THE WONDERS – O SONHO NÃO ACABOU (1996)

(That Thing You Do!)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #109

Dirigido por Tom Hanks.

Elenco: Tom Everett Scott, Liv Tyler, Johnathon Schaech, Steve Zahn, Ethan Embry, Tom Hanks, Charlize Theron, Obba Babatundé, Giovanni Ribisi, Chris Ellis, Alex Rocco, Bill Cobbs, Kevin Pollak, Jonathan Demme e Colin Hanks.

Roteiro: Tom Hanks.

Produção: Jonathan Demme, Gary Goetzman e Edward Saxon.

The Wonders - O sonho não acabou[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após vencer dois Oscar de melhor ator e participar de mais dois sucessos de público e crítica, Tom Hanks decidiu que era hora de tentar se dar bem também atrás das câmeras. Mas, diferentemente de outros atores que se mostraram tão ou mais competentes na nova função, Hanks não conseguiu o mesmo sucesso e nem mesmo o fato de ser um dos atores mais queridos de Hollywood o ajudou. Ainda assim, “The Wonders – O sonho não acabou” está longe de ser um fracasso, narrando à ascensão meteórica de uma banda fictícia de maneira leve e bastante agradável.

Projeto pessoal de Hanks, que além de dirigir escreveu também o roteiro, “The Wonders” tem início quando o jovem Guy Patterson (Tom Everett Scott) aceita substituir o baterista de uma banda num concurso local e, ao alterar o ritmo da canção, acaba ajudando a criar um hit instantâneo que, com o auxilio de um empresário da Play-Tone Records (Tom Hanks), rapidamente levará os quatro rapazes para o topo das paradas de sucesso. No entanto, os conflitos entre eles começam a ameaçar o futuro do grupo.

Conto de fadas que se desintegra na mesma velocidade em que foi construído, “The Wonders – o sonho não acabou” narra a trajetória (tão comum até hoje) de uma banda de um sucesso só, permitindo ao espectador acompanhar de perto a formação e a decadência do grupo sem jamais deixar de lado o tom leve que marca a narrativa desde o princípio. Até mesmo visualmente isto fica evidente. Observe, por exemplo, como mesmo inicialmente realçando o lado obscuro dos locais fechados em que a banda se apresenta como restaurantes e igrejas, simbolizando o estilo underground daquelas apresentações, a fotografia de Tak Fujimoto progressivamente cede espaço para tons mais alegres e estes locais dão espaço aos iluminados e amplos palcos da turnê a céu aberto e das apresentações na televisão, que simbolizam o momento em que a banda está sob os holofotes.

Aliás, a própria época retratada ajuda nesta abordagem mais alegre e até mesmo inocente. Ainda que seja de conhecimento geral o espírito livre e o universo regado de sexo, drogas e álcool das grandes bandas do período, o universo retratado aqui está mais voltado para o lado politicamente correto (digamos que, sem querer causar polêmica – até porque gosto das duas bandas -, está mais para Beatles do que para Rolling Stones). Esta impressão é reforçada também pelos figurinos de Colleen Atwood, que capricha nas roupas comportadas da banda e do próprio público em geral, além dos carros que andam nas ruas e dos aparelhos eletrônicos vendidos na loja dos Patterson que nos transportam para os anos 60 com precisão (design de produção de Victor Kempster).

Claramente inspirados nos Beatles (as constantes menções aos “Fab4” evidenciam isto), os quatro rapazes conseguem o sucesso muito rapidamente, mas a assinatura do primeiro contrato já expõe as diferentes maneiras de pensar de cada integrante da banda que causariam a ruptura no futuro. “The Wonders” abre ainda um pequeno espaço para abordar o complexo universo do mundo da música através dos interesses da gravadora, que tentam determinar os caminhos que a banda deverá seguir, criando conflito com o inteligente e pretensioso Jimmy, interpretado sem grande brilho por Johnathon Schaech.

Iluminados e amplos palcos da turnêRoupas comportadas da bandaTalentoso e egocêntrico vocalistaMas se Jimmy é o talentoso e egocêntrico vocalista, o Lenny de Steve Zahn faz o papel do engraçadinho da turma (sem grande sucesso, diga-se), ao passo em que o baixista apenas complementa a banda (e por isso o personagem de Ethan Embry sequer tem um nome). Por tudo isso, fica claro muito cedo que Guy é o cérebro do grupo e o mais capacitado para enxergar os caminhos que eles deviam seguir para alcançar o sucesso. Interpretado com carisma por Tom Everett Scott (o que é essencial para que o sucesso dele com as garotas se justifique), Guy trabalha com seu exigente e autoritário pai na loja da família durante o dia e toca bateria a noite. Assim, substituir um integrante machucado acaba se transformando numa chance de mudar radicalmente sua vida – e que ele aproveita bem. Ao mudar o ritmo da canção, Guy torna a primeira apresentação da banda num festival em algo empolgante e muda os rumos daquelas pessoas, mas lentamente ele acaba deixando de lado sua namorada Tina, interpretada por ninguém menos que Charlize Theron, para dedicar-se à banda, numa ilustração perfeita do quanto é difícil manter um relacionamento quando se vive na estrada desta forma, ainda que a frieza do relacionamento deles seja evidente desde o princípio.

Assim, uma das maneiras mais comuns de estabelecer um relacionamento com um artista é mesmo fazer parte do grupo, algo que a inteligente Faye de Liv Tyler não demora a perceber. Personagem com papel fundamental na trajetória da banda, Faye acaba funcionando como o ponto de equilíbrio que, quando abalado, coloca todos em perigo. Assim, quando o egoísta Jimmy a trata mal na frente de todos e ela finalmente rompe com ele, a banda naturalmente também se desfaz. Ao menos, Jimmy abre caminho para o óbvio romance entre Guy e Faye. Vale citar ainda as rápidas participações do diretor Jonathan Demme como um diretor de cinema e de Bill Cobbs, que vive o simpático cantor de jazz Del Paxton.

Liderando o grupo com naturalidade, Tom Hanks tem uma atuação discreta e eficiente como o empresário Sr. White, mas sua presença sempre acaba chamando a atenção de todos. Ciente disto, Hanks evita que seu personagem roube a cena ao deixá-lo muitas vezes fora de campo, o que permite focar mais na dinâmica do relacionamento da banda. Discreto também atrás das câmeras, Hanks conduz o filme com segurança, mantendo viva a energia de uma narrativa naturalmente jovial, pecando apenas no tom excessivamente romântico da cena final. Um dos queridinhos da América, o diretor/ator boa praça deixa sua impressão digital através de uma narrativa leve e descontraída, que mesmo trazendo os bastidores de uma grande banda, aborda na maior parte do tempo um universo clean, livre de drogas e quase sem álcool, mas que por outro lado capta muito bem a euforia de tocar numa banda de sucesso, com todo o glamour da fama e com centenas de mulheres desesperadas atrás deles.

Cérebro do grupoPonto de equilíbrioPrimeira execução da música na rádioCuriosamente, as grandes cenas de “The Wonders” não funcionam com base no aspecto cômico. As apresentações enérgicas do grupo, a ansiedade dos pais deles antes da primeira aparição na televisão e a empolgação durante ela estão entre os melhores momentos do longa, assim como a primeira execução da música na rádio, captada com precisão pela agitada câmera de Hanks que, com o auxilio do montador Richard Chew, cria uma sequência emocionante enquanto acompanhamos os integrantes da banda recebendo a notícia com uma alegria contagiante. A montagem de Chew, aliás, é importante para manter o ritmo agradável do longa, acelerando a narrativa de maneira inteligente, por exemplo, através de um clipe que resume boa parte da turnê deles.

E são justamente estes bons momentos que fazem não apenas a aventura daqueles jovens valer a pena, como também servem para que “The Wonders” funcione. Assim como a banda fictícia que inspirou a trama, o filme não dura muito tempo na memória do espectador, mas aqueles momentos que passamos juntos são repletos de energia e felicidade.

The Wonders - O sonho não acabou foto 2Texto publicado em 11 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

THE DOORS (1991)

(The Doors)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #108

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Val Kilmer, Meg Ryan, Kyle MacLachlan, Frank Whaley, Kevin Dillon, Kathleen Quinlan, Michael Wincott, Michael Madsen, Billy Idol, Sean Stone, Wes Studi, Kelly Hu, Mimi Rogers, Jennifer Rubin e Crispin Glover.

Roteiro: Randall Jahnson e Oliver Stone.

Produção: Bill Graham, Sasha Harari e A. Kitman Ho.

The Doors[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dizem que Val Kilmer precisou de alguns meses para se recuperar psicologicamente após viver o lendário Jim Morrison neste interessante “The Doors”, biografia de um dos maiores frontman da história do rock dirigida pelo polêmico e competente Oliver Stone. Verdade ou não, o fato é que o ator se entregou de corpo e alma numa atuação de encher os olhos, que salta da tela e faz os fãs vibrarem enquanto acompanham a trajetória do ídolo sendo retratada na telona. No entanto, Stone não ousou ir além e entregou um filme que retrata Morrison apenas sob este prisma de ídolo, sem jamais se aprofundar na pessoa existente debaixo daquela capa. O resultado é um filme que agrada em cheio aos fãs de The Doors (como eu), mas que deixa a sensação de que faltou alguma coisa para aqueles que estavam interessados em conhecer um pouco mais do ícone (também como eu).

Trazendo a básica trajetória de ascensão e decadência de um astro do rock, o roteiro de Randall Jahnson e do próprio Oliver Stone narra a vida de Jim Morrison (Val Kilmer) desde a criação da lendária banda The Doors ao lado de Ray Manzarek (Kyle MacLachlan), Robby Krieger (Frank Whaley) e John Densmore (Kevin Dillon), passando pelo enorme sucesso, pelo relacionamento com Pamela Courson (Meg Ryan), pelo uso compulsivo de drogas e álcool e chegando a decadência que levaria o vocalista a morte precoce ainda aos 27 anos de idade.

O tom escolhido por Stone para levar a trajetória da banda às telonas fica evidente logo no início, quando o vocalista pergunta para a plateia se “estão todos aí”, como na abertura de um show. A partir de então, o que temos é um verdadeiro presente para os fãs que, justamente por se preocupar demais em agradá-los, acaba pecando um pouco pela falta de ousadia.

Tecnicamente, “The Doors” tem muitos acertos. A reconstituição dos anos 60, por exemplo, é excelente, graças aos carros antigos, a decoração dos bares e casas de show e as roupas e acessórios típicos da época como os óculos coloridos e as bandanas, o que é mérito do design de produção de Barbara Ling e dos figurinos de Marlene Stewart. Além disso, a câmera inquieta do diretor passeia pelas festas e apresentações com destreza, ilustrando a euforia das pessoas naqueles ambientes. Aliás, o grande mérito da direção de Stone é justamente captar o espírito livre da época e a energia dos shows da banda com incrível precisão, o que é ótimo para sugar o espectador pra dentro da narrativa.

