À ESPERA DE UM MILAGRE (1999)

(The Green Mile)

5 Estrelas 

 

Videoteca do Beto #223

Dirigido por Frank Darabont.

Elenco: Tom Hanks, David Morse, Michael Clarke Duncan, Bonnie Hunt, James Cromwell, Jeffrey DeMunn, Barry Pepper, Doug Hutchison, Michael Jeter, Graham Greene, Sam Rockwell, Patricia Clarkson, Harry Dean Stanton, Bill McKinney, Brent Briscoe, Gary Sinise, Rachel Singer, William Sadler, Dabbs Greer e Eve Brent.

Roteiro: Frank Darabont.

Produção: Frank Darabont e David Valdes.

À Espera de um Milagre[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Frank Darabont parece ter nascido para adaptar os livros de Stephen King para o cinema. Após realizar um dos filmes mais marcantes de sua geração (a obra-prima “Um Sonho de Liberdade”), o diretor resolveu retornar ao ambiente prisional e aos contos de King e, mais uma vez, nos presenteou com um filme tocante, capaz de prender nossa atenção mesmo com sua longa duração e, ao final dela, nos jogar para fora da sala (de projeção ou não) com a sensação de termos testemunhado algo realmente impactante.

Escrito, dirigido e produzido pelo próprio Darabont (a produção dividida com David Valdes), “À Espera de um Milagre” narra uma parte importante do passado do ex-chefe da guarda de um corredor da morte nos anos 30 chamado Paul (Tom Hanks/Dabbs Greer), que vê sua vida mudar completamente após a chegada do condenado John Coffey (Michael Clarke Duncan), acusado de estuprar e matar duas crianças. Tendo que lidar com o complicado cotidiano da “milha verde” (nome dado ao local pela cor de seu chão) ao lado dos colegas de profissão Brutus Howell (David Morse), Dean Stanton (Barry Pepper), Harry Terwilliger (Jeffrey DeMunn) e Percy (Doug Hutchison), Paul vive uma experiência que refletirá no resto de sua vida nos poucos dias que convive com aquele homem diferenciado.

Apostando numa estrutura narrativa que utiliza um longo flashback após uma pequena introdução, Darabont nos leva aos anos 30 com competência através da precisa ambientação do design de produção de Terence Marsh e dos figurinos de Karyn Wagner, responsáveis pelos carros, uniformes, objetos de decoração das casas e da prisão, entre outros detalhes importantes para nos transportar para aquela época. No entanto, este nível de realismo contrasta diretamente com a abordagem fabulesca escolhida pelo diretor, evidente através dos tons em sépia utilizados pelo diretor de fotografia David Tattersall que, como de costume, remetem ao passado, mas ao mesmo tempo reforçam esta atmosfera de fábula pretendida por Darabont, o que se revela uma decisão inteligente e coerente com o material que inspira o longa, já que o roteiro traz elementos nada naturais como os misteriosos milagres de John e a presença de um rato nada comum.

A metáfora envolvendo o rato, aliás, é bem interessante. Enquanto alguns têm o impulso inicial de querer pisar no rato por considerá-lo impuro e nada digno de conviver conosco, outros preferem adotá-lo, dar carinho e proteção, compreendendo seu universo, exatamente como fazem a maioria daqueles guardas diante dos condenados à pena de morte. Assim, “À Espera de um Milagre” claramente questiona a nossa postura enquanto sociedade diante daqueles homens. Enquanto alguns tentam criar um clima ameno antes das execuções (“Você devia ver esse lugar como uma ala de tratamento intensivo”, diz Paul para Percy), representando a parcela da sociedade que tenta encontrar alguma humanidade naqueles condenados, outros são representados pelo agressivo Percy, que inferniza cada minuto de vida restante deles (já ouviu o jargão “Bandido bom é bandido morto”?).

Até por isso, a atmosfera fabulesca dá lugar a uma aura muito mais pesada na noite das execuções, especialmente na execução de Delacroix, na qual a chuva que cai e os raios que iluminam o local antecipam a sensação de que algo terrível iria acontecer – até mesmo a trilha sonora de Thomas Newman (parceiro de Darabont em “Um Sonho de Liberdade”) reflete isso em seus acordes mais pesados. E de fato sua execução é a que tem o maior impacto visual, servindo para escancarar a crueldade do processo de aplicação da pena de morte e arrancando expressões de dor e angústia até mesmo das pessoas que assistiam antes satisfeitas à tudo aquilo – e, provavelmente, do próprio espectador, que naquele instante já estava familiarizado com Delacroix e, por isso, sofre ainda mais.

Tons em sépiaMetáfora envolvendo o ratoExecução de Delacroix

Aliás, um dos segredos do sucesso de “À Espera de um Milagre” está no excelente desenvolvimento de seus personagens, conduzido com cuidado e sem pressa alguma, mesmo que para isso o ritmo empregado pelo montador Richard Francis-Bruce (outro que trabalhou em “Um Sonho de Liberdade”) torne o filme mais extenso. Ao longo da narrativa, nos tornamos tão próximos daquelas pessoas que praticamente somos confidentes de suas frustações, anseios e pensamentos mesmo dentro de um ambiente tão cruel. Ao fazer isso, o roteiro nos coloca do outro lado do corredor da morte, nos fazendo sentir o peso das horas que aproximam cada vez mais aquelas pessoas do fim. Por isso, quando vemos a forte imagem do rosto de Bitterbuck (Graham Greene) após sua execução, por exemplo, imediatamente lembramos seu tocante diálogo com Paul momentos antes e sentimos.

