MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (1969)

(The Wild Bunch)

 

Filmes em Geral #24

Dirigido por Sam Peckinpah.

Elenco: William Holden, Ben Johnson, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Warren Oates, Jaime Sánchez e Emilio Fernández.

Roteiro: Walon Green e Sam Peckinpah, baseado em história de Roy N. Sickner.

Produção: Phil Feldman.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Um ano depois de Sergio Leone realizar um verdadeiro canto de despedida do western na obra-prima “Era uma Vez no Oeste”, Sam Peckinpah completou o serviço e fez a transição completa do cinema clássico para o cinema moderno e mais violento que se consolidaria em seguida (e que já havia iniciado dois anos antes com “Bonnie & Clyde”) neste interessante “Meu ódio será sua herança”, longa que apresenta pelo menos duas grandes cenas de tirar o fôlego.

Um grupo de foras-da-lei, liderado pelo inteligente Pike (William Holden), invade uma cidade em busca de ouro e, após escapar por pouco da morte, decide que está na hora de parar. Porém, após cruzarem a fronteira entre os Estados Unidos e o México, o grupo se depara com um general ditador (Emilio Fernández) que lhes oferece uma última missão: roubar um trem carregado de armas. Ao mesmo tempo, o ex-parceiro de Pike, conhecido como Thornton (Robert Ryan), é convocado para trazer sua cabeça em troca da liberdade.

Nos primeiros minutos de “Meu ódio será sua herança”, um grupo de soldados (que se revelaria um grupo de foras-da-lei) invade uma cidade e, no caminho, cruza com um grupo de crianças que brincam com um escorpião. Em dois momentos distintos, dois planos destacam este escorpião sendo atacado por formigas e incendiado. Não é por acaso. Peckinpah está, na realidade, ilustrando o que aconteceria no final do filme, pois assim como aquele escorpião, um animal até mesmo mais perigoso que a formiga, pouco poderia fazer no meio de tantas formigas, o grupo liderado por Pike jamais conseguiria escapar do grupo de mexicanos na seqüência final. Mas a seqüência final é apenas a cereja do bolo de um longa que já inicia com um tenso tiroteio, que não poupa mulheres e crianças, num verdadeiro espetáculo estilizado de violência. O diretor, auxiliado pela montagem de Louis Lombardo, alterna entre os planos com agilidade sem jamais confundir o espectador, utilizando também a câmera lenta para aumentar o impacto daquele confronto na platéia (e aqui vale observar também a qualidade do som, perceptível através dos gritos, dos cavalos e dos tiros), deixando claro deste então que não seremos poupados do sangrento resultado daqueles conflitos. Mas nem só de violência vive “Meu ódio será sua herança”. Peckinpah aproveita muito bem as belas paisagens que cruzam o caminho do grupo, criando belos planos, graças também ao auxilio da direção de fotografia de Lucien Ballard. Ballard utiliza tons opacos, sem vida, que contrastam com a beleza da região e refletem o sentimento de nostalgia daquele grupo que se despede da vida que adora. Peckinpah cria ainda momentos de extrema tensão, quebrados repentinamente por alguma situação bem humorada, como quando o grupo entra em conflito com o general por causa de uma mulher e, em seguida, a situação se resolve com um convite para beber, além de utilizar o flashback algumas vezes, buscando explicar as motivações dos personagens, como quando descobrimos que Pike e Thornton já trabalharam juntos no passado. Finalmente, o diretor conduz muito bem a seqüência do roubo do trem, onde somente o som diegético é suficiente para criar o clima de tensão. A fuga do grupo e o conseqüente tiroteio também são extremamente bem conduzidos pelo diretor, numa seqüência empolgante e bela que culmina com a plástica cena da explosão da ponte em câmera lenta.

