Hollywood e conseguiu, inovando também ao humanizar os bandidos, como por exemplo, na cena em que Clyde atira em um homem e sai dizendo que não queria feri-lo. Já não existia mais o certo e o errado. Já não existiam mais os códigos de conduta e moral. Ao constatar que Bonnie e Clyde jamais se arrependeram da vida que levaram, notou-se que a ambigüidade havia chegado ao cinema de Hollywood.

O bom roteiro escrito por Robert Benton e David Newman vai além da ousadia, expondo também o jogo da fama com propriedade, mostrando claramente como as pessoas gostam de ser famosas, como quando um policial orgulhosamente dá entrevista depois de ser pego pelo bando e quando um casal pega carona com o grupo somente para ver o que os amigos pensariam ao ver o nome deles nos jornais. Reforça este argumento o momento em que as pessoas cercam o carro dos bandidos feridos, somente para ver de perto aqueles indivíduos famosos. O roteiro acerta também na citada humanização dos bandidos, também exemplificada no momento em que Bonnie se preocupa com a velhice de sua mãe e demonstra seu medo de perdê-la. O encontro das duas, aliás, ilustra a qualidade da direção de fotografia de Burnett Guffey, que apresenta uma imagem sem vida, que simboliza a relação entre mãe e filha que se esvai.

Com um bom roteiro nas mãos e com liberdade para criar, o talentoso Arthur Penn não desperdiçou a oportunidade. Graças à sua coragem, o longa causou impacto não somente pelo tom da narrativa, mas também pelo aspecto visual. A violência extremamente gráfica aparece em muitas cenas, como no tiro de Clyde na cara de um homem, no massacre de Buck e no tiro que acerta Bonnie. Penn coloca ainda em diversos momentos a câmera sob o ponto de vista de Clyde, jogando o espectador para a perspectiva do bandido e fazendo com que este torça por ele. A própria fotografia ensolarada de Burnett Guffey romantiza e glorifica a vida do casal através de suas cores quentes, além de conferir um ar mais realista à narrativa ao escolher um visual mais cru e granulado. Os figurinos charmosos de Theadora Van Runkle (o chapéu de Bonnie, em especial) também ajudam a criar a imagem de “bandidos simpáticos”, reforçada pela própria atitude deles, como quando Clyde pergunta a um senhor se o dinheiro que ele segura é dele e, ao ouvir a resposta positiva, diz para o senhor ficar com o dinheiro. A primeira seqüência do tiroteio, com o grupo preso numa casa, é sensacional e reforça a qualidade da direção de Penn, que garante um ritmo frenético à cena sem jamais soar confuso, graças também à excelente montagem de Dede Allen, que alterna entre os planos com incrível vigor. Vale destacar também a qualidade do som, que permite distinguir com precisão desde pequenas vibrações até os barulhentos tiros. Voltando ao trabalho excepcional de Dede Allen na montagem, podemos observar também uma interessante passagem no tempo, feitas através das notícias de um jornal (repare a alegria de todos, especialmente de Bonnie ao ser citada), além da elegante transição da noite para o dia feita com o ferido Buck deitado no colo do irmão. Já o segundo tiroteio, com o grupo preso dentro de uma cabana, é ainda mais violento e resulta na morte de Buck (e a fotografia sombria no momento em que ele é baleado já indicava seu trágico destino). Finalmente, Penn confirma sua habilidade durante uma perseguição de carro da polícia, criando uma seqüência empolgante, auxiliado também pela trilha sonora agitada e divertida de Charles Strouse. Vale observar também a composição do plano seguinte, onde podemos observar o casal Velma (Evans Evans) e Eugene (Gene Wilder) namorando e, ao fundo, o carro deles sendo roubado, seguido pela engraçada perseguição que resulta na amizade entre todos os envolvidos.

E porque motivo duas pessoas comuns fariam amizade com um grupo de bandidos? A resposta é simples e exemplifica uma das mensagens principais do filme. É a mesma razão que fez Bonnie se apaixonar por Clyde, mesmo sem conseguir transar com o rapaz. A fama, e a glória que ela traz, encorajava toda aquela gente e o longa retrata isto claramente. Era essencial, no entanto, que a química do casal principal convencesse e felizmente Dunaway e Beatty se saem muito bem nesta tarefa, conquistando a empatia do espectador. Repare, por exemplo, a empolgação de Bonnie quando começa sua vida com Clyde e seu jeito irônico de falar, como quando zomba de Moss (“Uh, ele é fichado…”). Repare ainda como a garota não se abala com o assassinato de um homem, agindo tranquilamente no cinema e na conversa do casal num quarto. Ela gostava daquela vida e Dunaway retrata isto muito bem, como podemos notar no brilho de seus olhos quando Clyde a convida para viver com ele. Mas nem tudo são flores na relação do casal e na primeira briga, ambos jogam na cara um do outro o que lhes desagrada. Esta relação, aliás, é muito bem resumida no belo texto de Bonnie para os jornais. Beatty, por sua vez, demonstra muito bem o incomodo de Clyde com a impotência, refletindo em seu rosto a amargura que sentia, além de demonstrar de maneira visceral sua raiva com a notícia de um jornal sobre a morte do irmão. Clyde, aliás, extravasava sua impotência em seus crimes. Sua arma fazia aquilo que seu órgão não conseguia. Quando ele finalmente consegue se relacionar sexualmente com Bonnie, algo sugerido na cena em que conversam na grama, seus crimes terminam. Já Gene Hackman confirma todo seu talento, atuando com leveza e espontaneidade na pele do irmão de Clyde. Solto, sempre sorridente e fazendo piadas, seu Buck Barrow demonstra incrível afinidade e empatia com o irmão, graças ao talento do ator. Repare como os irmãos não conseguem parar de falar quando se reencontram, ao contrário das mulheres que ficam mudas no carro. Em seguida, quando passam a viver dentro de uma casa numa vida mais “normal”, é a vez de Bonnie deixar claro o quanto se sente deslocada, o que se agrava quando ela entra em conflito com Blanche, a esposa de Buck muito bem interpretada por Estelle Parsons. Completando o elenco, Michael J. Pollard interpreta o fiel C. W. Moss e Dub Taylor vive o esperto Ivan Moss, que tem participação chave na trama, numa cena onde sua conversa com um policial não necessita de palavras para indicar o que irá acontecer. Vale notar também sua aparente simpatia pelo famoso casal, desmascarada quando entra na casa com seu filho.

A cena final de “Bonnie & Clyde” é emblemática e extremamente bem conduzida por Penn. A simples troca de olhares do casal indica o trágico destino de ambos. E até mesmo neste momento eles são capazes de trocar olhares apaixonados, como se estivessem satisfeitos por terem chegado ao fim juntos. A condução da cena é maravilhosa, graças também à montagem que alterna entre os planos do banho de sangue com precisão e capta com detalhes a reação de cada personagem presente. Penn estiliza a cena ainda mais com o uso da câmera lenta, seguido pelo travelling através do carro destruído que finaliza com o plano silencioso em que as pessoas olham pra dentro dele. Chegava ao fim a lendária história do casal. E enquanto a tela escurecia, a platéia tinha a certeza de ter assistido algo diferente. Iniciava-se ali uma nova era em Hollywood.

Assim como o casal de bandidos que o inspirou, “Bonnie & Clyde, uma rajada de balas” saiu atirando em tudo que tinha em seu caminho, deixando marcas por onde passou. Mas ao contrário do final trágico de Bonnie Parker e Clyde Barrow, o longa resistiu aos ataques que sofreu e seu lançamento permanecerá eternamente na galeria dos momentos mais importantes da história do cinema e da cultura norte-americana.

Texto publicado em 08 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

8 comentários sobre “BONNIE & CLYDE – UMA RAJADA DE BALAS (1967)

  1. cross98 14 maio, 2012 / 7:04 pm

    Ei Beto, qual foi o ultimo filme (se isso existe fale, se não, não me leve a mau) da Nova Holiwood (não sei se esse é o nosso momento do cinema)

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    • Roberto Siqueira 24 maio, 2012 / 11:05 pm

      “O Portal do Paraíso” marcou o fim do movimento Mateus.
      Abraço.

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  2. francisco 23 abril, 2012 / 8:02 pm

    Realmente Roberto, um belo exemplo de cinema levado à sério esta sensacional e trágica ‘aventura’ do irrequieto e talentoso Arthur Penn que um ano antes com aquele instigante “Caçada Humana” (the Chase) já havia espetado o ego da hipocrisia reinante daquela época muito dominada pelo falso-moralismo. Outro detalhe que gostaria de comentar é a comparação do final de Bonnie & Clyde com os finais de outros importantes filmes posteriores sobre duplas de simpáticos delinquentes como “Butch Cassidy” e “Thelma & Louise” e lembrar que a narrativa foi bem menos generosa com o jovem casal de “Rajadas de balas”, numa das cenas mais impactantes e surpreendentes da história do cinema. Parabéns pelo excelente comentário, grande abraço !

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    • Roberto Siqueira 2 maio, 2012 / 10:11 pm

      Obrigado pelos elogios e pelo ótimo comentário Francisco.
      A cena final é realmente impactante.
      Abraço.

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  3. Filipe 31 janeiro, 2012 / 12:16 pm

    É sabido que esse filme reinventou o cinema estadunidense, por abordar temas tabus e por ser um trabalho mais autoral, principais características do cinema moderno na época. Que teve tudo haver com o clima rebelde e libertário do fim dos anos 60.

    Na minha opinião Bonnie & Clyde é uma mistura de Acossado (Jean Luc Goddard) ícone da Nouvelle Vague com Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha) ícone do Cinema Novo:

    Acossado: Por ter também um charmoso casal protagonista, que levam a vida sem responsabilidades, fugindo da lei, dirigindo carros em alta velocidade e se comportando como rebeldes sem causa (Juventude Transviada).

    Deus e o Diabo na Terra do Sol: Pela questão social, os EUA dos anos 30 (Grande Depressão) e o Nordeste Brasileiro são semelhantes. Pela idealização do fora da lei ou mito do Robin Hood, assim como o Cangaceiro foi considerado um herói pelos oprimidos por confrontar o poder dos coronéis, também havia a mesma visão com o assaltante de bancos, que para o desempregado também era visto com heroísmo por roubar os bancos que roubavam dos cidadãos e geravam crises.

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    • Roberto Siqueira 11 fevereiro, 2012 / 10:49 am

      Olá Filipe,
      Muito interessante seu comentário. Parabéns!
      Um grande abraço.

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