Assim como ocorre na parte técnica, alguns nomes do elenco também haviam trabalhado com Darabont em “Um Sonho de Liberdade”, como William Sadler que aqui tem rápida participação como o pai das garotas. Outra parceria que se repete rapidamente é entre Tom Hanks e o ótimo Gary Sinise, na cena em que o advogado de defesa Burt fala sobre John Coffey e o compara ao seu vira-lata, num discurso racista ofensivo e nojento que representa o pensamento de boa parte da sociedade daquela época. Já o arruaceiro Wild Bill é interpretado por Sam Rockwell de maneira estridente e com boas doses de humor, o que funciona para quebrar o ritmo pesado que a narrativa poderia ter ali. Assim, apesar do ambiente hostil, tanto esteticamente quanto pela maneira como conduz a narrativa, Darabont não transforma “À Espera de um Milagre” num filme pesado em boa parte do tempo, o que é essencial para que o espectador não sinta sua longa duração.

Ainda entre o elenco secundário, Brutus Howell é vivido por David Morse como alguém forte, determinado, mas dono de um grande coração, convencendo como um guarda competente em sua função e muito humano. Doug Hutchison, por sua vez, cria um Percy extremamente odiável e unidimensional, parecendo agir somente pelo prazer de ver aqueles condenados sofrerem. O contraste entre eles, aliás, reforça a tese de que Darabont deseja erguer um espelho diante do espectador e perguntar com quem ele se identifica. Ator ideal para um papel que exige a confiança e a credibilidade do espectador, Tom Hanks assume Paul com seu carisma inegável, mostrando firmeza quando necessário, mas conferindo imensa humanidade aquele homem que tem sua vida transformada após a chegada de John – e se acreditamos em tudo que vemos na tela é também por que sabemos que o narrador da história é ele.

No entanto, é inegável que o dono de “À Espera de um Milagre” é mesmo Michael Clarke Duncan. Ciente disso, Darabont segura ao máximo até revelar o rosto de John Coffey, brincando com nossa expectativa o quanto pode até revelar aquele homem imponente fisicamente e dono de uma voz tão marcante, mas que, ao contrário do que o preconceito pode nos fazer pensar, se destaca mesmo pela sensibilidade. O sucesso do personagem, obviamente, passa muito pela performance estupenda de Duncan, numa atuação hipnótica que conquista o espectador com seu carisma e a dor palpável do personagem diante de tanto sofrimento neste mundo. Transbordando amor e compaixão, ele transforma aquele condenado em nosso porto seguro no filme, encarnando o papel de uma espécie de anjo naquela fábula sobre a vida e a morte – e o plano final da linda cena em que ele assiste a um filme pela primeira vez escancara isso. Quando John finalmente diz que está cansado, compreendemos suas motivações e aceitamos sua decisão, mesmo contrariados por entender o que ela representa. Jamais sabemos desde quando John perambula pela Terra ajudando as pessoas, mas seu olhar pesado e sua expressão cansada nos dão a entender que já faz tempo suficiente para que ele decida deixar tudo isso para trás.

Talvez o único senão do roteiro seja a previsibilidade da revelação de que John é inocente, evidente desde o princípio. Uma confirmação de que ele era culpado teria um peso dramático infinitamente maior, mas destoaria da natureza bondosa do personagem, por isso, imaginamos desde o início que ele estava na realidade tentando salvar as meninas quando foi capturado. Por outro lado, o roteiro acerta em cheio ao não explicar a natureza do dom de John, deixando no campo da imaginação qualquer explicação e reforçando a característica fabulesca da narrativa.

Imensa humanidadeEspécie de anjoCura de Melinda

São tantos os belos momentos do filme que fica difícil destacar alguns, mas podemos citar a cura de Melinda (Patricia Clarkson), carregada de energia e que é um destes instantes em que podemos sentir a dor de John, além do diálogo entre Paul e Brutus sobre a imaginária Mouseville com Delacroix, que reforça o forte traço de humanidade presente naqueles personagens, numa cena interrompida de maneira brusca pela ação cruel de Percy, que pisa no rato e nos leva a outro milagre de John.

Conduzindo a narrativa com segurança e sem medo de investir um longo tempo na construção dos personagens e suas relações, Darabont chega ao ato final ciente do tamanho da carga emocional que a execução de John terá. Assim, conduz a cena com calma, nos colocando ao lado do prisioneiro sem jamais nos deixar esquecer a dor daqueles pais que perderam suas preciosas filhas, numa cena tocante e triste. A qualidade das interpretações de todo o elenco neste momento torna tudo ainda mais real, levando personagens e plateia às lágrimas.

Tocando mesmo que superficialmente no difícil tema da pena de morte, “À Espera de um Milagre” acaba se revelando como uma reflexão sobre a natureza da morte. Qual o papel dela em nossas vidas? Conseguiríamos lidar com o fardo do passar dos anos e da perda das pessoas amadas caso fossemos agraciados com a eternidade? São inúmeras questões levantadas em meio a uma narrativa repleta de amor, bondade e empatia. Tudo isso, no menos improvável dos ambientes. Darabont é mesmo um milagreiro.