Escrito por Walon Green e pelo próprio Peckinpah, o roteiro busca humanizar os bandidos, mostrando o lado humano de cada um e ética existente entre eles, como quando alguém diz que eles “não são como o general” ou quando eles dividem o uísque e fazem uma brincadeira com um dos integrantes do grupo – e repare como esta brincadeira indica a atitude que eles tomariam contra este mesmo integrante quando a missão fosse cumprida, o que motivaria o arrependimento do grupo e a sensacional seqüência final. “Todos sonhamos ser crianças de novo, até os piores de nós”, diz Pike em certo momento, demonstrando uma fragilidade incomum nos bandidos clássicos de Hollywood. A narrativa acompanha toda a trajetória dos foras-da-lei, intercalando momentos de extrema tensão, como os dois tiroteios que iniciam e encerram o longa, com momentos de relaxamento, especialmente no território mexicano.

Sem jamais demonstrar claramente quem são os heróis ou vilões, a narrativa segue de maneira direta, acompanhando a trajetória daquele grupo no México e, simultaneamente, os passos do grupo liderado por Thornton, que segue as pegadas de Pike. E por mais que existam momentos de relaxamento, o filme carrega uma alta dose de energia, perceptível até mesmo nas atuações. Interpretado por William Holden, Pike é um líder firme, mas que sabe também os momentos em que pode relaxar e dar boas gargalhadas com seu grupo de trabalho, como podemos notar quando eles discutem rispidamente por um monte de “arruelas” e, logo em seguida, voltam a sorrir ao falar sobre prostitutas. Além de bom líder, ele é extremamente inteligente e hábil negociador, como demonstra claramente quando negocia as armas com centenas de mexicanos e quando oferece a metralhadora como um “presente para o general”. O general, aliás, é interpretado com muita graça por Emilio Fernández, sendo responsável por momentos muito bem humorados, como quando testa a metralhadora e quase provoca uma tragédia. O bom relacionamento do grupo de Pike também se deve à boa atuação coletiva do elenco, algo que fica evidente na aparentemente leve e descontraída seqüência do banho no México, que é de vital importância para o futuro da narrativa, pois revela as intenções do grupo naquela missão encomendada pelo general. Já Robert Ryan demonstra firmeza na pele de Thornton, revelando sua admiração e respeito pelo grupo liderado por Pike (“Estamos atrás de homens”), afinal de contas, eles eram pessoas iguais, que pelos caminhos da vida acabaram ficando em lados opostos.

Como em todo bom western, os figurinos, de Gordon Dawson, e a direção de arte, de Edward Carrere, ambientam perfeitamente o espectador ao velho oeste, com os chapéus, sobretudos, roupas do exército e os vestidos das mulheres, além da estrutura da cidade, com o saloon, o hotel e toda aquela arquitetura típica dos westerns. Também se destaca a trilha sonora de Sonny Burke, que oscila entre o triunfal e o melancólico, refletindo os sentimentos daquele grupo que sabe estar realizando o seu último trabalho. E fechando a parte técnica, o som também oscila com perfeição, por exemplo, quando o grupo de religiosos se aproxima antes do primeiro tiroteio, diminuindo sensivelmente o volume quando a ação se passa dentro do saloon. Mas é no espetacular tiroteio final que todo o grande trabalho de Peckinpah e sua equipe chegam ao ápice. Com muito realismo e estilizando a violência através de closes, câmera lenta e rios de sangue que jorram das vítimas, o diretor consegue realizar uma cena emblemática, extremamente gráfica, que provoca forte impacto no espectador e serviu de inspiração para muitos filmes posteriores.

Com uma narrativa direta e sem apresentar heróis e vilões claramente definidos, “Meu ódio será sua herança” causou muita polêmica na época de seu lançamento por causa da estilização da violência. Mas o longa dirigido por Peckinpah estava “apenas” antecipando a forma de fazer cinema que viraria regra logo em seguida, ao mesmo tempo em que, assim como os seus personagens, se despedia do estilo clássico que caracterizou o mais americano dos gêneros cinematográficos.

Texto publicado em 10 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

CREPÚSCULO DOS DEUSES (1950)

(Sunset Boulevard)

 

Videoteca do Beto #38

Dirigido por Billy Wilder.

Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Fred Clark, Lloyd Gough, Jack Webb, Franklyn Farnum, Larry J. Blake, Chales Dayton, Cecil B. DeMille, Buster Keaton, H.B. Warner e Ray Evans.

Roteiro: Charles Brackett, D.M. Marshman Jr. e Billy Wilder.

Produção: Charles Brackett.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Os bastidores de Hollywood são escancarados diante do público nesta maravilhosa produção dirigida por Billy Wilder, que mistura com competência ficção e realidade. Os jogos de interesses, a forma como as estrelas que a própria Hollywood produz são abandonadas e esquecidas e o impacto que este abandono provoca nestas pessoas são retratados de forma singular em “Crepúsculo dos Deuses”. O longa mostra também como neste meio as pessoas podem se sujeitar a qualquer coisa em troca de sucesso, fama ou apenas uma vida confortável.

Joe Gillis (William Holden) é um roteirista praticamente falido que foge de credores que tentam recuperar seu veículo por falta de pagamento. Acidentalmente, acaba se refugiando numa decadente mansão, cuja proprietária chamava-se Norma Desmond (Gloria Swanson), uma estrela do cinema mudo há tempos longe da fama. Ao saber que Gillis é roteirista, Norma contrata-o para revisar o roteiro que ela escreveu, acreditando ser esta a oportunidade de devolvê-la ao estrelato. Diante desta chance dada pelo destino, Gillis decide aceitar a proposta, e passa a descobrir através de conversas com o mordomo Max (Erich von Stroheim) as razões para que Norma ainda se considere uma estrela, ao mesmo tempo em que desenvolve um carinho especial pela também candidata a roteirista Betty Schaefer (Nancy Olson).

“Crepúsculo dos Deuses” revela seu final logo na primeira cena, através de uma intrigante narração póstuma – descobriremos ser a voz de Gillis somente no terceiro ato – que mantém um tom de ironia e sarcasmo (“Pobre coitado! Sempre quis ter uma piscina”), numa seqüência que nos levará até o corpo de um homem morto numa piscina. Esta tomada, aliás, é um dos raros planos estilísticos de Wilder, que procura priorizar a condução firme da narrativa e sempre valorizou mais o roteiro que o aspecto visual em seus filmes. Em todo caso, neste plano Wilder tem o cuidado de não mostrar detalhadamente o rosto do jovem morto na água. Enquanto buscamos entender as razões daquele assassinato, a excelente montagem de Doane Harrison e Arthur P. Schmidt mantém o bom ritmo da narrativa, dividindo claramente os acontecimentos em três etapas. Primeiro observamos a busca de Gillis pelos dólares que precisa para saldar as dívidas. Depois, acompanhamos seu envolvimento com Norma (e a fortuna que ela trazia). E finalmente, seremos cúmplices de sua tentativa frustrada de largar aquela vida. Portanto, Gillis é o personagem central da narrativa e servirá de fio condutor para que Wilder explore ao máximo os bastidores da indústria de Hollywood, ao mesmo tempo em que estuda a fundo os efeitos do esquecimento e do distanciamento da fama na mente de uma estrela abandonada. Priorizar o roteiro, no entanto, não significa descuidar completamente do visual. A excepcional Direção de Arte de Hans Dreier e John Meehan capricha em cada detalhe, como é notável no interior da enorme e envelhecida mansão de Norma, e a fotografia escura (Direção de John F. Steinz) utiliza na maior parte do tempo ambientes fechados e cenas noturnas, refletindo o clima sombrio em que as ações se passam.

O momento de parar a carreira e deixar pra trás todo o glamour e fortuna que trazem é provavelmente o mais complicado na vida de qualquer artista. Olhando por outra perspectiva, é comparável ao momento em que jogadores de futebol, por exemplo, deixam os holofotes e penduram as chuteiras. Salvo raras exceções, deixar a atenção da mídia e o carinho do público pra trás é sempre doloroso para quem viveu a maior parte da vida lado a lado com o sucesso. No meio do cinema, ainda existe a possibilidade de continuar trabalhando, mesmo sem o glamour de outrora, até o fim de seus dias. Mas nem sempre foi assim. Na época da transição do cinema mudo para o cinema falado, muitos atores e atrizes perderam o emprego e deixaram, repentinamente, os holofotes da fama. Este era o caso de Norma Desmond. E conviver com a solidão imposta pela aposentadoria, enclausurada dentro de sua enorme mansão, não foi a melhor escolha para ela. Norma enlouqueceu, jamais aceitando a realidade, até por culpa de seu mordomo (e ex-marido, que também era diretor e a revelou para o mundo), que escrevia cartas e entregava pra Norma, como se fossem de seus fãs.

A grande atuação de Gloria Swanson como Norma Desmond tem uma explicação bastante especial (além do talento da atriz, é claro), já que ela própria era uma atriz inativa há vinte anos, que viveu seus dias de glória, assim como a personagem, nos tempos do cinema mudo. Até mesmo o filme que é exibido em sua mansão é verdadeiro (“Queen Kelly”, de 1929), e curiosamente, dirigido por Erich Von Stroheim, que em “Crepúsculo dos Deuses” interpreta (muito bem por sinal) o mordomo Max, também um diretor já aposentado. Exibir “Queen Kelly”, aliás, é bastante simbólico, pois este filme foi praticamente o responsável pelo fim da carreira de ambos. Convencida, direta, freqüentemente com olhar superior e rangendo os dentes, Norma é o retrato da auto-idolatria. Esta aparente autoconfiança, no entanto, escondia a enorme depressão que sentia por ter deixado os dias de glórias no passado e chegado ao fim de sua carreira (“Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”). Seus gritos e maneirismos exagerados eram apenas uma forma de esconder a tristeza e melancolia que a afligia por ter sido esquecida pelo público, imprensa e pela própria Hollywood. Por isso, a grande cena do retorno de Norma aos estúdios da Paramount é ao mesmo tempo cômica e tocante. Ela se sente novamente uma estrela, mesmo que por apenas alguns segundos, antes de voltar à realidade novamente. Mas Norma nunca aceitou a realidade totalmente, preferindo viver a fantasia criada por seu mordomo, e até mesmo em seu último ato antes de ser presa, interpreta diante das tão sonhadas câmeras a personagem que sonhava viver em sua volta ao cinema (“Sr. DeMille, estou pronta para o meu close”).

William Holden está confortavelmente bem como Joe Gillis, o roteirista desconhecido (“As platéias não pensam em quem escreve o filme. Pensam que os atores fazem o que dá na cabeça”) que encontra em Norma a chance de ter a fortuna que sonhava. “Os melhores roteiros foram escritos de barriga vazia”, diz seu agente durante a perseguição de Gillis aos dólares que tanto necessitava para manter seu carro. Desesperado, ele aceitaria qualquer coisa, e acaba caindo nos braços de Norma. Irônico em diversos momentos (“Ela leu o roteiro?”, pergunta ao ouvir Norma falar sobre uma astróloga e horóscopos), Gillis sabia que aquela era a chance que tinha de conviver com o luxo e a vida confortável que Hollywood prometia e por isso, aceitou viver aquela mentira. Mas até o momento em que faz esta revelação à Betty Schaefer (“Fiz um contrato de longo prazo”), interpretada com muito charme por Nancy Olson, não sabemos exatamente quais eram seus pensamentos e sentimentos, especialmente por causa do pequeno romance que vive com a garota. Esta ambigüidade dos personagens, também presente em Schaefer – que apaixonada por Gillis, desiste por um instante de se casar com o amado noivo Artie Green (Jack Webb) – é um dos vários pontos positivos do excelente roteiro de Charles Brackett, D.M. Marshman Jr. e Billy Wilder, que espalha por toda a narrativa uma série de frases marcantes (muitas já citadas ao longo desta crítica), além de abusar da metalingüística. A ambigüidade de Gillis exibe outra face quando após dispensar Betty, ele volta somente para fazer as malas e largar tudo àquilo que acabou de dizer ser a razão de sua estadia na mansão. Completando o elenco, o diretor Cecil B. DeMille (“Os Dez Mandamentos”) interpreta a si próprio e seu reencontro com Norma é extremamente simbólico, já que assim como no longa, DeMille e Swanson haviam trabalhado juntos nos tempos de glória da atriz na vida real e aquela era realmente a volta dela aos estúdios da Paramount. Em outra cena, Norma joga cartas com três atores aposentados do cinema mudo, chamados de “bonecos de cera” por Gillis. Os três (Buster Keaton, H.B. Warner e Ray Evans) também eram atores verdadeiros realmente aposentados e que interpretam a si próprios.

Como podemos notar, “Crepúsculo dos Deuses” exerce a metalingüística com extrema competência para criticar com acidez o mundo dos sonhos de Hollywood, mostrando sem pudor o que significou para a capital do cinema mundial aposentar suas estrelas do cinema mudo. Conduzido por um roteiro extremamente consistente e corajoso que ele próprio ajudou a escrever, Billy Wilder entrega ao espectador uma obra sombria, com gosto amargo, que desde os primeiros minutos demonstra sua enorme qualidade, e em seu trágico e melancólico final confirma a expectativa, se firmando como uma obra de primeira grandeza.

Texto publicado em 25 de Janeiro de 2010 por Roberto Siqueira

A PONTE DO RIO KWAI (1957)

(The Bridge of the River Kwai) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #7

Vencedores do Oscar #1957

Videoteca do Beto #151 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 08 de Janeiro de 2013)

Dirigido por David Lean.

Elenco: William Holden, Alec Guinness, Jack Hawkins, Sessue Hayakawa, James Donald, Geoffrey Horne, André Morell, Peter Williams, John Boxer, Harold Goodwin e Percy Herbert. 

Roteiro: Carl Foreman e Michael Wilson, baseado em livro de Pierre Boulle. 

Produção: Sam Spiegel. 

A Ponte do Rio Kwai foto 2

 

 

 

 

 

 

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Um trilho de trem no meio de uma linda paisagem é o ponto inicial do belo filme dirigido por David Lean sobre a cegueira mental que a guerra e as ordens seguidas sem questionamentos podem causar no ser humano. Loucura (“Madness!”) é a palavra final, diante de outro belo cenário com o mesmo trilho e a destruída ponte que dá origem ao título, ilustrando bem a linha de pensamento do filme. Segundo a visão de Lean, o ser humano parece ser incapaz de conviver em sociedade sem deixar que a ganância e a obsessão pelo poder tomem conta e sejam extremamente prejudiciais para todos. E eu concordo com ele.

Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de soldados britânicos se torna prisioneiro em um campo de concentração japonês. Após uma guerra de egos entre o Coronel Saito (Sessue Hayakawa) e o Coronel Nicholson (Alec Guinness), o segundo é o encarregado de comandar a construção de uma ponte em prazo recorde. Por outro lado, o fugitivo Major Shears (William Holden) lidera a chegada ao local de um grupo comandado pelo Major Warden (Jack Hawkins) que foi escolhido pelo exército britânico para explodir a ponte.

Dirigido com elegância por David Lean, “A Ponte do Rio Kwai” mostra como o ser humano pode, de diversas formas, deixar a própria existência humana em segundo plano em prol de seguir ordens e regras ditadas por alguém que, invariavelmente, pouco se importa com o que se perde para atingir este determinado objetivo. Afinal de contas, qual a diferença entre o rígido e inflexível Coronel Saito e o tranqüilo Coronel Nicholson? Embora tenham estilos completamente diferentes, ambos seguem cegamente as ordens que lhes são dadas, sem questionar ética ou moralmente o que está sendo feito. Desta forma, quando o esperto Major Shears diz que a coragem de Nicholson é do “tipo de coragem que mata”, ele não deixa de ter razão, pois Nicholson seria mesmo capaz de morrer em benefício do cumprimento dos objetivos. Por outro lado, Shears é o típico covarde (ou malandro) que consegue de alguma forma sobreviver naquele inferno.

A primeira aparição do Coronel Saito é intimidadora, muito por causa da excelente atuação de Sessue Hayakawa, mas fruto também da competente direção de David Lean, que busca filmar o coronel sempre de baixo pra cima (ele inclusive sobe em um banco), de forma que ele sempre olhe para os britânicos com um ar superior. Além disso, Lean acerta em cheio na escolha dos belíssimos planos que exploram ao máximo a beleza natural da região, como na caminhada do Major Shears e seu grupo até a ponte, passando por lindas cachoeiras. O diretor também é sutil em diversos momentos, como no interessante plano que inicia a seqüência nas cachoeiras, mostrando os morcegos que serão justamente os integrantes do plano final da mesma cena, quando o tiro for disparado e as granadas explodirem. Plasticamente maravilhoso, o trabalho de Lean se torna ainda melhor porque trabalha em benefício do filme, evitando que as maravilhosas imagens que vemos na tela soem sem conteúdo.

A primeira metade do filme oferece a oportunidade para Sessue Hayakawa demonstrar todo seu talento como o rígido coronel Saito. Sempre com o olhar firme, a voz alta e um sotaque perfeito quando fala inglês, Saito encontra no corajoso Nicholson a possibilidade de demonstrar o seu poder, mas acaba sendo derrotado. Observe como ele tenta agradar o coronel britânico no jantar, cinicamente oferecendo carne inglesa, whiskey, charuto e até mesmo dizendo que Nicholson obviamente não precisaria trabalhar. Sua reação no momento em que cede ao desejo de Nicholson é extremamente realista, chorando e engolindo sua raiva, sozinho em seus aposentos. Esta cena oferece também ao ótimo Alec Guinness a oportunidade de demonstrar o seu talento, já evidenciado em cenas anteriores, como quando está no “forno” e seu amigo vem lhe trazer água e comida. Ele fala com a voz rouca e baixa, como faria alguém que estivesse tanto tempo sem beber nada e, portanto, com a garganta seca. Além disso, ele abre o olho com enorme dificuldade, já que a luz que entra incomoda quem estava trancado no escuro. Quando vai até a sala de Saito, ele caminha com enorme dificuldade e ao entrar, mal consegue se sustentar, balançando as pernas, pois está muito fraco. Já na citada cena do jantar, no momento em que Saito demonstra fraqueza, Nicholson cresce e assume o comando do diálogo, mandando o líder japonês sentar e ouvir sua estratégia para construir a ponte (Hayakawa bate os dedos na perna enquanto escuta, demonstrando sua ansiedade). O evidente choque de estilos entre os dois domina a primeira metade do filme e mostra como a pressão e a rigidez não são garantias de bons resultados. Nicholson é um líder nato, utilizando o que cada pessoa tem de melhor, sem a necessidade de gritar ou ameaçar seus comandados para alcançar seus objetivos. Por outro lado, quando assume o comando da construção da ponte, ele mostra a importância de respeitar a hierarquia, utilizando aqueles que têm talento para liderar em suas devidas funções. Adquirir o respeito dos seus comandados é fundamental para o sucesso. Observe a clara mudança de comportamento na construção da ponte. No início, mal organizados e mal liderados, podemos testemunhar um verdadeiro caos, também porque os britânicos queriam ser liderados por Nicholson e sabotam os japoneses. Com os britânicos no comando, a ordem volta e o resultado é alcançado com sucesso. Fechando o elenco principal, temos William Holden como o esperto Major Shears, que logo em sua primeira cena mostra que ele faz qualquer coisa para sobreviver ali, sem se importar com ética ou regras, tentando subornar o guarda para conseguir ficar sem trabalhar. Seu melhor momento acontece quando ele diz que Warden deixaria a própria mãe para trás para seguir suas regras e objetivos, rangendo os dentes, olhando firme e alterando o tom de voz. “Você e aquele Nicholson querem morrer como heróis, com coragem e seguindo regras, quando na verdade o que importa é viver como um ser humano”. Esta é a mensagem do filme, resumida neste trecho do bom roteiro de Carl Foreman e Michael Wilson (baseado em livro de Pierre Boulle). A estupidez da guerra e de seguir ordens sem questionar ou pensar no que está fazendo pode trazer grandes prejuízos para a humanidade.

O trabalho técnico em um filme que explora muito bem as belezas naturais do local também merece destaque. A fotografia pálida e seca de Jack Hildyard, que prioriza cores quentes como o marrom e o amarelo, demonstra a tristeza daqueles soldados dominados, que são tratados como escravos no inicio do filme. Observe a mudança na fotografia quando Shears está descansando no hospital. O azul do mar, a grama verde e a predominância da cor branca (até mesmo nos figurinos, por ser um hospital), refletem também a paz de espírito dele naquele lugar. A primeira aparição dos soldados ingleses, assoviando a famosa e bela canção principal do filme (mérito de Malcolm Arnold), é uma cena extremamente marcante. Mal vestidos, com roupas velhas e sujas (em certo momento Lean dá um close em um sapato rasgado de um soldado), eles demonstram sua união ao chegar assoviando a canção e se recusando seguir ordens dos japoneses, aceitando somente as ordens de Nicholson. A trilha sonora alta e empolgante ilustra bem a alegria deles quando Nicholson é solto.

Apesar de conter um pouco de ufanismo, com a mensagem clara de que os ingleses são bons e organizados e os japoneses não são, a construção da ponte mostra que com organização e liderança é mais fácil alcançar os objetivos do grupo. Mas a discussão proposta por “A Ponte do Rio Kwai” não é esta. Não se trata de uma disputa entre os melhores métodos de liderança, mesmo que o filme trabalhe bem este lado, e sim de uma reflexão sobre até que ponto devemos seguir regras sem pensar no que estamos fazendo. No exército, assim como em muitas organizações hoje em dia, a pessoa está em segundo plano e os valores morais e éticos também, como fica evidente no caso de Shears, que não queria voltar para o local e foi obrigado a participar, mesmo que sua importância na “missão” tenha sido drasticamente reduzida ao longo do caminho. A tensa cena em que os explosivos são colocados na ponte cria também um conflito de sentimentos no espectador. Na medida em que o momento da explosão se aproxima, não sabemos se queremos ou não que a ponte venha abaixo. Momentos antes do grande clímax perfeitamente construído por David Lean, testemunhamos o orgulhoso Nicholson, ao lado de Saito, observar o belíssimo trabalho que foi feito (e a ponte é mesmo bela!) e refletir sobre sua vida. Mesmo sem ter vivido com a família, ele entende que foi bom tudo o que conquistou na carreira militar. Some a este pensamento o desespero de Saito ao pensar no que aconteceria se ele não conseguisse terminar a ponte no prazo e a frase desumana (“Não espere o trem, faça agora!”) dita por Warden quando os soldados começam a passar pela ponte (assoviando a música e provocando um leve sorriso de Shears), sem se importar com as vidas que seriam tiradas se a ponte explodisse naquele momento. A conclusão é a mesma: para este tipo de gente as pessoas não importam, importa o objetivo.

Talvez o único presente com a cabeça realmente no lugar, o médico diz que não concorda com o que foi feito e prefere ver de longe, chegando à conclusão de que ele não entendia mesmo nada sobre o exército. E de onde estava, pôde observar de camarote o coronel Nicholson perceber algo errado com a ponte (Lean aproxima a câmera lentamente do rosto dele) momentos antes do trem chegar ao local. Ao seguir o fio, acompanhado de Saito, ele gera um verdadeiro conflito generalizado que causa a morte de Saito, Shears e a sua própria morte. A ironia é que Shears encontrou seu fim justamente no único momento em que decidiu ser corajoso. E a visão de Shears morrendo à beira do rio fez Nicholson refletir sobre os seus atos também, segundos antes de cair morto e acionar a explosão da ponte. O resultado final de toda esta obediência cega às ordens que foram dadas é trágico. Todos mortos e a ponte destruída.

Discutindo com inteligência até que ponto é válido seguir ordens sem reflexão, além de tratar de questões interessantes como os diferentes estilos de liderança e o sentido da guerra, “A Ponte do Rio Kwai” nos brinda com imagens belíssimas e consegue alcançar o seu objetivo com louvor, demonstrando claramente que infelizmente, quando nós seres humanos deixamos a ganância e a ambição tomar o controle de nossas vidas, as relações humanas e a própria humanidade ficam em segundo plano.

A Ponte do Rio Kwai 

 

 

 

 

 

 

Texto publicado em 23 de Setembro de 2009 por Roberto Siqueira