Para isto, o diretor conta também com a ágil montagem de David Brenner e Joe Hutshing, que reflete a personalidade agitada do vocalista, mas peca pelo excesso ao prolongar demais a narrativa em certos momentos, tornando o filme um pouco arrastado e cansativo por alguns instantes. Ainda assim, os montadores merecem elogios por criarem transições elegantes como aquela em que saímos do olho do índio que atormenta Morrison para vê-lo cantando The End ao vivo em Los Angeles. E por falar nos shows, vale citar também o ótimo design de som, que cria a atmosfera perfeita nos permitindo ouvir com clareza os gritos da plateia, as conversas entre a banda e cada instrumento que é tocado no palco.

Como era de se esperar, a trilha sonora obviamente é deliciosa, recheada de clássicos da banda que nos fazem vibrar na poltrona durante a projeção. E não podemos negar que é muito empolgante acompanhar o processo de criação de clássicos eternos do rock como Light my Fire, assim como é muito interessante a maneira como Stone usa a câmera para nos colocar dentro das viagens de ácido deles, como na sequência do deserto, na qual sentimos as mesmas sensações alucinógenas dos integrantes do The Doors. O banquete para os fãs se complementa com as confusões no palco, as prisões por relatar um ataque da polícia e por insinuar mostrar a genitália em um show, as brigas de Morrison com Pam e com a banda e o uso abusivo de drogas e álcool. Neste sentido, não temos do que reclamar, está tudo lá. Até mesmo a origem do nome da banda é explicada, para o deleite dos fãs.

Decoração dos baresViagens de ácidoConfusões no palcoEsta abordagem respeitosa ao ícone se confirma através do visual do longa. Observe como a fotografia de Robert Richardson abusa de tons dourados que destacam cores como amarelo e laranja, realçando a imagem icônica do personagem – algo ainda mais intenso quando Stone emprega planos em ângulo baixo e contra a luz que buscam engrandecê-lo na tela, criando esta aura de ídolo tão desejada pelo diretor. Em outros momentos, Richardson abusa dos tons em vermelho, realçando a aura pecaminosa que normalmente é associada ao rock, especialmente quando acompanhamos os abusos do vocalista. Mas esta abordagem excessivamente respeitosa é também prejudicial (voltaremos a ela em instantes).

Entretanto, o grande destaque do longa é mesmo a atuação visceral de Val Kilmer. Caracterizado com enorme competência, o ator lembra bastante o verdadeiro Jim Morrison em vários momentos através do cabelo, das calças apertadas e de acessórios como os óculos pequenos e arredondados. Mas a força de sua atuação está mais na atitude do que na aparência, já que Kilmer encarna Morrison com muita intensidade, mostrando força no palco (o que é essencial, já que é justamente sua performance hipnótica no palco chama a atenção de uma gravadora e dá início ao sucesso avassalador da banda) e um comportamento excêntrico fora dele, causado pelo excesso de uso de drogas e álcool.

Ousado e criativo, Jim Morrison é uma verdadeira força da natureza, capaz de escrever a mais bela poesia e de estragar um almoço entre amigos com a mesma facilidade, num comportamento imprevisível que Kilmer demonstra muito bem em momentos interessantes como uma entrevista para a imprensa britânica, que evidencia a dualidade de sua mente genial e conturbada. Traumatizado por lembranças da infância que inspiraram a criação da canção Riders on the Storm, Morrison precisa se sentir admirado, como fica evidente nas noites de sexo com Patricia e Pam, mas a origem de seu trauma jamais fica muito clara, o que nos permite interpretar que aqueles índios eram apenas um símbolo dos demônios internos dele.

Vivendo ao seu lado, a carismática Meg Ryan compõe uma Pam alegre e espirituosa, mas que nem por isso deixa de ter suas crises provocadas pelos excessos da vida do casal – que, aliás, são responsáveis pelas brigas homéricas entre eles. Também obrigados a aguentar os excessos de seu frontman, os outros integrantes da banda são interpretados de maneira discreta por MacLachlan, Whaley e Dillon, enquanto Kathleen Quinlan se encarrega de dar vida à jornalista Patricia Kennealy, que rouba a atenção de Morrison por um período, e Michael Madsen diverte-se na pele do amigo do vocalista Tom Baker. Mas o fato é que todos empalidecem diante da presença marcante de Kilmer. Finalmente, vale citar a participação rápida do diretor Oliver Sonte como o professor de cinema da UCLA.

Tons douradosPerformance hipnóticaPam alegre e espirituosaAstro decadente e incapaz de enxergar isto, Jim Morrison para um show para ofender o público, cria o caos ao incitar a plateia contra a polícia e quase é preso novamente, mas ao começar um dos grandes hits da banda, a velha energia está lá, intacta, como acontece com as grandes bandas da história do rock – e Stone capta isto com precisão com sua câmera agitada que nos coloca no meio da multidão que pula ensandecida acompanhando Morrison pelo local. Neste terceiro ato, aliás, é impressionante notar também a transformação física de Val Kilmer, que passa do astro jovem e magro do início para o barrigudo e decadente vocalista do ato final.

Artista de alto nível, Jim Morrison foi um verdadeiro gênio, um dos grandes nomes da história da música, assim como o “The Doors” foi uma das bandas mais respeitáveis do rock, com sua discografia repleta de canções excepcionais. Mas isto todos nós já sabemos. A pergunta que fica ao final de “The Doors” é: e o homem? Quem foi verdadeiramente Jim Morrison? Quais eram seus anseios, suas angústias, suas dúvidas? As respostas que temos após mais de duas horas de projeção são muito poucas, o que deixa a sensação de que o longa foi dirigido por um fã, que não ousou desconstruir o mito e investigar a fundo o lado falho e humano do quase intocável ídolo do rock.

Mesmo assim, sua energia e a sensacional atuação de Val Kilmer são suficientes para agradar. Mas poderíamos ter recebido algo mais. E esta é uma sensação que nós jamais temos ao ouvir as músicas da banda e que, certamente, as pessoas jamais sentiam ao comparecer aos shows deles. Morrison e seus companheiros entregavam tudo no palco. Infelizmente, Stone não fez o mesmo.

The Doors foto 2Texto publicado em 10 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

ADORÁVEL VAGABUNDO (1941)

(Meet John Doe)

2 Estrelas 

 

Filmes em Geral #106

Dirigido por Frank Capra.

Elenco: Gary Cooper, Barbara Stanwyck, Walter Brennan, Edward Arnold, Spring Byington, Gene Lockhart, Sterling Holloway, James Gleason, Rod La Rocque e Regis Toomey.

Roteiro: Robert Riskin, baseado em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr.

Produção: Frank Capra e Robert Riskin (não creditados).

Adorável Vagabundo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Reconhecido pela capacidade de conduzir filmes com mensagens otimistas que ilustravam como poucos o sonho norte-americano daquela época, Frank Capra era um diretor popular, é verdade, mas que tinha também o reconhecimento da crítica justamente pela maneira como utilizava estas características marcantes para realizar bons filmes. Infelizmente, isto não é o que acontece em “Adorável Vagabundo”, longa sofrível estrelado por Gary Cooper e Barbara Stanwyck que, além de narrar uma história extremamente previsível, ainda peca pela abordagem exageradamente melodramática do diretor.

O roteiro escrito por Robert Riskin com base em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr. até parte de uma premissa interessante: após ser demitida pelo novo editor do jornal onde trabalhava, Ann Mitchell (Barbara Stanwyck) publica sua última matéria contando a história de John Doe, um homem amargurado que iria suicidar-se na noite do natal como um protesto contra o que ele achava que estava errado na sociedade. A coluna chama a atenção do público e de toda a mídia, mas o problema é que Ann tinha inventado toda a história e, diante da enorme repercussão da matéria, ela é chamada de volta ao jornal. Após decidirem levar a farsa adiante, eles passam a procurar por alguém que personifique este personagem inventado e escolhem John Willoughby (Gary Cooper), que assume a nova personalidade e passa a rodar o país levando adiante a ideologia criada para o personagem.

Nos primeiros planos de “Adorável Vagabundo”, Capra faz questão de mostrar centenas de pessoas felizes trabalhando ou servindo ao exército, passando a ideia que será à base da narrativa: a força do cidadão comum. Em seguida, a simples troca de uma placa com dizeres sobre a imprensa livre já anuncia a mudança no comando de um jornal que culminará na demissão de todos os 40 funcionários e levará Ann a escrever a matéria que revolucionará o país. E então os diversos problemas do longa vem à tona, a começar por piadas nada inspiradas como no embaraçoso monólogo de Bert (Regis Toomey) na prefeitura e na chegada de John ao jornal, quando um dos presentes diz que não se suicidaria no natal por ser supersticioso.

Capra também erra a mão quando tenta colocar peso dramático na narrativa, apelando para a trilha sonora de Dimitri Tiomkin em diversos momentos desnecessários e acertando em raras ocasiões, como quando a trilha inspiradora embala o momento em que a mãe de Ann entrega o diário do pai contendo o texto que inspiraria o discurso de esperança de John Doe. Aliás, esta abordagem melodramática ganha força no próprio visual do filme. Repare, por exemplo, como Capra e seu diretor de fotografia de George Barnes procuram valorizar os rostos das pessoas comuns, expondo suas imperfeições através da maneira como iluminam as cenas e forçando nossa identificação com eles, até por contrastar diretamente com as cenas dominadas pelos tons mais escuros que acompanham os homens poderosos como Norton (Edward Arnold), o dono do jornal.

Pessoas felizes trabalhandoRostos das pessoas comunsHomens poderososPor outro lado, “Adorável Vagabundo” também tem sua parcela de acertos. É interessante, por exemplo, acompanhar a guerra nos bastidores da imprensa e os interesses de Norton naquela manifestação popular. Repare também como os instantes que antecedem o primeiro discurso de John Doe são tensos justamente pela maneira que Capra conduz a sequência, não permitindo que o espectador antecipe qual dos dois textos ele vai ler – e aqui vale notar o trabalho de Cooper, que gagueja no início, como se não soubesse exatamente o que fazer, mas com o passar do tempo ganha confiança e começa a gostar da reação das pessoas àquelas palavras, falando com mais firmeza e empolgação. Seria uma grande cena, não fosse o conteúdo da mensagem, que joga para o próprio povo a responsabilidade de buscar soluções para a resolução de seus problemas, praticamente isentando os políticos de seus deveres diante da sociedade.

O problema do roteiro está justamente em seu discurso previsível e apelativo, que dificulta bastante o trabalho dos atores, ainda que o elenco tenha gente talentosa como Gary Cooper e Barbara Stanwyck. Vivendo a esperta e ambiciosa Ann, Stanwyck oscila entre bons momentos, como quando se emociona ao ouvir as palavras de seu pai sendo lidas por Doe, e cenas embaraçosas, como aquela que encerra o longa (voltaremos a ela em instantes). Já a atuação mais contida de Gary Cooper cai bem no personagem, um homem simples que é lentamente sugado pra dentro daquele turbilhão e acaba se envolvendo sem perceber exatamente o que estava acontecendo. Repare, por exemplo, como Cooper olha para a comida com desejo e para os objetos de decoração com deslumbramento quando chega ao jornal, saindo-se bem numa das raras vezes em que o longa consegue nos fazer rir, quando Doe está distraído mexendo na estatua de uma mulher nua e se assusta ao ouvir um empolgado “Olá!”, sem notar que Ann havia chegado ao local.