À Espera de um Milagre foto 2Texto publicado em 14 de Março de 2016 por Roberto Siqueira

O PREÇO DE UM RESGATE (1996)

(Ransom)

3 Estrelas 

Videoteca do Beto #144

Dirigido por Ron Howard.

Elenco: Mel Gibson, Rene Russo, Gary Sinise, Delroy Lindo, Liev Schreiber, Lili Taylor e Brawley Nolte.

Roteiro: Richard Price e Alexander Ignon.

Produção: Brian Grazer, B. Kipling Hagopian e Scott Rudin.

O Preço de um Resgate[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucas situações devem ser mais desesperadoras do que aquela que move “O Preço de um Resgate”. Por isso, é uma pena constatar que Ron Howard e sua equipe falhem ao não explorar todas as possibilidades oferecidas pelo tema abordado, ainda que, dramaticamente, o diretor consiga provocar impacto, baseando-se essencialmente nas ótimas atuações de seu elenco. O resultado é um filme eficiente que, nas mãos de um diretor um pouco mais ousado, poderia ser um complexo estudo sobre os efeitos trágicos que tal situação pode provocar em uma família.

Escrito a quatro mãos por Richard Price e Alexander Ignon (baseado no filme “Decisão Amarga”, de 1956), “O Preço de um Resgate” nos apresenta Tom Mullen (Mel Gibson), o milionário dono de uma companhia de aviação que tem o filho Sean (Brawley Nolte) sequestrado num evento na cidade e se vê obrigado a pagar os dois milhões de dólares exigidos pelos criminosos em troca do resgate do filho. Apoiado pela esposa Kate (Rene Russo) e sob a orientação do agente Lonnie (Delroy Lindo), ele decide seguir as orientações, mas devido à inesperada interferência do FBI, a operação falha e culmina na morte de um dos bandidos, levando à ira o mentor do sequestro Jimmy Shaker (Gary Sinise). Pai e sequestrador passam então a discutir por telefone com frequência e, com os ânimos elevados, Mullen começa a agir de maneira completamente irracional.

Apresentada inicialmente como uma família feliz e bem sucedida, os Mullen (como toda família, aliás) também escondem seus problemas sob aquela fachada de riqueza e prosperidade escancarada em sua vistosa mansão (design de produção de Michael Corenblith), o que é bom, pois aproxima a família do espectador. Neste sentido, aliás, é ótimo que o roteiro evite transformar o longa numa disputa entre mocinho e bandido, driblando o maniqueísmo e a santificação de Tom logo de cara através de seu problema com Jackie Brown. Fugindo de clichês básicos através de pequenos detalhes (repare, por exemplo, que a primeira ligação após o sequestro não é do sequestrador), os roteiristas anunciam gradativamente que a narrativa tomará um caminho diferente do usual, preparando o espectador para o que virá pela frente após o sequestro do garoto. Vale notar ainda como, ainda que apenas superficialmente, o roteiro aborda temas adjacentes interessantes, como o comportamento nada racional da imprensa nestas situações.

Família feliz e bem sucedidaVistosa mansãoComportamento nada racional da imprensaPreparando a plateia para o sequestro desde os primeiros minutos de projeção, Ron Howard faz questão de ressaltar num plano detalhe a tatuagem no pescoço de uma garçonete durante o evento que abre o longa, da mesma maneira que faz com um dos sequestradores enquanto este prepara o cativeiro. Assim, quando vemos a mão tatuada pegando um copo acompanhada pela trilha sonora sombria (e clichê!), já sabemos que os criminosos estão presentes no parque, iniciando o sequestro que se confirmará num movimento de câmera interessante, no qual num instante estamos acompanhando Sean andando pelo parque e, após a câmera passar por trás de uma pilastra, já não vemos mais o garoto. Além de demonstrar de maneira eficiente o drama dos pais neste momento, o diretor também acerta na tensa sequencia da entrega do dinheiro, contando com o auxilio da montagem dinâmica de Dan Hanley e Mike Hill para imprimir um ritmo intenso que deixa a plateia em frangalhos, reforçada pela trilha acelerada de James Horner. Mas, se acerta no tom de urgência empregado nos momentos de tensão, Horner cai num velho clichê ao utilizar o rock pesado para embalar as ações dos sequestradores, esvaziando seu trabalho na composição da trilha sonora.

Tatuagem no pescoço de uma garçoneteMão tatuada pegando um copoO sequestroAtravés das cores frias da fotografia de Piotr Sobocinski e dos figurinos de Rita Ryack, Howard cria um visual acinzentado que ajuda a manter o tom sóbrio exigido pela narrativa. Por outro lado, o diretor aposta no uso frequente do zoom in e do zoom out para realçar as reações dos atores, transmitindo a atmosfera de tensão que é complementada pelo movimento agitado da câmera em diversos momentos, como quando os sequestradores entram em contato com os pais do garoto. O diretor ainda reflete bem a angústia que as horas representam para qualquer pai que enfrente esta situação, mostrando-o prostrado diante do telefone, como se implorasse pela chamada que determinaria as condições exigidas pelos criminosos para acabar com aquele pesadelo.

Cores friasAtmosfera de tensãoProstrado diante do telefoneFuncionando como um porto seguro para aqueles pais desesperados, o agente Lonnie de Delroy Lindo é obrigado a andar no fio da navalha, tentando equilibrar todos os lados daquela equação. Demonstrando autoridade quando preciso, mas também sabendo ser compreensivo nos momentos mais delicados, o agente se sai bem na difícil tarefa e o ator é responsável direto por isso. Entretanto, para que esta situação funcione dramaticamente, é essencial que o espectador acredite que o garoto corre perigo de fato e, por isso, é fundamental que os sequestradores surjam falando abertamente em matar o garoto, deixando claro que aqueles criminosos representam uma ameaça real. Por outro lado, os conflitos entre os sequestradores são essenciais para que a reviravolta provocada pela oferta de Tom tenha algum efeito na plateia, já que, desta forma, nós acreditamos que uma recompensa milionária poderia provocar o desequilibro daquele grupo pouco homogêneo.

Agente LonnieAmeaça realConflitos entre os sequestradoresSurgindo inicialmente como um policial interessado no comportamento de um suspeito numa loja, Jimmy Shaker invade a casa e revela sua participação no sequestro, pra surpresa da plateia. Exibindo um ar ameaçador convincente, Gary Sinise impõe respeito como o mentor do sequestro, demonstrando a autoridade esperada de um líder e, o que é ainda melhor, evidenciando o desequilíbrio que as atitudes de Tom causam no personagem, como notamos, por exemplo, logo após o anúncio da recompensa que o deixa transtornado. A presença imponente de Sinise é essencial também para que Gibson não ofusque o sequestrador com suas explosões, já que o espectador, ainda que inconscientemente, carrega na memória a persona cinematográfica do ator, normalmente associado a heróis que enfrentam a tudo e a todos para conseguirem o que querem.

Policial interessado no comportamento de um suspeitoMentor do sequestroTranstornadoDemonstrando uma química também já conhecida pelo público desde “Máquina Mortífera 3”, Gibson e Russo convencem como casal, demonstrando afinidade e cumplicidade na mesma intensidade em que enfrentam seus problemas, o que é natural em qualquer relacionamento. Entretanto, as atuações de ambos ganham força mesmo após o sequestro, quando ilustram muito bem o drama dos pais e os conflitos entre o casal que as circunstâncias naturalmente evocam. A partir deste instante, praticamente podemos sentir a dor de Kate graças ao ótimo desempenho de Russo, sempre com o olhar expressivo e desesperado que qualquer mãe lançaria nesta situação. Gibson, por sua vez, parece sempre prestes a explodir, algo também natural na condição dele. Pra completar, a conversa inicial entre Tom e Sean na cama logo após o evento inicial serve para demonstrar a afinidade entre eles e criar empatia com a plateia, o que é essencial para aumentar o impacto que a cena do sequestro naturalmente já provocaria.

Afinidade e cumplicidadeDor de KateConversa inicial entre Tom e SeanPor tudo isso, nós não nos surpreendemos quando Tom, ao ver as imagens do filho numa televisão, decide mudar o jogo e inverter a situação – e a expressão no rosto de Gibson permite que a plateia antecipe seus pensamentos, num momento em que não sabemos pelo que torcer, já que esta atitude ousada poderia colocar em risco a vida de seu filho. Com a voz firme, o olhar frio e o coração cheio de ódio, o pai desesperado anuncia que o resgate agora seria uma recompensa paga a quem trouxer o sequestrador “vivo ou morto”, dividindo opiniões não apenas no ambiente diegético (repare os olhares das pessoas que acompanham o anúncio no estúdio), mas também na plateia. Se por um lado aquele ato poderia significar a desestabilização completa do grupo de sequestradores, por outro poderia definir a morte de seu filho – algo que, convenhamos, é um risco que pai algum no mundo gostaria de correr. Pode até funcionar no filme, mas está bem distante da realidade. Ciente disto, Howard faz questão de inserir imagens da cova sendo preparada para Sean logo após o anúncio, criando um conforto artificial no espectador ou, em outras palavras, manipulando nossa visão do tema ao aliviar a loucura cometida por Tom (o que é uma pena, pois esvazia completamente a discussão que a cena poderia gerar). É como se o diretor e os roteiristas dissessem: “Está tudo bem, eles iam matar o garoto de qualquer jeito”.

Expressão no rostoOlhares das pessoas no estúdioCova preparada para SeanCom este cenário de tensão montado, chegamos ao grande momento de “O Preço de um Resgate”, quando sequestrador e pai discutem ao telefone e levam o publico a pensar que Sean foi morto. Demonstrando o desespero do pai de maneira tocante, Gibson se destaca na cena, indo da ira ao desespero e às lagrimas em segundos, seguido de perto pela explosão de Russo (e a distancia pela ira de Sinise), numa cena dramaticamente densa que, infelizmente, é quase destruída graças a um plano rápido que revela que Sean está vivo. Infelizmente, Howard não teve coragem de estender mais o suspense, o que poderia suscitar reflexões interessantes na plateia. Ainda assim, o diretor (e os montadores) se sai bem ao criar um clima tenso através da troca rápida de planos, encerrando a cena num belo plongè que diminui o casal e ilustra sua tristeza, embalado pela trilha melancólica.

Sequestrador e pai discutem ao telefoneDa ira ao desespero e às lagrimasSean está vivoA discussão, reforçada pelo aumento da recompensa, leva os sequestradores ao desequilíbrio total. Esperto, Shaker decide então eliminar o grupo e sair como herói, numa saída inteligente que poderia elevar “O Preço de um Resgate” a outro patamar. Só que, mais uma vez, Howard e seus roteiristas demonstram covardia e optam por encerrar o longa da maneira convencional, apostando no velho confronto entre mocinho e bandido, ainda que, para isto, nos entreguem outra grande cena, quando o garoto escuta a voz de Shaker e, através da troca de olhares com o pai, indica estar diante do criminoso.

HeróiMocinho e bandidoTroca de olharesAbordando um tema delicado e de alta carga dramática, “O Preço de um Resgate” flerta com a possibilidade de ser um grande filme, mas escorrega sempre que depende de escolhas mais ousadas de seus realizadores. No fim das contas, temos um filme tenso e razoavelmente bem conduzido, mas que acaba fugindo um pouco da realidade e tornando-se apenas um bom entretenimento, ainda que as atuações centrais sejam dignas de aplausos.

O Preço de um Resgate foto 2Texto publicado em 02 de Dezembro de 2012 por Roberto Siqueira

APOLLO 13 (1995)

(Apollo 13)

 

Videoteca do Beto #121

Dirigido por Ron Howard.

Elenco: Tom Hanks, Bill Paxton, Kevin Bacon, Gary Sinise, Ed Harris, Kathleen Quinlan, Bryce Dallas Howard, Mary Kate Schellhardt, Emily Ann Lloyd, Miko Hughes, Max Elliott Slade, Jean Speegle Howard, David Andrews e Michele Little.

Roteiro: William Broyles Jr. e Al Reinert, baseado em livro de Jim Lovell e Jeffrey Kluger.

Produção: Brian Grazer.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Inspirado em fatos reais, “Apollo 13” é um filme interessante não apenas como entretenimento, mas também como registro de um momento importante da história das missões espaciais. Demonstrando segurança na condução da narrativa e contando ainda com um excelente trabalho técnico e um bom elenco, Ron Howard entrega um filme competente, que retrata com realismo as horas de aflição que aqueles astronautas provavelmente enfrentaram.

Escrito por William Broyles Jr. e Al Reinert, a partir de livro de Jim Lovell e Jeffrey Kluger, “Apollo 13” narra a história real da terceira missão tripulada do projeto Apollo à lua. Após uma inesperada explosão no módulo de serviço, os astronautas Jim Lovell (Tom Hanks), Fred Haise (Bill Paxton) e Jack Swigert (Kevin Bacon) se vêem obrigados a retornar a Terra sem sequer pisar na lua, correndo o risco de ficarem sem oxigênio no caminho, além da ameaça real de danificar a nave na reentrada na órbita terrestre.

Potencialmente tensa, a história da Apollo 13 certamente resultaria num bom filme nas mãos de um diretor competente. Felizmente, este é o caso de Ron Howard, que consegue imprimir uma escala crescente de tensão à narrativa do segundo ato em diante. Antes disso, no entanto, o filme escorrega levemente ao exagerar no ufanismo, quando os americanos comemoram a vitória na corrida espacial – e este patriotismo é reforçado pela trilha sentimental que embala o homem pisando na lua e pelo close em Jim, claramente emocionado com o que vê. Ainda no primeiro ato, chama a atenção como a imprensa não demonstra interesse pela Apollo 13, refletindo a progressiva falta de interesse do público pelos programas espaciais. Neste aspecto, vale lembrar que até mesmo a NASA questionava o alto investimento feito nestas missões depois do sucesso da Apollo 11, algo que o filme também retrata com fidelidade. Porém, quando a viagem se transforma numa tragédia potencial, a imprensa imediatamente se interessa pelo caso (“Agora ficou mais emocionante”, afirma um idiota da NASA), provocando a indignação de Marilyn (Kathleen Quinlan), a esposa de Jim.

Trabalhando com inteligência e cuidado em todo o primeiro ato, Ron Howard busca estabelecer o relacionamento entre os personagens e criar expectativa para o lançamento da nave. E apesar dos muitos termos técnicos, o espectador jamais se perde durante a narrativa, graças à clareza do roteiro e a condução do diretor. Observe, por exemplo, como ele usa a fase de testes para nos apresentar os possíveis problemas que a missão enfrentará e nos familiarizar com alguns destes termos. Por isso, quando Jack tenta acoplar o módulo de comando ao módulo lunar, o espectador sabe exatamente o perigo daquela operação. Também por isso, quando Jim Lovell diz a famosa frase “Houston, nós temos um problema”, o desespero toma conta da tela, pois sabemos que aquele problema não estava previsto.

Além da narrativa envolvente, “Apollo 13” apresenta também um espetáculo visual belíssimo, graças aos excelentes efeitos visuais da Digital Domain, que conferem realismo ao lançamento da nave, por exemplo. Nave, aliás, que é perfeitamente recriada pela direção de arte de David J. Bomba, Michael Coreblith e Bruce Alan Miller, assim como os uniformes são fiéis aos originais (figurinos de Rita Ryack), ambientando perfeitamente o espectador. Além disso, o ótimo design de som capta cada pequeno movimento dentro da nave, como quando o oxigênio estoura a lateral da Apollo 13 e provoca o acidente. Obviamente, o trabalho de câmera de Ron Howard é vital neste processo. Contando com a colaboração da fotografia de Dean Cundey, o diretor emprega movimentos de câmera estilizados e realiza verdadeiros malabarismos no espaço, acompanhando com fluência a perfeita movimentação dos astronautas nos módulos. Vale destacar ainda os giros em volta da nave e o elegante travelling de dentro pra fora dela, que dá a exata noção de onde os astronautas se encontram.

Ainda na parte técnica, merece destaque a excepcional montagem de Daniel P. Hanley e Mike Hill, que confere enorme dinamismo ao longa, intercalando o drama dos astronautas, o trabalho da NASA e o sofrimento dos familiares. Além disso, quando a Apollo 13 apresenta o grave problema, os montadores alternam rapidamente entre os planos, ampliando a angústia no espectador sem que este perca a noção do que está vendo. E ainda que usem descartáveis legendas para indicar a passagem do tempo, Hanley e Mill acertam ao usar o já ultrapassado fade, escurecendo a tela completamente e refletindo a angustia que predomina a narrativa. A trilha sonora de James Horner também acentua o clima de tensão, por exemplo, com a música agitada que embala os minutos prévios ao lançamento da nave. Por outro lado, a trilha parece exceder um pouco o tom adequado em certos momentos, soando melosa demais, como quando Jim se dá conta de que não vai pisar na lua.

E se exagera no melodrama neste aspecto, “Apollo 13” acerta na forma como aborda a preocupação da família Lovell, nos envolvendo com o sofrimento da esposa e dos filhos de Jim após a confirmação de sua ida à lua. Nós nos sentimos mais próximos dele justamente por acompanharmos seu relacionamento com a família, o que amplia a carga dramática quando os problemas surgem. É claro que as boas atuações de Tom Hanks e Kathleen Quinlan colaboram bastante. E além de estabelecer boa química com Quinlan, Hanks ainda transmite com precisão a crescente aflição do personagem, enquanto Bacon inicialmente parece mais tranqüilo e Paxton surge intimidado naquela difícil situação. Entretanto, quando os conflitos começam a surgir, os três atores se destacam, estabelecendo um clima palpável de tensão e refletindo muito bem o cansaço dos astronautas. Paxton, aliás, melhora ainda mais na medida em que Fred fica doente, transmitindo com competência o sofrimento do personagem.

No restante do ótimo elenco, Ed Harris se sai muito bem, demonstrando autoridade e liderança como Gene Kranz, e a citada Kathleen Quinlan está ótima como Marilyn Lovell, demonstrando muito bem a angústia da personagem com as notícias do marido. E se é emocionante o momento em que ela conta para a mãe de Jim o ocorrido, é ainda mais difícil conter as lágrimas quando ela dá a notícia de que a nave apresentou problemas para o filho e ouve a pergunta preocupada do menino: “Foi a porta?”. Finalmente, Gary Sinise confere realismo à decepção de Ken Mattingly quando é retirado da missão e se sai ainda melhor quando é convocado para auxiliar os companheiros, demonstrando muito profissionalismo e companheirismo.

Assim como antes do lançamento, os momentos prévios à volta para a Terra são bastante tensos. E o silêncio que predomina por alguns segundos só aumenta nossa expectativa, justificando a explosão de alegria de todos quando o paraquedas surge no céu. A emoção genuína dos personagens e do espectador comprova que a narrativa nos envolveu. Ainda nesta cena, não posso deixar de destacar a reação contida e emocionada de Gene, num momento sublime da atuação de Ed Harris. Se a história original já era potencialmente tensa e emocionante, Howard e sua equipe conseguiram traduzir estes sentimentos na tela com competência.

Excelente tecnicamente, “Apollo 13” narra um drama real de maneira envolvente, graças à eficiente direção de Howard e às boas atuações do elenco. Apesar da trilha sonora exagerada em alguns momentos e de não resistir ao ufanismo típico dos norte-americanos, o resultado é bastante agradável. Um bom exemplo do equilíbrio ideal entre a técnica e a emoção no cinema.

Texto publicado em 21 de Dezembro de 2011 por Roberto Siqueira

FORREST GUMP – O CONTADOR DE HISTÓRIAS (1994)

(Forrest Gump)

 

Videoteca do Beto #103

Vencedores do Oscar #1994

Dirigido por Robert Zemeckis.

Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Gary Sinise, Sally Field, Haley Joel Osment, Mykelti Williamson e Michael Conner Humphreys.

Roteiro: Eric Roth, baseado em livro de Winston Groom.

Produção: Wendy Finerman, Steve Starkey e Steve Tisch.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O mundo não vivia um bom momento em 1994. Diante de uma recessão econômica global, provocada pela crise mexicana, e da explosão da preocupação com o meio ambiente, era difícil ter fé no futuro da humanidade. Além disso, um ano antes, o sombrio “A Lista de Schindler” tornou-se sucesso mundial ao relembrar um período negro de nossa história, reforçando a aura pessimista que dominava o público. Em meio a este cenário pessimista surgia “Forrest Gump”, que contrariava o sentimento geral e contava, com muita sensibilidade, uma história humana e positiva, estrelada pelo astro norte-americano do momento, o amado Tom Hanks. Não à toa, o filme tornou-se um mega sucesso e abocanhou (injustamente) os principais prêmios Oscar num ano extremamente competitivo e repleto de obras marcantes.

Com um QI inferior ao normalmente aceito nas escolas, o jovem Forrest Gump (Tom Hanks) é criado com carinho por sua mãe (Sally Field), que luta para conseguir lhe dar as mesmas condições de estudo que as outras crianças. Na escola, ele conhece Jenny (Robin Wright), uma jovem que cruzará seu caminho por muitos anos de sua vida, assim como Forrest participará, ainda que por acaso, dos fatos mais importantes da história recente dos Estados Unidos.

Desde seu início elegante, quando a câmera acompanha uma pena voando até os pés do protagonista, “Forrest Gump” é um filme belíssimo. E esta beleza, em grande parte, é mérito do inventivo Robert Zemeckis, que emprega movimentos de câmera estilizados e aproveita a oportunidade para criar planos marcantes, como aquele em que Forrest e Jenny estão sentados de mãos dadas numa árvore com o pôr-do-sol ao fundo ou o travelling que nos leva das crianças rezando no milharal para os pássaros que voam dali, numa ilustração do desejo de Jenny de fugir do pai. Em outros momentos, o diretor usa a câmera para destacar o semblante do protagonista enquanto ele se concentra nas lembranças do passado, como quando um zoom nos aproxima dele antes do primeiro flashback, que conta o episódio dos “sapatos mágicos” – na realidade, um curioso eufemismo para as pernas mecânicas do garoto. Zemeckis cria ainda lindos planos enquanto Forrest atravessa o país em sua corrida seguido por diversas pessoas que o admiram, além de conduzir muito bem cenas emocionantes, como aquela em que Forrest tenta discursar para os hippies e reencontra Jenny (num plano geral belíssimo).

Além da direção eficiente de Zemeckis, a montagem de Arthur Schmidt é um capitulo a parte e merece muitos elogios. Em primeiro lugar, porque a narrativa cobre muitos anos de maneira eficiente e jamais cansativa, intercalando os flashbacks com o presente num ritmo delicioso. Além disso, Schmidt faz a transição no tempo de maneira eficaz, como quando Forrest e Jenny, ainda crianças, estão juntos na cama e, em seguida, estão indo para a escola, já adultos – e aqui também acontecerá uma interessante rima narrativa, quando Jenny pede para Forrest correr dos vizinhos. A montagem faz ainda interessantes transições de Forrest para Jenny e vice-versa, por exemplo, através da televisão que eles assistem ou da lua. Finalmente, a passagem do tempo também é indicada no presente, através das pessoas que ouvem a história do protagonista, que mudam ao longo da narrativa enquanto Forrest continua contando sua vida.

Escrito por Eric Roth, baseado em livro de Winston Groom, o roteiro de “Forrest Gump” balanceia o tom leve e cômico com momentos dramáticos, espalhando ainda frases marcantes como “A vida parece uma caixa de bombons, nunca se sabe o que vamos encontrar” e o grito desesperado de Jenny: “Corra, Forrest, Corra!”. Além das frases marcantes, o roteiro cruza de maneira eficiente a história de Forrest Gump com momentos históricos dos EUA, como quando ele ensina alguns passos para Elvis, se torna destaque de um time de futebol americano, conversa com John Lennon, inventa slogans (“Shit happens”), compra ações da “empresa de fruta” Apple, entre outras coisas.

O tom leve da narrativa é reforçado ainda pela fotografia de Don Burgess, que emprega cores vivas e muitas cenas diurnas na maior parte do tempo. Por outro lado, os momentos difíceis de Forrest são normalmente pontuados pela chuva, como quando ele chega ao exército ou quando surpreende Jenny transando com outro num carro, numa estratégia visual inteligente por parte de Burgess e Zemeckis, pois a chuva sempre realça a melancolia dos personagens. Da mesma maneira, quando Forrest sente falta da mãe e de Jenny no exército, as sombras que predominam na tela ilustram o momento triste do personagem. Mas a melancolia tem pouco espaço em “Forrest Gump”, o que é refletido até mesmo na bela trilha sonora de Alan Silvestri, recheada de clássicos do rock de cada período em que a história se passa (que servem ainda para ilustrar a passagem do tempo), alternados com a triste e linda música tema. Além disso, Silvestri pontua muito bem as cenas, como quando Forrest começa a correr e larga a perna mecânica para trás, acompanhado pela trilha triunfal. Quem também merece destaque é o bom trabalho de design de som e efeitos sonoros, que se destaca especialmente na guerra, e os excelentes efeitos visuais da Industrial Light & Magic, que, por exemplo, amputam as pernas do tenente Dan (Gary Sinise) com perfeição – observe a cena em que ele se movimenta em cima de um muro antes de pular na água e sair nadando -, além de inserir com realismo o protagonista em vídeos reais e históricos de arquivos, colocando Forrest ao lado de alguns ex-presidentes dos EUA, como John Kennedy, e de astros como John Lennon. E além de misturar ficção e realidade com competência, “Forrest Gump” faz ainda diversas menções a grandes filmes norte-americanos como “Nascido para Matar” (na chegada ao exército, com o tenente gritando), “Apocalypse Now” (na chegada ao Vietnã, com a trilha psicodélica, as cervejas espalhadas pelo acampamento e o sol brilhando ao fundo) e “Perdidos na Noite” (quando Forrest sai com Dan pelas ruas e um carro quase os atropela, provocando a reação do tenente, que grita “Estou andando aqui!”, com a trilha do clássico estrelado por Dustin Hoffman e Jon Voight ao fundo), além de inserir imagens de “O Nascimento de uma Nação” quando Forrest cita a Klu Klux Klan.

Pra completar, praticamente todas as atuações de “Forrest Gump” são excelentes, a começar por Michael Conner Humphreys, que interpreta muito bem o jovem Forrest Gump, transmitindo a dificuldade do garoto de se relacionar socialmente através do olhar perdido e da movimentação lenta. Já adulto, Gump é interpretado pelo excepcional Tom Hanks, numa atuação marcante, notável através da entonação de sua voz, que prende nossa atenção enquanto conta as histórias, do olhar distante e da simplicidade com que compõe um personagem marcante e belo. Repare, por exemplo, como Hanks olha para o lado, ofegante e assustado, quando Jenny tira o sutiã, demonstrando o incomodo do personagem com aquela situação inusitada pra ele. Inocente, Forrest não percebe os abusos do pai de Jenny na infância (“Ele era um pai carinhoso, vivia tocando e beijando as filhas”, diz) e nem o cruel destino da garota, afirmando que ela realizou seu sonho ao vê-la cantando no palco de uma boate. Por outro lado, Forrest apresenta uma capacidade de concentração incrível que lhe permite, por exemplo, montar e desmontar uma arma com enorme velocidade e jogar pingue-pongue com incrível habilidade. Hanks demonstra muito bem todos estes aspectos fascinantes de um protagonista que enxerga o mundo da sua maneira singela e inocente, emocionando a platéia quando Forrest pergunta para Jenny se seu filho (Haley Joel Osment) é esperto e, principalmente, quando conversa com o túmulo da esposa. E até mesmo as cores leves de suas roupas (figurinos de Joanna Johnston) e a clareza de sua casa (direção de arte de Leslie McDonald e William James Teegarden) ilustram a pureza de sua alma.

Além do excelente protagonista, “Forrest Gump” conta ainda com uma gama interessante de personagens coadjuvantes, como o divertido Bubba (Mykelti Williamson), que morre na guerra, mas vive uma amizade tão verdadeira com Forrest que é homenageado por ele através da “Cia. de Camarões Bubba Gump”. Na chegada de Forrest ao exército, é ele quem cede lugar para Gump no ônibus, assim como Jenny havia feito na infância no ônibus escolar, em outra elegante rima narrativa. Interpretada com carisma por Robin Wright, Jenny gosta de Forrest e se preocupa com ele, como deixa claro quando se despede numa ponte antes dele partir pra guerra, pedindo que ele corra sempre que estiver em perigo. Mas o destino foi cruel com a garota e os traumas da infância ainda pesavam em sua vida, algo que fica evidente quando ela joga pedras na casa do pai. E é tocante o momento em que Jenny anuncia ter um vírus que “os médicos não conhecem bem”, provavelmente se referindo à AIDS (na época, um mistério para a medicina). Quem também tem uma grande atuação é Gary Sinise na pele do revoltado tenente Dan, que, após ter as pernas amputadas, se revolta contra Deus. Observe como o ator soa convincente, por exemplo, quando reclama na cama do hospital e, principalmente, quando desafia o todo Poderoso em alto-mar. Fechando os destaques do elenco, vale citar ainda a envelhecida Sally Field, que se sai muito bem na pele da batalhadora mãe de Forrest, especialmente na cena em que se despede do filho, momentos antes de morrer. E se a maquiagem acerta no envelhecimento de Field, erra ao não envelhecer Forrest ao longo dos anos, mas esta é uma falha insignificante num filme tão belo.

Após cruzar toda a história norte-americana recente, Forrest Gump se vê novamente esperando o ônibus escolar numa pequena cidade do interior, desta vez para que seu filho possa ir à escola. E quando o garoto entra no ônibus, deixando claro sua esperteza diante dos olhos do pai e do espectador, a pena voa novamente e encerra o filme. Durante mais de duas horas, fomos levados por uma história bela, empolgante e repleta de significados, e quando os créditos surgem na tela, sentimos que a viagem valeu à pena.

“Forrest Gump” é uma bela fábula da história recente dos Estados Unidos, que conta com um otimismo raro em grandes filmes, sustentado pela direção eficiente de Robert Zemeckis e pela grande atuação de Tom Hanks. A vida pode ser trágica e pode ser bela, dependendo da forma como encaramos cada etapa de nossa jornada. Incapaz de olhar o mundo com nosso costumeiro cinismo, o inocente Gump certamente levará ótimas lembranças da vida.

Texto publicado em 11 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira