(What Dreams May Come)
Videoteca do Beto #182
Dirigido por Vincent Ward.
Elenco: Robin Williams, Cuba Gooding Jr., Max von Sydow, Annabella Sciorra, Jessica Brooks Grant, Josh Paddock e Rosalind Chao.
Roteiro: Ronald Bass, baseado em livro de Richard Matheson.
Produção: Barnet Bain e Stephen Simon.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Em certo momento de “Amor Além da Vida”, a esposa do protagonista questiona como ele poderia ser capaz de perdoá-la após ter contribuído para a morte dos filhos, a dele próprio e ainda ter se suicidado. Sua resposta: “Porque você é uma pessoa tão maravilhosa que me faz querer trocar o céu pelo inferno só para estar ao seu lado”. Este tipo de frase perigosa, que caminha no limite entre o brega e o poderoso, pode definir bem o longa de Vincent Ward. Durante boa parte do tempo, o diretor explora muito bem o potencial dramático da história, nos levando por um caminho já conhecido, é verdade, mas enriquecido por um visual belíssimo e por momentos interessantes como este.
Escrito por Ronald Bass, baseado em livro de Richard Matheson, “Amor Além da Vida” tem início quando Chris Nielsen (Robin Williams) conhece a bela Annie (Annabella Sciorra) num lago europeu. Felizes, eles se casam e constituem família, até que um terrível acidente tire a vida de seus dois filhos. Após superar a fase mais traumática, o casal reencontra a alegria de viver, mas outro acidente automobilístico provoca a morte de Chris, deixando Annie solitária e profundamente deprimida. Enquanto Chris tenta compreender e se adaptar ao paraíso, Annie comete suicídio. Impossibilitado de ver a esposa, Chris decide então tentar resgatá-la ao lado do amigo Albert (Cuba Gooding Jr.) e de um misterioso guia (Max von Sydow), que insiste em alertá-lo para o perigo da missão.
A vida após a morte sempre representou um mistério e um território perigoso para os roteiristas, já que é praticamente impossível não encontrar furos em quase todas as teorias a respeito e, o que é pior, quase sempre o longa pode encontrar rejeição por parte daqueles que não compartilham da mesma visão sobre o tema. Assim, tanto Ronald Bass como o diretor Vincent Ward são inteligentes o bastante para focarem muito mais no relacionamento do casal protagonista em detrimento de mirabolantes explicações que buscassem tornar aquele universo mais verossímil. Trabalhando na dinâmica do relacionamento entre Chris e Annie desde o início, o diretor busca criar empatia entre o casal e a plateia, o que é essencial para que a narrativa funcione dramaticamente.
Obviamente, a boa química existente entre Robin Williams e Annabella Sciorra colabora bastante neste sentido, já que o espectador acredita no amor dos personagens e, consequentemente, na dor deles quando as tragédias surgem em suas vidas. Ainda assim, inicialmente temos a sensação de que a perda dos filhos não interferiu tanto na relação deles, já que um salto de quatro anos na narrativa não nos permite acompanhar a fase mais traumática pós-acidente, que seria revelada somente depois através do uso de flashbacks. É somente após a morte de Chris que sentimos o peso da dor que paira sobre Annie – e só então somos apresentados ao lado depressivo da moça, até então escondido sob aquela carcaça de felicidade.
Oscilando bem entre a encantadora garota que surge no lago e a sofrida mulher que não consegue superar a perda dos filhos, Sciorra oferece uma performance sensível, que transmite muito bem os fortes sentimentos da personagem e lhe garante destaque mesmo num elenco recheado com nomes importantes como Cuba Gooding Jr., que mesmo com seus costumeiros momentos de exagero se sai bem como o carismático amigo que recepciona Chris no paraíso, além é claro de Max von Sydow, que tem uma marcante participação na sombria sequência da busca por Annie.
No entanto, o destaque do elenco fica mesmo para Robin Williams, que também oferece uma atuação sensível e poderosa, transitando entre o encantamento na chegada ao paraíso e a desilusão após saber do suicídio da esposa. Expressivo, ele transmite com competência a dor do personagem no belo discurso sobre o homem que seu filho poderia ter sido, assim como é muito convincente a sua devoção diante da esposa na sequência em que ele tenta resgatá-la no inferno. O tempo inteiro, nós acreditarmos em seu sofrimento sem jamais temos a sensação de que ele desistirá de Annie, e isto é mérito do ator.
Emocionante também é o seu reencontro com a filha Marie que, por outro lado, serve também para revelar um importante artifício narrativo que esvazia a próxima revelação da trama. Assim, quando Chris começa a refletir sobre as próprias palavras e recorda que só seria capaz de enfrentar o inferno com determinada pessoa ao lado, fica evidente que Albert na verdade é o seu filho – ao que parece, nem assim o diretor confia na inteligência do espectador, já que ele faz questão de inserir planos rápidos do rosto de Cuba Gooding Jr. instantes antes da “revelação”. Mesmo previsível, o momento tem seu impacto devido à carga emocional naturalmente envolvida no reencontro entre pai e filho.
Alternando entre o presente no paraíso e o passado que revela detalhes importantes da vida do protagonista, a montagem de David Brenner e Maysie Hoy também transita entre o pós-vida de Chris e a vida terrena de sua esposa até o instante em que o suicídio dela é anunciado e altera radicalmente o tom da narrativa, numa mudança que terá reflexo quase que imediato também na belíssima fotografia do português Eduardo Serra, que passa a adotar tons obscuros que transformam os ótimos cenários concebidos pelo design de produção de Eugenio Zanetti em locais extremamente sombrios.
Inicialmente buscando realçar as lindas paisagens do colorido paraíso, a fotografia oscila de acordo com o andamento da narrativa, transmitindo através do visual os sentimentos pretendidos pelo diretor. Observe, por exemplo, como a cor roxa, normalmente associada ao misticismo ou vista como símbolo de espiritualidade, magia e mistério, predomina em todas as cenas após a morte de Chris, simbolizando sua luta para superar o trauma e encontrar a paz (para os católicos, o roxo tem o significado de melancolia e penitência). Apoiado pela ótima fotografia e pelos excepcionais efeitos visuais que dão vida aos quadros que fizeram parte da história do casal, o diretor trabalha muito bem na composição dos planos, criando um filme visualmente belíssimo.
Esta marcante construção visual das cenas gera imagens que ficam na memória mesmo após o término do longa, como o terrível mar de rostos no inferno e a bagunçada e obscura casa em que Chris reencontra Annie, o que só reforça o ótimo trabalho de design de produção de Zanetti. A cena na casa, aliás, também escancara o eficiente design de som que nos ambienta ao paraíso e ao inferno com precisão. Observe, por exemplo, como os pequenos barulhos são ampliados nesta cena, como o som de uma porta batendo ou o movimento corporal dos personagens, numa distorção da realidade que torna aquele local ainda mais sombrio e amplia a sensação de incômodo no espectador. E finalmente, vale mencionar a bela trilha sonora de Michael Kamen, que surge melancólica quando deve ser, mas também evocativa quando o momento pede por isso.
É uma pena, portanto, que, após nos levar por cenários tão deslumbrantes e nos envolver completamente, o desfecho de “Amor além da vida” seja tão previsível e clichê, seguindo o mesmo caminho já percorrido por tantos e tantos filmes semelhantes anteriormente. Mas ainda que sua história de amor não fuja do convencional, a maneira como ela é contada, seu visual arrebatador, as boas atuações e a direção eficiente garantem um bom resultado.
Assim, “Amor Além da Vida” está longe de ser aquele quadro intrigante que nos permite extrair inúmeros significados. Mas, enquanto passamos por ele, não podemos conter o impulso de ao menos dar uma olhadinha, tamanha a sua beleza plástica. E quando vamos embora, seguimos sem refletir a respeito, mas a beleza daquelas imagens permanece um bom tempo conosco.
Texto publicado em 27 de Janeiro de 2014 por Roberto Siqueira