No restante do elenco, Edward Arnold compõe um Norton imponente com sua voz grave e em tom sempre controlado, destacando-se em momentos especiais como o jantar em que presenteia uma desconfiada Ann e anuncia seu plano eleitoral, provocando a mesma reação nela e na plateia: “Uau!”. Além disso, tanto Arnold quanto Cooper têm um bom desempenho na forte discussão entre John e Norton durante a reunião do poderoso dono do jornal com importantes homens da cidade que precede o clímax da narrativa. Mas o grande destaque do elenco vai mesmo para a atuação de James Gleason na cena em que Connell revela o plano de Norton para Doe num bar, soando convincente como um homem amargurado diante de tudo que estava prestes a acontecer e emocionando quando menciona a morte do pai. No entanto, o problema desta cena reside no teor nacionalista e recheado pelo idealismo norte-americano tão comum na filmografia de Capra, evidenciado nas diversas menções do personagem ao “país livre” e à liberdade de expressão.

Primeiro discurso de John DoeSe emociona ao ouvir as palavras de seu paiForte discussão entre John e NortonEssencial para o sucesso de sequências como aquela que acompanha as viagens de John sobrepondo planos e imagens do mapa dos EUA num ritmo empolgante, a montagem de Daniel Mandell é responsável também pela sensação de desconforto causada no tumulto durante a “Convenção John Doe”, obtida através da rápida justaposição de planos e dos próprios enquadramentos confusos de Capra – que, se soam deselegantes, ao menos tem função narrativa. Além do rápido plano geral empregado por Capra que revela o grande número de pessoas no local, o que impressiona durante a “Convenção John Doe” é o design de som, que capta com precisão o burburinho da plateia, a chuva e a distorção do microfone, além da revolta que explode na multidão após os homens comandados por Norton cortarem os microfones e incentivarem as vaias.

Infelizmente, Capra pesa demais a mão no ato final e, além do visual exageradamente escuro da última cena no alto do prédio, o tom carregado pelo melodrama excessivo e a atuação over de Stanwyck criam um dramalhão típico das novelas mexicanas.

Conhecido como um grande defensor dos ideais norte-americanos, o ítalo-americano Frank Capra desta vez pesou a mão e fez deste “Adorável Vagabundo” um longa decepcionante, com uma mensagem óbvia demais e incrivelmente piegas.

PS: A ideologia associada a John Doe torna o assassino de “Seven” ainda mais especial pela ironia que a escolha de seu nome naturalmente carrega.

Adorável Vagabundo foto 2Texto publicado em 22 de Maio de 2013 por Roberto Siqueira

A MULHER FAZ O HOMEM (1939)

(Mr. Smith Goes to Washington)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #105

Dirigido por Frank Capra.

Elenco: James Stewart, Jean Arthur, Claude Rains, Ruth Donnelly, Eugene Pallette, H.B. Warner, Beulah Bondi, Thomas Mitchell, Guy Kibbee, Edward Arnold, Harry Carey e Grant Mitchell.

Roteiro: Sidney Buchman, baseado em história de Lewis R. Foster.

Produção: Frank Capra (não creditado).

A Mulher faz o Homem[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Segundo filme da famosa e bem sucedida parceria entre o diretor Frank Capra e o ator James Stewart, “A Mulher faz o Homem” é também um dos mais notáveis trabalhos realizados por ambos em suas marcantes carreiras no cinema. Mais uma vez trazendo a história de um homem comum que enfrenta os poderosos com sua determinação e moral inabalável, Capra realizou um filme corajoso, que já na década de 30 debatia o conturbado e complexo jogo político e seus bastidores recheados de interesses escusos – um tema que, como sabemos, continua bastante atual.

O roteiro escrito por Sidney Buchman com base em história de Lewis R. Foster nos apresenta a curiosa trajetória de Jefferson Smith (James Stewart), um homem do interior que é convidado a se tornar senador dos Estados Unidos somente porque sua falta de experiência serviria como uma luva para que seus companheiros pudessem levar adiante um corrupto projeto. O problema é que Smith, auxiliado pela inteligente secretária Clarissa Saunders (Jean Arthur), acaba se empolgando com sua posição e propõe outro projeto social que, por ironia, inviabilizaria o primeiro, criando um conflito de interesses que leva o senador Joseph Paine (Claude Rains), um amigo de seu falecido pai, a acusá-lo em plena câmara do senado de se beneficiar do projeto para enriquecer, o que faz com que Smith passe a questionar os valores e os ideais dos líderes de seu país.

Apesar de um garoto dizer em certo momento que Smith é “o melhor americano que nós temos”, os valores norte-americanos tão presentes na filmografia de Capra são questionados em boa parte de “A Mulher faz o Homem”, o que chega a ser surpreendente. É verdade que no final o homem justo e idealista acaba vencendo os poderosos corruptos e a mensagem otimista do diretor ganha força, mas em grande parte do longa a sensação que temos é a de que aquele complexo jogo político realmente seria capaz de minar aquele pobre homem; e o fato é que mesmo saindo vitorioso, Smith certamente não mantém a visão pura e simplista que tinha quando chegou a Washington. Assim, se este suposto ufanismo é aparentemente reforçado pelo clipe que apresenta as estátuas de ex-presidentes dos EUA intercaladas com trechos da constituição e embalado pelos hinos da Inglaterra e dos Estados Unidos na chegada do protagonista à capital, esta reverência à história norte-americana terá reflexo no impecável terceiro ato, quando o próprio Smith questiona onde aqueles valores estavam.

É fascinante também como Capra aborda o jogo de interesses políticos nos bastidores do senado desde o início frenético do longa, quando, auxiliado pela montagem ágil de Al Clark e Gene Havlick, anuncia a morte de um importante senador e, através da maneira acelerada com que a notícia se espalha, evidencia para o espectador a importância daquele cargo para o qual Smith seria escolhido. Observe também como o movimento de câmera que revela a imponente câmara do senado concebida pela direção de arte de Lionel Banks nos insere naquele ambiente sob a perspectiva do protagonista, assim como o lento travelling que apresenta o grande número de pessoas presentes no local, fazendo com que o espectador perceba como aquilo tudo poderia intimidar Smith e forçando nossa identificação com ele.

Da mesma forma, Capra faz questão de engrandecer o Presidente do Senado durante o juramento de Smith, novamente nos colocando em sua posição e fazendo com que o espectador sinta a pressão que o próprio personagem sente por estar ali. O diretor usa a câmera com inteligência também em outros momentos, como numa conversa com Susan, a filha do senador Paine por quem Smith se apaixona, na qual Capra sequer mostra o rosto dele, ilustrando seu nervosismo através de planos de suas mãos mexendo no chapéu, o que só realça a timidez do rapaz.

Refletindo a euforia de Smith e a sua visão romantizada da capital, a fotografia de Joseph Walker prioriza os tons mais claros, o que torna ainda mais triste a sequência em que ele pensa em desistir e voltar para sua cidade, com o personagem afundado nas sombras após voltar ao Memorial de Lincoln e constatar que os valores de seu povo não passavam de ideais distantes da realidade. Por outro lado, observe como as sombras encobrem o rosto de Jim Taylor quando este discute o nome que será indicado para o cargo no senado, num contraste interessante que reforça a estratégia visual adotada. Já o design de som apresenta oscilações ainda mais fortes, especialmente nos debates no senado, o que vira motivo de piada, por exemplo, quando Smith fala pela primeira vez na câmara.

Estátuas de ex-presidentes dos EUAImponente câmara do senadoVolta ao Memorial de LincolnE se de maneira geral as atuações parecem um pouco exageradas (o que era comum na época), alguns nomes conseguem se destacar, como o manipulador Jim Taylor interpretado por Edward Arnold, que impõe respeito com seu corpo avantajado e sua expressão ameaçadora – aliás, é interessante como muitos políticos surgem gordos e envelhecidos, num indício da vida farta e sedentária que levam. Vale citar também o simpático Presidente do Senado interpretado por Harry Carey, que sorri constantemente, mas nem por isso deixa de contar com o respeito de todos, além é claro do imprevisível senador Paine de Claude Rains, que demonstra bem o conflito do personagem diante daquele ambiente obscuro e corrompido. É ele quem protagoniza um dos momentos tocantes do longa, quando explica para Smith que pra conseguir realizar coisas boas na política é preciso se comprometer e jogar o jogo, demonstrando um incômodo que será essencial para que sua mudança de comportamento no final faça sentido. Até por isso, é chocante o momento em que ele acusa Smith no senado e muda o foco dos debates, provocando a investigação do amigo e a proposta de expulsão dele.

Enojada diante deste desgastante jogo de interesses – especialmente após a paixão por Susan ser usada contra Smith – e cansada daquela vida vazia, a determinada Clarissa Saunders vivida com intensidade por Jean Arthur reencontra alguma razão para seguir naquela jornada somente após a chegada de Smith, que, com seu jeito simples e sonhador, devolve os valores outrora perdidos por ela diante de tanta corrupção. Conhecido como a personificação do homem comum, Stewart cai muito bem no papel do interiorano Smith, surgindo com a voz oscilante, gaguejando e evitando o olhar no início, demonstrando estar claramente assustado diante de tantas mudanças repentinas em sua vida.

Talentoso como poucos, Stewart realiza aqui um de seus melhores trabalhos, encarnando muito bem o tipo caipira que chega a cidade grande e se encanta, demonstrando deslumbramento, por exemplo, diante de obras como a estátua de Lincoln ou o Capitólio dos Estados Unidos. Além disso, os diálogos ágeis da maioria dos personagens só reforçam a grande atuação dele, que fala pausadamente no inicio, evidenciando seu deslocamento naquele local e criando uma aura de inocência que, por exemplo, faz a imprensa se aproveitar para espalhar notícias sensacionalistas com base em pequenas declarações, o que leva o protagonista a distribuidor socos e pontapés – num momento crucial que marca a perda da inocência de Smith, que passa a enxergar a dura realidade da política.

Quando Saunders explica o complexo sistema para aprovar um projeto no senado, Smith demonstra fascínio com seu queixo apoiado em suas mãos, enquanto ela demonstra tédio diante de tamanha burocracia. No entanto, com o passar do tempo o idealismo dele emociona a experiente secretária e a empatia entre eles começa a aflorar, assim como os melhores momentos da marcante atuação de Jean Arthur. Repare, por exemplo, como ela convence quando surge bêbada conversando com Diz ou quando revela a verdade para Smith sobre o esquema de propinas que impediria seu projeto de sair do papel. Já na apresentação do projeto ao senado é Stewart quem dá um show, novamente surgindo nervoso com sua voz trêmula e expressão retraída, o que torna sua postura no ato final ainda mais impressionante, quando surge confiante, determinado e se mantém firme até cair exausto após horas defendendo sua posição, numa atuação soberba e digna de aplausos.

Paine acusa SmithDeterminada Clarissa SaundersConfiante, determinado e se mantém firmeApoiando-se na força de Saunders (daí a origem do inventivo nome do filme em português), Smith encontra forças para defender-se das acusações que sofre no senado, numa batalha comovente que gruda o espectador na cadeira durante todo o eletrizante ato final, quando o poder de Taylor fica ainda mais evidente, controlando a máquina, a imprensa e praticamente todos os integrantes do estado no senado, numa verdadeira luta de gigantes contra um mero cidadão comum – o que, por razões óbvias, força ainda mais nossa identificação com o protagonista e nos leva a torcer por seu sucesso.

Assim, “A Mulher faz o Homem” é um grande filme sobre o complexo jogo de interesses que move a política desde a origem da humanidade. Como podemos perceber, este não é um problema recente, ainda que isto não sirva de desculpa para justificar nossa acomodação diante dos escândalos que de tempos em tempos surgem por aí. Ao que parece, no embate entre o idealismo e os interesses obscuros, foi o primeiro quem levou a pior e ficou esquecido no passado.

A Mulher faz o Homem foto 2Texto publicado em 21 de Maio de 2013 por Roberto Siqueira

ACONTECEU NAQUELA NOITE (1934)

(It Happened One Night)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #104

Vencedores do Oscar #1934

Dirigido por Frank Capra.

Elenco: Clark Gable, Claudette Colbert, Walter Connolly, Roscoe Karns, Jameson Thomas, Alan Hale, Arthur Hoyt, Blanche Friderici, Charles C. Wilson, Irving Bacon, Ward Bond e Eddy Chandler.

Roteiro: Robert Riskin e Samuel Hopkins Adams.

Produção: Frank Capra.

Aconteceu Naquela Noite[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Primeiro filme da história a vencer os cinco principais prêmios da Academia de Hollywood, “Aconteceu Naquela Noite” marcou época também por ser a primeira comédia-romântica de sucesso da história do cinema, misturando dois gêneros com forte apelo popular de maneira orgânica e bastante divertida. Apoiando-se no ótimo texto e nas boas atuações de Gable e Colbert, Frank Capra realizou um longa delicioso, repleto de cenas memoráveis e responsável por estabelecer alguns padrões narrativos que são religiosamente seguidos no gênero ainda hoje.

Escrito por Robert Riskin e Samuel Hopkins Adams, “Aconteceu Naquela Noite” tem início quando o jornalista desempregado Peter Warren (Clark Gable) encontra Ellie (Claudette Colbert), a filha foragida do milionário Alexander Andrews (Walter Connolly) que abandonou seu iate após este não aprovar seu casamento com o também bem sucedido King Westley (Jameson Thomas). Interessado no potencial jornalístico da trajetória da moça, Peter decide acompanhá-la numa longa viagem, mas acaba se envolvendo com ela no caminho.

Determinada e convicta desde os primeiros segundos em cena, Claudette Colbert compõe a arredia Ellie como uma mulher de personalidade forte, dedicada a conquistar seus objetivos independentemente do que seja preciso para alcançá-los, mas sem jamais perder seu lado frágil e sensual por causa disto. Assim, não surpreende o fato de Peter se apaixonar por ela, já que o próprio espectador é fisgado pelo carisma da personagem. Encarnando um protagonista típico da filmografia de Capra (o homem comum que se vê numa situação desconfortável, mas consegue mudar seu destino através do esforço), Gable se sai bem ao ilustrar como Peter vê em Ellie a grande chance de dar uma resposta ao seu antigo chefe após perder o emprego sem que, para isto, precise adular a moça, o que faz com que os primeiros contatos entre eles sejam rudes, já que ambos têm personalidades muito marcantes.

No entanto, lentamente eles começam a se aproximar, e Capra conduz este processo com exatidão, tornando esta aproximação verossímil e praticamente inevitável – e repare a expressão de Gable quando ela coloca as mãos no peito dele no ônibus que, assim como a reação dela ao acordar, evidencia como eles gostam do contato, ainda que evitem demonstrar isso para o outro. Assim como é fácil entender porque ele é atraído por ela, também não é difícil compreender o que chama a atenção da garota, já que Gable cria um Peter estiloso, com seu charme natural sendo realçado por pequenos detalhes como o uso constante do chapéu e pela aura misteriosa conferida pela fumaça de seu charuto. Determinado a escrever sobre a aventura dela (“Vou escrever um livro sobre isso”, diz sempre que algo lhe interessa), Peter deixa claro que não é tão bom quando parece quando ameaça entregar a garota para o pai, mas este traço só enriquece o personagem e torna sua mudança de comportamento ainda mais interessante.

Arredia EllieHomem comumExpressão de GableSeu conflito de sentimentos começa a ganhar força quando ele decide ajudar Ellie a cuidar de seu dinheiro, num dos primeiros sinais de preocupação por parte dele. Com o passar dos dias, este interesse vai se tornando evidente na medida em que ambos demonstram mudanças no comportamento. Prisioneira da vida luxuosa que levava, ela se encanta com coisas simples da vida como uma música popular cantada por todos no ônibus; e Peter meio que simboliza esta mudança pra ela. Obviamente, tudo isto soa verdadeiro graças à empatia entre Gable e Colbert, que mantém uma dinâmica muito boa e carregam a narrativa com facilidade.

Mas “Aconteceu Naquela Noite” se beneficia também dos excelentes momentos de bom humor espalhados pela narrativa, como o passageiro que ronca e o que fala sem parar no ônibus, a sequência em que Peter e Ellie roubam o carro do homem que roubava quem pedia carona (uma ousadia para a época) e a hilária cena em que Peter explica sua teoria dos polegares pedindo carona, na qual Ellie encontra uma solução prática que realça o lado sensual de sua personagem, também evidenciado em outros momentos como quando ela pendura as roupas no cobertor que separa as camas deles – uma barreira física que simboliza muito bem a tensão sexual existente entre eles. Aliás, Capra procura valorizar sua atriz em diversos momentos, utilizando o rack focus nos closes em seu rosto, numa técnica que era muito usada para amenizar imperfeições na pele das atrizes.

Esta, no entanto, é uma das raras técnicas utilizadas por Capra que chamam a atenção, já que o diretor preza pela discrição adotando poucos movimentos de câmera inventivos e preferindo os planos estáveis que, reforçados pela iluminação da fotografia de Joseph Walker, buscam valorizar os atores, tornando raros os movimentos mais ousados como o travelling que acompanha Ellie indo do quarto para o banho pelo ambiente externo; mas, por outro lado, criando cenas visualmente belíssimas como aquela em que as luzes refletem na água enquanto Peter e Ellie atravessam um rio durante a noite. Obviamente, a montagem de Gene Havlick é importante neste processo, surgindo igualmente discreta apesar do uso constante dos fades com deslocamento lateral da imagem.

Solução práticaCobertor que separa as camas delesPeter e Ellie atravessam um rioCapra encontra espaço ainda para uma pequena crítica social na sequência em que uma mãe passa fome com seu filho no ônibus, mas acerta mesmo na condução de cenas memoráveis, como aquela em que Peter e Ellie fingem ser um casal discutindo diante dos detetives e aquela em que Peter finge ser o sequestrador dela para protegê-la do ambicioso Oscar Shapeley (Roscoe Karns), assustando o pobre homem que desiste de seguir viagem com eles. Além disso, o diretor se sai ainda melhor nas cenas românticas, como quando eles quase se beijam deitados na palha, numa cena em que o silêncio que predomina torna tudo ainda mais interessante, acertando também na bela cena em que ela sai detrás do cobertor e se declara.

Após uma sequência de mal entendidos, “Aconteceu Naquela Noite” finalmente chega ao seu clímax, gerando um conflito que separa o casal e traz tensão à narrativa – um recurso narrativo criado na época e utilizado tantas vezes em filmes do gênero desde então que se tornou um clichê quase insuportável, mas que funciona bem aqui justamente pelo contexto histórico. Desesperado, Peter quase desiste de Ellie – e um plano do pneu de seu carro murchando ilustra perfeitamente seu sentimento diante da eminente perda da amada. Mas, pra sua sorte, uma conversa entre pai e filha antes da cerimônia de casamento com Westley não apenas confirma a inteligência e o grande coração do homem interpretado com carisma por Walter Connolly como abre caminho para que Ellie siga seu desejo, nos levando a divertida e surpreendente fuga da cerimônia que fecha tão bem a narrativa e garante o final feliz.

Comédia leve e repleta de boas atuações, “Aconteceu Naquela Noite” é um marco na história do cinema, exercendo influência num dos gêneros mais conhecidos e rentáveis de Hollywood até os dias de hoje.

Aconteceu Naquela Noite foto 2Texto publicado em 20 de Maio de 2013 por Roberto Siqueira

GENTE COMO A GENTE (1980)

(Ordinary People)

4 Estrelas 

Filmes em Geral #103

Vencedores do Oscar #1980

Dirigido por Robert Redford.

Elenco: Donald Sutherland, Timothy Hutton, Mary Tyler Moore, Elizabeth McGovern, M. Emmet Walsh, Judd Hirsch e Dinah Manoff.

Roteiro: Judith Guest e Alvin Sargent.

Produção: Ronald L. Schwary.

Gente como a Gente[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Assim como aconteceu com “Como era verde meu vale”, “Gente como a Gente” ficou marcado por vencer um filme melhor na cerimônia do Oscar, ganhando a antipatia de muitos cinéfilos com o passar dos anos. Só que, enquanto o longa dirigido por John Ford está longe de ser um grande filme, o drama dirigido por Robert Redford ao menos é bastante competente, ainda que seja inferior à obra-prima “Touro Indomável”, que realmente deveria vencer o premio daquele ano. Nem por isso, é justo desmerecer o bom trabalho realizado neste filme humano, recheado com ótimas atuações e dirigido com tanta simplicidade e talento.

Escrito por Judith Guest e Alvin Sargent, “Gente como a Gente” nos apresenta o triste cotidiano da família Jarrett após a morte do filho mais velho do casal Calvin (Donald Sutherland) e Beth (Mary Tyler Moore) afetar profundamente a vida deles, especialmente a do caçula Conrad (Timothy Hutton), que presenciou o acidente fatal do irmão e, sentindo-se culpado, chegou a tentar o suicídio. Convencido pelo pai a procurar tratamento psicológico com o Dr. Berger (Judd Hirsch), o jovem tenta superar os traumas do passado, mas o processo acaba sendo doloroso não apenas para ele, mas para toda sua família.

Repleto de diálogos carregados de mágoa, “Gente como a Gente” já inicia num tom melancólico, expressado pelas ruas cobertas de folhas secas numa típica tarde de Outono que surgem embaladas pela bela trilha sonora instrumental orquestrada por Jack Hayes e composta por Marvin Hamlisch. Desde então, Robert Redford deixa evidente que apostará numa abordagem discreta, evitando chamar mais a atenção para si do que para a alta carga dramática da narrativa. Seguro atrás das câmeras como costuma ser na frente delas, o diretor conduz o filme com simplicidade e elegância, apostando em planos médios e closes que realçam as atuações, evitando invencionismos desnecessários para o desenvolvimento de uma narrativa baseada nos diálogos. Nem por isso, Redford deixa de imprimir um estilo próprio, que curiosamente remete ao seu estilo sutil e minimalista de atuar. Observe, por exemplo, como durante uma festa dos amigos de Beth, Redford conta com seu montador Jeff Kanew para alternar entre os planos, empregando closes que demonstram o teor artificial das conversas e ainda criam a atmosfera maçante pretendida pelo diretor.

Visualmente, Redford também sabe explorar o bom trabalho de sua equipe técnica, a começar pela fotografia de John Bailey, que começa “Gente como a Gente” apostando numa paleta dessaturada que, por sua vez, realça as cores sem vida dos figurinos de Bernie Pollack como o bege e o azul marinho. Com a evolução da narrativa e dos problemas de Conrad, as sombras e as cenas noturnas passam a predominar (especialmente nas sessões no psiquiatra), ilustrando a agonia do garoto, representada também no escritório sufocante e bagunçado do Dr. Berger – o que é mérito do design de produção de Phillip Bennett e J. Michael Riva. Observe, por exemplo, como quando ele fala sobre a mãe, a fotografia investe pesado nas sombras e torna o escritório num local obscuro – num momento, aliás, em que o leve movimento de câmera de Redford nos aproxima com elegância do rosto de Conrad e evidencia sua tristeza.

Mas se evita exibicionismos na movimentação de sua câmera, Redford demonstra muita habilidade na direção de atores, extraindo atuações que evitam transformar aqueles personagens em caricaturas unidimensionais. Inicialmente, somos apresentados ao cotidiano daquela família comum e, com o passar do tempo, percebemos que existe um conflito ali. Só que estas descobertas acontecem lentamente. Primeiro, fica evidente que Conrad tem problemas, principalmente pela forma como é tratado por seu preocupado pai. Contudo, a razão desta preocupação surge apenas quando o garoto aceita procurar um psiquiatra e decide falar abertamente sobre sua tentativa de suicídio, motivada pela traumatizante morte do irmão que o atormenta todos os dias. Em seguida, percebemos um atrito na relação dele com a mãe, que pouco a pouco vai sendo escancarado, conforme ele toma coragem para enfrentar a situação. Por vezes, Beth e Conrad mais parecem estranhos, tamanha a frieza com que se relacionam.

Demonstrando mais dificuldade para aceitar a perda de um filho e compreender o outro, Beth por vezes chega a irritar com seu jeito egoísta de lidar com os problemas – e a composição cuidadosa de Mary Tyler Moore transmite a sensação de que ela preferia que o filho mais velho tivesse sobrevivido sem que ela jamais diga isto claramente. Mas, nos momentos em que explode e escancara seu sofrimento pela perda do primogênito, Beth se torna mais humana e se aproxima um pouco mais da plateia, o que é ótimo justamente por evitar que ela se torne uma personagem rasa e unidimensional, que poderia facilmente afastar o espectador, ainda mais diante da postura pacificadora do marido dela. Compondo Calvin com uma estranha mistura de carisma e apatia, Donald Sutherland se sai bem como o pai protetor e preocupado que não sabe o que fazer para manter o equilíbrio emocional de uma família afetada por uma tragédia, algo que fica ainda mais evidente pela maneira confusa e nervosa que ele se comporta diante do Dr. Berger.

Sofrimento pela perda do primogênitoMistura de carisma e apatiaJovem amarguradoA razão de tanta preocupação é Conrad. Assumindo o papel mais difícil de “Gente como a Gente”, Timothy Hutton transmite muito bem a insegurança e a ansiedade daquele jovem amargurado, movimentando-se constantemente, evitando olhar diretamente para as pessoas e alterando o tom de voz sempre que se sente intimidado. Bastante instável emocionalmente – como atesta a cena no McDonald´s -, Conrad raramente consegue encontrar a paz e nem mesmo a pratica de um esporte como a natação serve para aliviar a pressão psicológica que ele mesmo se impôs. Inseguro ao ponto de treinar antes de ligar para uma garota, Conrad transmite a constante sensação de que está prestes a desistir da vida, o que é mérito da cuidadosa composição do ator. Hutton se destaca ainda na tocante conversa com o Dr. Berger após a morte da amiga Karen (Dinah Manoff), que ilustra o quanto Conrad se culpa pela morte do irmão.

Firme e direto, Judd Hirsch cria um Dr. Berger bastante seguro, que sabe tratar Conrad como adulto e evita a todo custo fazer com que ele se sinta vítima, mesmo que, para isso, precise recorrer a uma frieza desconcertante que por vezes parece até carregada com requintes de crueldade. Por outro lado, a doçura é representada pela simpática e bela Jeannine, interpretada por Elizabeth McGovern como uma garota simultaneamente atirada e compreensiva, que consegue alegrar e acalmar a vida de Conrad sempre que aparece. No entanto, a chave para compreender melhor a mente do rapaz está na outra moça que surge em seu caminho.

Conversa com o Dr. BergerDr. Berger bastante seguroSimpática e bela JeannineApresentada durante a dolorida conversa ocorrida dentro de um restaurante, a Karen de Dinah Manoff representa um ponto de apoio psicológico para Conrad, um exemplo vivo de que é possível superar o trauma e viver bem, ainda que a garota eventualmente deixe transparecer alguma tristeza – e o diálogo entre eles deixa claro que estamos acompanhando duas pessoas muito sofridas que tentam disfarçar a dor da melhor maneira possível. Mesmo distante, Karen faz com que Conrad se sinta melhor somente por saber que ela está bem e isto é essencial para que o espectador compreenda porque o garoto perde totalmente o equilíbrio quando, já no terceiro ato, ouve a trágica notícia do suicídio da garota.

A dificuldade para compreender o outro é justamente a razão pela qual a família Jarrett tanto sofre. Por isso, os diálogos entre eles escondem sob aquela carcaça polida e formal uma alta carga de tensão e parecem sempre prestes a provocar uma discussão, ainda que seja por um motivo aparentemente fútil, como na emblemática cena da foto de família que escancara os problemas entre mãe e filho ou na pesada discussão também entre eles na véspera do Natal. Estes duelos verbais são o ponto alto de “Gente como a Gente”. Mas existem outros diálogos marcantes, como aquele em que um amigo diz para Calvin que “cedo ou tarde eles se vão”, relembrando a dura realidade que qualquer pai tem dificuldade para encarar.

A perda de um filho é certamente um trauma quase impossível de superar. Assim, quando Calvin, mergulhado nas leves sombras do alvorecer, decide expor para Beth sua insatisfação diante da postura fria dela com seu filho, sabemos que aquela atitude pode jogar a última pá de cal naquela relação já deteriorada. No entanto, a saída dela de casa nos leva a sensível conversa entre pai e filho que, mesmo num tom agridoce, encerra bem este drama humano e belo.

Comandando uma história pesada que poderia facilmente cair no melodrama barato, Robert Redford demonstrou maturidade e competência suficientes para extrair grandes atuações de seu elenco e fazer deste “Gente como a Gente” um filme bastante respeitável.

Gente como a Gente foto 2Texto publicado em 22 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

O FRANCO-ATIRADOR (1978)

(The Deer Hunter)

2 Estrelas 

Filmes em Geral #102

Vencedores do Oscar #1978

Dirigido por Michael Cimino.

Elenco: Robert De Niro, Christopher Walken, Meryl Streep, John Cazale, John Savage, Chuck Aspegren, Pierre Segui, George Dzundza, Shirley Stoler e Rutanya Alda.

Roteiro: Deric Washburn, baseado em argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker.

Produção: Michael Cimino, Michael Deeley, John Peverall e Barry Spikings.

O Franco-Atirador[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Criar expectativas é algo sempre negativo quando falamos de cinema. Quanto maior a expectativa criada, maiores são as chances de nos decepcionarmos com um filme, ainda que este apresente um resultado agradável. Mas como não se empolgar quando os créditos iniciais anunciam nomes como os de Robert De Niro, Meryl Streep e John Cazale, além do menos badalado, mas também competente Christopher Walken? No entanto, ainda que seja tecnicamente bem realizado e tente apostar numa interessante abordagem intimista, “O Franco-Atirador” se perde completamente em seus aspectos políticos e éticos, chegando a soar ofensivo e racista pela maneira desprezível que o diretor Michael Cimino retrata os rivais norte-americanos na guerra do Vietnã.

Escrito por Deric Washburn a partir de argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker, “O Franco-Atirador” narra a trajetória dos amigos Michael (De Niro), Nick (Walken) e Steven (John Savage), que são convocados para a Guerra do Vietnã e se veem obrigados a deixarem a família e os amigos para trás. Após viverem experiências traumáticas no conflito, dois deles conseguem regressar ao país, mas a vida de todos os envolvidos nunca mais será a mesma após eles terem experimentado os horrores da guerra.

Partindo da interessante premissa de nos apresentar as graves consequências psicológicas provocadas pela guerra naquele grupo de trabalhadores de uma pequena cidade no interior dos EUA, “O Franco-Atirador” se apoia ainda em seu excepcional elenco, repleto de nomes capazes de carregar qualquer narrativa com facilidade. Portanto, é uma pena que Cimino utilize um elenco de primeira qualidade num filme tão maniqueísta, que beira o jingoísmo pela forma como retrata os vietnamitas (voltarei ao tema em instantes).

Ainda assim, o longa apresenta um resultado agradável quando observamos somente os aspectos técnicos da produção. Observe, por exemplo, como a fotografia de Vilmos Zsigmond realça o clima melancólico daquela cidade industrial, apostando em cores frias que casam bem com a sujeira das ruas e os galhos secos das árvores, assim como fazem os figurinos sem vida de Eric Seelig e os ambientes poucos iluminados concebidos pelo design de produção de Ron Hobbs e Kim Swados. Da mesma forma, os tristes acordes da canção tema reforçam esta atmosfera, assim como as boas músicas escolhidas para a trilha sonora de Stanley Myers, com exceção apenas da trilha erudita que confere um tom épico à caçada dos cervos nas montanhas.

Montanhas que são captadas com elegância pelos belos enquadramentos de Cimino, que ainda apresenta um bom repertório de planos e movimentos de câmera interessantes. Por isso, mais uma vez é lamentável que o diretor utilize este talento para enviar mensagens nada sutis, como quando faz questão de focar por um longo tempo a bandeira dos Estados Unidos e a faixa com os dizeres “Servimos a Deus e a pátria com orgulho”. Além disso, em certo momento um homem pergunta para Michael se “nós ganhamos a guerra” e fica sem resposta, escancarando a grande fantasia norte-americana de ter vencido no Vietnã, que ficaria ainda mais evidente nas produções vindouras do país durante a “era Reagan”.

Apostando numa abordagem mais intimista na primeira metade do filme, Cimino investe um longo tempo no desenvolvimento das relações entre os personagens, mostrando o grupo bebendo no bar e se divertindo, o que ajuda a criar empatia com a plateia. No entanto, o pretensioso diretor se empolga e estende demais a sequência do casamento e da festa, que claramente poderia ser enxugada pelo montador Peter Zinner para melhorar o ritmo da narrativa. Ainda assim, esta longa sequência serve para nos aproximar daquelas pessoas, especialmente de Michael e Nick, que evidenciam suas fortes personalidades durante a caçada que precede o embarque para o Vietnã. Assim, quando este momento se aproxima, já nos sentimos mais íntimos daqueles jovens, o que confere um tom ainda mais melancólico à cena da despedida no bar, com as expressões tristes dos personagens, a música tocada no piano e o próprio travelling lento de Cimino que é abruptamente cortado pelas explosões das bombas já no Vietnã.

Clima melancólicoServimos a Deus e a pátria com orgulhoPovo do VietnãDemonstrando um maniqueísmo nojento desde o primeiro minuto no Vietnã em que um soldado local surge explodindo mulheres e crianças, Cimino não se envergonha de retratar a guerra como um conflito claramente dividido entre os norte-americanos bonzinhos que vieram pregar a paz e os cruéis vietnamitas que se aglomeram e pagam para ver pessoas explodindo as próprias cabeças, esquecendo-se das motivações políticas desprezíveis que levaram os EUA a intervir naquela guerra. Aliás, o povo do Vietnã é retratado como um bando de idiotas, numa coleção de seres da pior estirpe, como assassinos, jogadores sedentos por sangue e prostitutas que vendem o corpo diante dos próprios filhos. Além disso, as manifestações em massa sempre buscam deteriorar a imagem daquelas pessoas, como no primeiro plano da volta de Michael ao Vietnã que mostra o povo tentando desesperadamente invadir a embaixada norte-americana.

Ciente de que suas cenas de combate não impressionam, Cimino rapidamente salta do momento da chegada ao Vietnã para a sequência em que Michael, Nick e Steven estão presos. Assim, se num instante acompanhamos o grupo sofrendo um bombardeio, na cena seguinte eles já surgem enjaulados, em outro corte abrupto que desta vez depõe contra o trabalho dele e de seu montador. Ao menos, aqui Cimino consegue criar momentos de alta tensão, extraindo ainda excelentes atuações de seu elenco. Observe, por exemplo, como John Savage demonstra com precisão o desespero e a angústia de Steven enquanto aguarda para ser chamado pelos cruéis vietnamitas, ao passo em que De Niro transmite tranquilidade ao parceiro e ao espectador com seu tom de voz baixo e controlado. Durante o jogo da roleta russa, De Niro novamente se destaca, demonstrando muito bem sua ira e, ao mesmo tempo, sua compaixão pelo sofrimento do amigo.

Aliás, Christopher Walken também apresenta um desempenho excepcional nesta sequência eletrizante, com seu riso tenso e o olhar assustado demonstrando que Nick não sabe o que esperar diante daquela angustiante situação, segundos antes de Michael atirar nos vietnamitas e conseguir escapar. E se repito por diversas vezes a expressão “vietnamitas”, é porque Cimino faz questão de sequer dar nome aos habitantes locais, na mais perfeita confirmação de sua visão ufanista do conflito. Deste ponto em diante, o solitário Nick começa a se desapegar do passado e a perder o sentido na vida, perambulando pelo Vietnã até se reencontrar nos perigosos jogos de roleta russa promovidos por um grupo clandestino local. Após as torturas sofridas na guerra, viver ou morrer era indiferente, apenas uma questão de sorte que ele estava disposto a encarar.

Entre os que ficaram nos Estados Unidos, John Cazale encarna Stoch como alguém que parece sempre irritado e desconfiado, ao ponto de andar com uma arma na cintura e transmitir a constante sensação de que está sempre pronto para uma briga, ao passo em que George Dzundza pouco pode fazer com o tempo que tem com seu John. E finalmente, a grande Meryl Streep já demonstrava seu talento neste que é apenas o seu segundo papel na carreira. Mesmo com uma participação relativamente pequena, ela consegue conferir humanidade a Linda, equilibrando-se entre a felicidade ao ver Michael de volta e a tristeza por não reencontrar Nick.

Angústia de StevenNick não sabe o que esperarHumanidade a LindaSentindo-se deslocado nesta volta ao país, Michael sequer consegue caçar e chega ao ponto de fazer a tal roleta russa com Stoch, num momento de pura insanidade que poderia tirar a vida do amigo. Demonstrando este incômodo com precisão, De Niro mais uma vez comprova sua enorme qualidade como ator, compondo outro personagem impactante através de suas expressões viscerais durante as torturas na guerra que se contrapõem diretamente aos olhares contidos em sua volta; que, por sua vez, refletem as graves consequências de tudo que ele sofreu.

Infelizmente, esta sequência da volta de Michael também é mais extensa do que deveria e quebra novamente o ritmo da narrativa, que só retoma o fôlego quando ele decide voltar ao Vietnã para resgatar o amigo perdido, nos levando a outra cena eletrizante envolvendo os jogos de roleta russa que culmina na impressionante morte de Nick – e aqui vale reparar como a fotografia se torna mais sombria, apostando na falta da luz para criar uma atmosfera sufocante. Após ver Steven ficar paralítico, Michael estava agora diante de um novo trauma, testemunhando a morte do amigo de maneira tão idiota.

Só que, aparentemente, nem mesmo os trágicos resultados da guerra fazem com que aquele grupo de pessoas questione as motivações de seu país, o que nos leva à deprimente cena que encerra “O Franco-Atirador”, com todos cantando “Deus abençoe a América” e confirmando a visão míope de Cimino. Assim, a longa extensão e o maniqueísmo exacerbado da narrativa acabam ofuscando a boa intenção de mostrar os trágicos resultados psicológicos e físicos da guerra.

O Franco-Atirador foto 2Texto publicado em 21 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

A UM PASSO DA ETERNIDADE (1953)

(From Here to Eternity)

4 Estrelas 

Filmes em Geral #101

Vencedores do Oscar #1953

Dirigido por Fred Zinnemann.

Elenco: Burt Lancaster, Montgomery Clift, Jack Warden, Deborah Kerr, Donna Reed, Frank Sinatra, Philip Ober, Mickey Shaughnessy, Ernest Borgnine e George Reeves.

Roteiro: Daniel Taradash, baseado em peça de James Jones.

Produção: Buddy Adler.

A um passo da eternidade[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O cotidiano de uma base militar do exército norte-americano é retratado com sensibilidade neste belo “A um passo da eternidade”, um dos grandes vencedores da história do Oscar que, infelizmente, parece um pouco esquecido atualmente. Contando com atuações inspiradas de praticamente todo seu talentoso elenco, o diretor Fred Zinnemann utilizou o tenso período que antecedeu a entrada definitiva dos EUA na segunda guerra mundial para criar um profundo estudo sobre as relações humanas.

Baseado em peça de James Jones, o roteiro de Daniel Taradash se passa praticamente o tempo inteiro numa ilha do Havaí, onde o novato recruta Prewitt (Montgomery Clift) é submetido a um tratamento de choque por parte de seus superiores somente porque não aceita lutar boxe pela companhia do exército. Com o passar do tempo e a ajuda do soldado Angelo Maggio (Frank Sinatra) e da prostituta Lorene (Donna Reed), ele acaba conquistando o respeito do Sargento Warden (Burt Lancaster), que, por sua vez, se apaixona pela bela Karen Holmes (Deborah Kerr), a esposa de seu superior imediato, o rígido Capitão Holmes (Philip Ober).

Como podemos perceber somente pela premissa da narrativa, “A um passo da eternidade” nos apresenta uma vasta gama de personagens, algo que, nas mãos de um diretor menos habilidoso, poderia tornar o longa confuso. No entanto, a maneira como Zinnemann desenvolve aqueles relacionamentos faz com que o espectador compreenda a narrativa com clareza, ainda que fique intrigado diante das insinuações sobre o passado de alguns deles. Obviamente, é preciso dar crédito também ao roteiro de Taradash, que através de diálogos muito bem construídos confere uma ambiguidade interessante aquele grupo de pessoas, que se tornam ainda mais complexas graças às boas atuações de todo o elenco. Ali, ninguém é exatamente o que parece ser.

Seguindo na linha da direção discreta de Zinnemann, a fotografia de Burnett Guffey abusa das luzes e mesmo nas cenas noturnas não chega a ser obscura, evitando chamar a atenção para si e permitindo que o espectador se concentre exclusivamente no desenvolvimento daquelas relações. Da mesma forma, a econômica trilha sonora de George Duning surge apenas em momentos pontuais, mas sempre de maneira eficiente, como no primeiro encontro entre Warden e Karen e especialmente na icônica cena do beijo deles na praia.

Assim, a narrativa acertadamente se concentra muito mais no relacionamento entre os personagens do que no desenvolvimento da história em si. Num primeiro momento, esta escolha pode dar a sensação de que nada de fato está acontecendo, mas lentamente percebemos as diversas camadas daqueles personagens complexos e a narrativa engrena. Aliás, o longa tem um ritmo bem interessante que jamais se torna aborrecido, também pela forma como o montador William A. Lyon equilibra as diversas linhas narrativas (o caso de Warden e Karen, a relação de Prewitt e Lorene, as ações dentro e fora do exército, etc.).

Em “A um passo da eternidade” tudo é muito sutil, o que pode levar espectadores mais precipitados a criarem uma visão unidimensional daqueles personagens. Só que ninguém ali é exatamente bom ou ruim, com exceção do Capitão Holmes de Philip Ober que, ainda assim, tem seu momento de humanidade quando afirma dolorosamente que só traiu a esposa uma vez. Até mesmo o sexo é sugerido de maneira sutil, como quando Lorene sai para atender um cliente e deixa Prewitt esperando, voltando momentos depois.

Prewitt que é interpretado com competência e carisma por Montgomery Clift, que antes mesmo de dizer qualquer palavra já indica aos seus novos líderes que não deseja mais lutar somente através de um leve movimento no olhar. Determinado, o jovem provoca a ira do Capitão, um apaixonado por boxe que planeja vencer um campeonato e aposta no talento de Prewitt para conquistar seu objetivo. Só que nem mesmo as irritantes punições impostas ao garoto conseguem dobrá-lo; e é impressionante a maneira como Clift demonstra firmeza e, ao mesmo tempo, transmite a sensação de que o personagem está sempre próximo de seu limite, o que é essencial para que o espectador compreenda o único momento em que ele não resiste e parte para a briga com o Sargento Galovitch (John Dennis), ainda que seja numa luta a céu aberto e não no ringue como o Capitão queria. Finalmente, Clift se sai muito bem no tocante momento em que Prewitt revela porque parou de lutar, demonstrando a dor que ainda sente pela fatalidade ocorrida no passado.

Passado que também atormenta o relacionamento entre o Capitão Holmes e sua esposa Karen, como notamos numa discussão que, se não explica muito, já diz o suficiente para indicar o desgaste da relação provocado por uma traição. Deborah Kerr encarna a personagem com um ar misterioso que funciona muito bem, revelando lentamente a razão da infelicidade dela. Primeiro compreendemos que ela foi traída, depois observamos sua solidão e a forma grosseira que é tratada pelo marido e, finalmente, descobrimos seu desejo de ter filhos, que terá reflexo no tocante momento em que ela revela para Warden como perdeu seu bebê. Vulnerável, Karen passou a se envolver com diversos homens em busca da felicidade perdida em algum lugar do passado, o que motiva os comentários nada elegantes feitos pelos colegas de exército de Warden.

Impondo respeito com seu porte físico e grande carisma, Burt Lancaster encarna Warden com a mesma ambiguidade dos outros personagens, intercalando momentos em que parece agressivo e outros em que demonstra grande sensibilidade. Sua trajetória talvez seja a mais interessante dentre todos, especialmente pela forma como se aproxima de Prewitt e, especialmente, pela maneira como se entrega a paixão que sente por Karen, ainda que demonstre grande incômodo diante das insinuações a respeito do passado dela.

Prewitt revela porque parou de lutarKaren revela como perdeu seu bebêSe entrega a paixãoAliás, é interessante notar como os homens se preocupam com o passado das mulheres em “A um passo da eternidade”, já que Prewitt também demonstra uma mórbida curiosidade pelo passado de Lorene e, assim com Warden, se incomoda com isto. Linda e charmosa, a Lorene de Donna Reed é outra mulher misteriosa e ambígua, que num instante parece apaixonada por Prewitt e no outro fala de seus planos para o futuro de maneira assustadoramente ambiciosa (“Não quero casar com um soldado”), demonstrando grande preocupação com sua dignidade e segurança (o que, convenhamos, também é compreensível). Isto não significa que ela não goste de Prewitt de verdade e não se importe com ele; e seu desespero ao vê-lo retornar para o exército durante o ataque dos japoneses comove justamente por acreditarmos na personagem.

Fechando o elenco, Frank Sinatra tem uma boa atuação como o esquentado Angelo Maggio, que se torna o porto seguro de Prewitt naquele mar de hostilidade, saindo-se bem em momentos especiais como quando surge alcoolizado na boate ou quando foge da prisão para morrer nos braços do amigo. Maggio é também o responsável por iniciar uma das grandes cenas do filme, quando, logo após ver o amigo Prewitt dar um pequeno show no bar, não resiste à provocação do grandalhão Sargento Fatso (Ernest Borgnine) e inicia uma briga que só terminará com a imponente intervenção do Sargento Warden, num momento que é vital para selar a amizade entre este último e Prewitt e que também influenciará o trágico destino do próprio Maggio.

Ainda que a grande força da narrativa esteja nos relacionamentos, Zinnemann consegue construir bem os poucos momentos de tensão, como nesta briga em que Warden se impõe e conquista o respeito de Prewitt. Além disso, o diretor encontra espaço para raras ousadias, como quando mostra apenas as caixas que encobrem o momento crucial da briga entre Prewitt e o Sargento Fatso, deixando o espectador ainda mais tenso quando o segundo levanta antes do protagonista, somente para cair ensanguentado logo depois enquanto Prewitt surge no segundo plano. Vale mencionar ainda o impressionante plano aéreo durante o surpreendente ataque dos japoneses à base militar, numa sequência que hoje pode até soar visualmente datada, mas que ainda mantém o senso de urgência planejado pelo diretor.

Desespero ao vê-lo retornar para o exércitoImponente intervenção do Sargento WardenMomento crucial da brigaOutro momento memorável ocorre quando Warden e Prewitt se encontram numa noitada e conversam bêbados sobre seus problemas no meio de uma estrada, num grande momento da atuação de Lancaster e Clift que antecede a triste morte de Angelo. Mas talvez o momento mais sublime do longa seja mesmo o melancólico diálogo em que Warden diz para Karen que “nunca foi tão infeliz quanto é agora com ela” e que “não trocaria isto por nada”, somente para ouvir a mesma resposta duas vezes: “Eu também”. Este pequeno e precioso diálogo define muito bem os personagens de “A um passo da eternidade”.

Encerrado num tom melancólico que nos apresenta os personagens sobreviventes ao ataque a Pearl Harbor seguindo caminhos distintos, “A um passo da eternidade” deixa uma desconfortável sensação de que a felicidade plena jamais poderia ser alcançada por aquelas pessoas. Por mais que elas tentassem superar os obstáculos, novos sempre surgiriam para atrapalharem seus planos. E é justamente este gosto agridoce e tão próximo da realidade que torna o filme dirigido por Fred Zinnemann tão humano e tão belo.

A um passo da eternidade foto 2Texto publicado em 20 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

A MALVADA (1950)

(All About Eve)

5 Estrelas 

Obra-Prima 

Filmes em Geral #100

Vencedores do Oscar #1950

Dirigido por Joseph L. Mankiewicz.

Elenco: Bette Davis, Anne Baxter, George Sanders, Celeste Holm, Gary Merrill, Hugh Marlowe, Gregory Ratoff, Barbara Bates, Marilyn Monroe e Thelma Ritter.

Roteiro: Joseph L. Mankiewicz, baseado em argumento de Mary Orr.

Produção: Darryl F. Zanuck.

A Malvada[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Assim como sua personagem, Bette Davis já era uma estrela em decadência quando aceitou participar da obra-prima “A Malvada”, longa de Joseph L. Mankiewicz que utiliza o mundo do teatro para retratar com precisão os bastidores do show business de maneira geral. Contando com um elenco formidável, uma atuação antológica de Davis e apoiando-se ainda em seu ótimo roteiro, o diretor entregou um filme memorável, que merece lugar de destaque entre as grandes obras já produzidas pela sétima arte.

Escrito pelo próprio Mankiewicz baseado em conto de Mary Orr, “A Malvada” narra à trajetória de ascensão meteórica de Eve Harrington (Anne Baxter), uma fã da grande estrela do teatro Margo Channing (Bette Davis) que alcançou o estrelato e venceu o respeitado prêmio Sarah Siddons após se envolver com a própria Margo, o marido dela e diretor Bill Sampson (Gary Merrill), sua grande amiga Karen Richards (Celeste Holm), o esposo dela e roteirista Lloyd Richards (Hugh Marlowe) e, finalmente, o crítico Addison DeWitt (George Sanders).

Empregando uma direção clássica e sem firulas que busca valorizar seu talentoso elenco, Mankiewicz demonstra desde o princípio que sabe muito bem onde reside a maior força de “A Malvada”. Não que o longa não tenha aspectos técnicos interessantes, como a fotografia de Milton Krasner que, após iniciar com um visual mais claro e limpo, lentamente vai se tornando mais obscura, simbolizando o lado negro de Eve que aflora com o passar do tempo. Além disso, os charmosos ternos e vestidos que desfilam pela festa na casa de Margo, as roupas e objetos espalhados pelo teatro, a decoração do camarim e a própria roupa simples que Eve veste quando surge pela primeira vez realçam o bom trabalho da figurinista Edith Head e da direção de arte de George W. Davis e Lyle Wheeler.

No entanto, é mesmo no talento de seu elenco e no impecável roteiro que “A Malvada” se ampara. Adotando uma curiosa narração que inicia na voz do crítico DeWitt, passa por Karen no início de um flashback, passa por Margo e volta para DeWitt, o roteiro chama a atenção não apenas pelos diálogos extremamente bem construídos, mas também por sua estrutura narrativa perfeita. De cara, enquanto o apresentador da cerimônia de premiação tece elogios para a jovem Eve, as expressões no rosto de quem conviveu com ela indicam a desaprovação de todos, que se confirma quando Karen e Margo não aplaudem a vencedora do prêmio. Desde então, a estrutura narrativa criada por Mankiewicz deixa claro que o importante não é saber que Eve chegou ao estrelato, mas sim mostrar “como” ela chegou lá. Neste caso, os meios interessam mais do que o fim.

Também é importante compreender que “A Malvada” se passa numa época em que os produtores eram poderosos e os atores eram as grandes estrelas do teatro, como notamos quando DeWitt diz que os “prêmios menores” eram dados para diretores e roteiristas, algo que também ocorria no cinema – somente na Nova Hollywood é que os diretores de cinema se tornariam poderosos nos EUA. Por isso, o longa tem até mesmo um caráter metalinguístico, já que a personagem interpretada pela excepcional Bette Davis era, de certa forma, um retrato da própria estrela decadente do cinema.

Assumindo o papel de Margo Channing com paixão e talento, Davis interpreta a grande estrela do teatro da época que acolhe inocentemente a jovem Eve somente para vê-la tomar seu lugar num curto espaço de tempo. Surgindo confiante e imponente, Margo lentamente vai sendo minada pela situação, ainda que durante o processo ela lute contra tudo e contra todos para permanecer em alta. Ilustrando este processo de degradação com precisão, Davis oferece uma atuação soberba, recheada de momentos antológicos como o tocante monólogo num carro em que ela fala sobre a “carreira de mulher”. Inicialmente tratando Eve como uma simples fã, ela começa a perceber que a garota não é tão ingênua quando a surpreende se imaginando no palco com um vestido dela. Com a convivência, Margo começa a desconfiar de Eve e as expressões de Davis indicam claramente sua mudança de pensamento em relação à garota, reforçada pelas insinuações de sua assistente Birdie. Desconfiada e dona de um humor negro impagável, a ótima Thelma Ritter faz de Birdie o alívio cômico que serve ainda como alerta para o espectador sobre as reais intenções de Eve.

Confiante e imponente MargoCarreira de mulherEve conta sua história de vidaA atuação de Anne Baxter como Eve é igualmente fabulosa. No início, sua fala contida e em tom baixo e o olhar que evita o contato direto com as pessoas criam um contraponto interessante ao olhar superior e confiante da estrela Margo. Só que, embalada pela trilha sonora melancólica de Alfred Newman, Eve conta sua história de vida e, com seu carisma, rapidamente ganha à atenção de todos. Com jeitinho e muito cuidado, ela vai pavimentando seu caminho para o sucesso, ainda que para isto tenha que passar por cima dos outros. Astuta, Eve raramente deixa transparecer suas reais intenções e seu desejo de tornar-se uma estrela, como acontece durante a festa na casa de Margo, quando se empolga sem perceber ao falar sobre os aplausos da plateia. Quando finalmente substitui Margo numa peça, Eve assume sua verdadeira personalidade e Baxter já surge confiante, com o olhar penetrante e a voz firme, sentindo-se capaz até mesmo de seduzir Bill. Não bastava substituir a estrela, ela queria ter tudo que Margo tinha. Esta transformação chega ao auge na excelente cena em que Eve ameaça Karen no banheiro e exige o papel de Cora, surgindo totalmente confiante e persuasiva, com um olhar insinuante que mostra como ela é capaz de fazer qualquer coisa para chegar aonde quer.

Após roubar o estrelato de Margo e tentar roubar até mesmo seu marido, Eve parte para conquistar Lloyd, pensando exclusivamente nos benefícios que esta união traria para sua carreira. E, obviamente, esta jornada trouxe consequências muito graves para todos os envolvidos, gerando discussões calorosas que começam na citada festa na casa de Margo, onde Bette Davis dispara a célebre frase: “Apertem os cintos, esta será uma noite turbulenta”. Comprovando seu controle da misè-en-scene, Mankiewicz extrai ótimas atuações de todo o elenco nestes momentos, como na feroz discussão após um teste em que Eve substitui Margo, onde a guerra de egos entre diretor, roteirista e atriz dá espaço para acusações pesadas enquanto Eve, que provocou tudo aquilo, sai de fininho – observe como após a discussão, Mankiewicz diminui Margo na tela, num plano que indica o início de sua decadência.

Ainda entre os destaques do elenco, Gary Merrill se sai muito bem nas realistas discussões entre Margo e o marido Bill, enquanto Celeste Holm confere humanidade a Karen ao demonstrar seu arrependimento por trair a amiga e, especialmente, quando ri aliviada no jantar após Margo anunciar que não quer mais o papel de Cora. Já Hugh Marlowe ilustra bem como Lloyd é lentamente hipnotizado por Eve, enquanto a linda Marilyn Monroe tem uma rápida participação como uma aspirante ao estrelato que é massacrada por Eve num teste. E finalmente, George Sanders quase rouba a cena como o crítico DeWitt, demonstrando na expressão de seu rosto que desconfia da história contada por Eve desde o princípio e protagonizando a memorável cena em que desmascara a garota e mostra que nem todos caíram na lábia dela.

Confiante, olhar penetrante e voz firmeRi aliviada no jantarCrítico DeWittAliás, é incrível como o tema de “A Malvada” continua atual. Não são raras as ocasiões em que jovens passam por cima de todos para alcançarem o sucesso, não apenas no meio artístico, mas em quase todas as profissões. É possível até mesmo traçar um paralelo entre a trajetória de Eve e a postura de “carreiristas” no meio corporativo. Quem já trabalhou em grandes corporações sabe como este tipo de comportamento é comum e, o que é pior, normalmente é recompensado. Pessoas que fingem serem totalmente altruístas, mas que estão à espreita da primeira oportunidade para chegarem ao topo, independente dos meios que utilizem para isto.

Repleto de diálogos memoráveis e atuações exuberantes, “A Malvada” é destes filmes que não envelhecem. E se o talento de todos os envolvidos é responsável direto por isso, seu tema principal também colabora bastante, já que a ambição pelo sucesso é algo que o ser humano naturalmente carrega, ainda que nem todos precisem de ferramentas tão sujas quanto às utilizadas por Eve Harrington para serem bem sucedidos. Ainda que tenha pisado em todos ao seu redor, Eve de fato chegou ao topo, mas neste mundo tudo é passageiro e a ótima sequência final ilustra que sempre existirão novas “Eves”.

A Malvada foto 2Texto publicado em 19 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

FARRAPO HUMANO (1945)

(The Lost Weekend)

5 Estrelas 

Filmes em Geral #99

Vencedores do Oscar #1945

Dirigido por Billy Wilder.

Elenco: Ray Milland, Jane Wyman, Phillip Terry, Howard Da Silva, Frank Faylen, Doris Dowling e Mary Young.

Roteiro: Billy Wilder e Charles Brackett, baseado em novela de Charles R. Jackson.

Produção: Charles Brackett.

Farrapo Humano[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Billy Wilder já era um cineasta reconhecido e respeitado em Hollywood quando finalmente venceu seu primeiro Oscar de direção por este “Farrapo Humano”, um estudo sufocante sobre o alcoolismo que, além de contar com o enorme talento do diretor, traz ainda uma atuação simplesmente estupenda de Ray Milland na pele do protagonista viciado. Incrivelmente atual, o longa está longe de ser um mero libelo antialcoolismo, trazendo um complexo estudo de seu personagem e, mesmo numa época em que os estúdios costumavam interferir muito nas produções, entregando um resultado admiravelmente corajoso.

O longa inicia quando Don Birnam (Ray Milland) se prepara para viajar com o irmão Wick (Phillip Terry) e a namorada Helen (Jane Wyman) para o campo, onde ficaria distante das bebidas e poderia tentar se livrar do alcoolismo. Só que, após convencê-los a alterar o horário da viagem para assistir uma peça, Birnam sai para beber e desencadeia uma série de acontecimentos que só o afundam cada vez mais no vício, deixando-o mais distante de realizar seu sonho de se tornar um escritor.

Como é característico em sua filmografia, o roteiro escrito pelo próprio Wilder ao lado de Charles Brackett é recheado de diálogos ágeis, que se tornam ainda mais velozes pela maneira como são pronunciados pelos atores, numa estratégia que inteligentemente confere ritmo a narrativa. Ainda assim, existe espaço para que a marcante trilha sonora de Miklos Rozsa pontue os momentos mais dramáticos, aumentando o volume dos acordes e ajudando a criar a atmosfera pretendida pelo diretor. Exibindo movimentos de câmera mais estilizados que de costume, Wilder cria sequências muito interessantes, como no zoom que nos aproxima do rosto de Birnam antes do primeiro flashback, que, por sua vez, serve para aliviar um pouco uma narrativa até então sufocante, numa escolha acertada do diretor e seu montador Doane Harrison, que também se destaca pela maneira elegante que realiza as transições do dia para a noite e da noite para o dia, ilustrando como Birnam perde a noção do tempo quando começa a beber.

Ainda na direção, Wilder abre “Farrapo Humano” com um travelling que nos leva até a janela do protagonista, revelando uma garrafa pendurada do lado de fora e, ao mesmo tempo, ilustrando nossa condição de meros observadores daquela trajetória de autodestruição – e repare como um simples plano rápido de um cigarro na janela já permite que o espectador antecipe que Wick descobrirá a garrafa pendurada. E o mais curioso é que desde o início fica evidente a condição peculiar de Birnam, que até tenta deixar o alcoolismo de lado quando conhece Helen, mas nunca chega a realmente desejar parar. As pessoas que o cercam querem que ele pare, o espectador quer que ele pare, mas ele mesmo não quer. Também por isso, vale destacar o plano em que Birnam liga para Helen de dentro de uma cabine no hotel segundos antes de voltar a se afundar no vício, num simbolismo perfeito da verdadeira prisão que o alcoolismo representa para ele.

Garrafa pendurada do lado de foraVerdadeira prisãoRosto suadoProfundo conhecedor da linguagem cinematográfica, Wilder utiliza a câmera para fazer com que o espectador praticamente sinta o desespero de Birnam para beber, empregando closes em seu rosto suado e realçando as expressões marcantes de Milland. Assim, “Farrapo Humano” obtém sucesso absoluto na tarefa de demonstrar com clareza como funciona o alcoolismo. Em certo momento, Birnam diz para o barman Nat (Howard Da Silva) que durante a noite a bebida é um aperitivo, mas de manhã ela funciona como remédio (“Qualquer marca serve, é tudo igual”, diz). Por isso, ele se desespera quando não encontra uma bebida sequer em seu apartamento, demonstrando grande alívio quando acha uma garrafa perdida, após um interessante plano que revela o paradeiro dela. Aliás, observe como na maioria das vezes em que Birnam entra no apartamento portando garrafas, a fotografia de John F. Seitz se torna mais sombria, simbolizando mais um passo do personagem em direção ao fundo do poço.

O visual se torna ainda mais obscuro e sufocante a partir do momento em que ele é internado num hospital, abrindo espaço para os impressionantes delírios de um paciente. Estes delírios também atormentam o próprio protagonista em dois momentos que, mesmo soando um pouco datados visualmente, ainda mantém a capacidade de nos atormentar, especialmente no segundo caso, quando ele imagina o ataque de um morcego em seu apartamento.

Demonstrando que o alcoolismo comanda sua vida desde os primeiros instantes, Birnam mal consegue organizar seus pensamentos, encontrando a felicidade somente quando segura um copo ou uma garrafa – e até mesmo seu apartamento bagunçado e suas roupas amassadas ilustram este descaso com a vida, realçando o bom trabalho de direção de arte de Hans Dreier e Earl Hedrick e da ótima figurinista Edith Head. Assumindo este difícil papel com personalidade e talento, Ray Milland surge agressivo, gritando em diversos momentos e reagindo de maneira visceral a qualquer manifestação que o contrarie. No entanto, o grande mérito do ator é evitar que o personagem se torne uma caricatura e se afaste completamente da plateia, algo que seria muito fácil se nos baseássemos somente em suas atitudes. Afinal, ele rouba dinheiro do irmão, não se importa com o sofrimento da namorada e muito menos com os sentimentos de uma pretendente. Além disso, perambula pela cidade com sua máquina de escrever, na esperança de conseguir uns trocados para poder comprar mais bebidas.

Ataque do morcegoApartamento bagunçadoPerambula pela cidadeEntretanto, ainda que muito sutilmente, podemos perceber que algo de bom existe dentro daquele homem amargurado, seja quando passeia pela cidade e cumprimenta as pessoas (“Este é o moço gentil que bebe”, diz uma mulher), seja quando assume sua condição sufocante, como no sensacional monólogo no bar em que afirma se sentir como Shakespeare quando bebe, num dos inúmeros grandes momentos da atuação de Milland. Em outro instante, chega a ser comovente a maneira como ele admite seu vício diante de Helen e revela seu desejo frustrado de ser escritor; e são justamente estes momentos, além é claro do carisma de Milland, que permitem que o personagem crie empatia com a plateia, o que é essencial para não nos distanciar da narrativa. Mesmo com todos seus problemas, nós torcemos pelo sucesso do deplorável Birnam.

Quem também se preocupa muito com ele é batalhadora e apaixonada Helen, interpretada com carisma por Jane Wyman e que se torna responsável pelos raros momentos em que ele considera a possibilidade de parar, além é claro de seu irmão Wick, vivido por Phillip Terry e que, após muito tempo lutando, acaba se irritando com a situação e decide deixá-lo para trás, talvez por entender que jamais Birnam conseguiria se livrar do alcoolismo.

E esta é basicamente a mensagem de “Farrapo Humano”, evidenciada ao longo de toda a narrativa através da metáfora dos círculos, “a forma geométrica perfeita, sem começo e sem fim”. Wilder faz questão de utilizar constantemente este simbolismo, seja através do close nos círculos formados pelo copo no balcão do bar ou pela própria estrutura da narrativa, que inicia e termina com o mesmo movimento de câmera, ilustrando que, apesar do tom levemente otimista do final (talvez alguma imposição do estúdio na época), o diretor quer ressaltar que o alcoolismo é uma doença praticamente sem cura, como o próprio personagem afirma em diversos momentos. Ou seja, independente do que aconteça, basta um simples gole para que o alcoólatra volte ao seu círculo de autodestruição.

O longa tem ainda sua porção de cenas capazes de nos deixar apreensivos, como quando Birnam rouba a bolsa de uma mulher e é expulso de um bar ou toda a sequência final em que ele se prepara para o suicídio, na qual o espectador realmente teme pelo futuro do personagem. Só que o grande mérito de “Farrapo Humano” reside mesmo no fato de abordar o alcoolismo com tamanha seriedade numa época em que isto representava uma ousadia temática notável. Mais do que isto, o longa de Wilder consegue humanizar aquele personagem que poderia ser detestável, servindo como um belo estudo não apenas daquele homem, mas do próprio alcoolismo, uma doença complexa e mal compreendida por muitos até hoje.

Farrapo Humano foto 2Texto publicado em 18 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira