DUELO DE TITÃS (2000)

(Remember the Titans)

2 Estrelas 

Filmes em Geral #95

Dirigido por Boaz Yakin.

Elenco: Denzel Washington, Will Patton, Wood Harris, Ryan Hurst, Ryan Gosling, Donald Faison, Craig Kirkwood, Ethan Suplee e Kate Bosworth.

Roteiro: Gregory Allen Howard.

Produção: Jerry Bruckheimer e Chad Oman.

Duelo de Titãs[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A história do esporte é uma fonte inesgotável de inspiração para todo e qualquer artista que se proponha a pesquisá-la. Independente da modalidade escolhida, inúmeros são os casos de superação, ascensão repentina e decadência absoluta, além das diversas oportunidades em que o esporte provou ter influência na política e na sociedade de maneira geral. O problema é que estas histórias tendem a ser repetitivas e, ainda que tenham as melhores intenções por trás do projeto, tornam-se esquemáticas e previsíveis demais nas mãos de um diretor menos habilidoso. Infelizmente, este é o de “Duelo de Titãs”.

Baseado numa história real e com grande potencial, o fraco roteiro escrito por Gregory Allen Howard nos leva ao início dos anos 70 na Virginia, EUA, quando a integração racial começava a ganhar força nas escolas, para o protesto da grande maioria da população local. Assim, a simples substituição do técnico de um time de futebol americano numa universidade é capaz de gerar enorme desconforto tanto entre os jogadores como em toda a sociedade somente porque o antigo treinador Bill Yoast (Will Patton) é branco e o novo técnico Herman Boone (Denzel Washington) é negro. Diante deste contexto, a dura missão do novo treinador vai além de formar uma equipe competitiva, tendo também que forçar os jogadores a superarem suas diferenças e conquistarem o campeonato.

A grande sacada de “Duelo de Titãs” é justamente utilizar o esporte como pano de fundo para abordar o racismo nada velado daquele período da historia norte-americana. Por isso, é muito interessante observar a maneira crua como o roteiro mostra que o racismo estava cravado na cultura do local, com professores, alunos, comerciantes e até mesmo os próprios pais demonstrando enorme preconceito racial, como fica evidente no protesto contra a integração feito pelas mães dos alunos que nos leva a refletir como o ser humano é mesmo capaz de fazer coisas horríveis. Por isso, utilizar o esporte como um fator de união entre as pessoas é algo que normalmente funciona, ainda que isto não seja nada original. Só que os meios utilizados por Howard e pelo diretor Boaz Yakin para nos levar a esta agregação é que são decepcionantes.

Abusando de diversas situações mais que batidas, a dupla cria uma sequência de discussões e conflitos totalmente artificiais, fazendo com que a narrativa soe cada vez menos realista. Aliás, os conflitos entre negros e brancos são tantos que, antes da metade da projeção, já estamos entediados, num excesso que esvazia o efeito que estes embates poderiam causar. Pra piorar, a dupla aposta no velho clichê dos brancos e negros que primeiro se odeiam para depois se adorarem, só que felizmente esta transição ocorre rapidamente e, apesar de soar pouco verossímil, traz uma melhora sensível na narrativa, tornando-a mais interessante quando eles começam a se dar bem, graças também à dinâmica do grupo, que realça a boa atuação coletiva daqueles jovens.

Protesto contra a integraçãoConflitos entre negros e brancosGrupo carismáticoNa verdade, extrair boas atuações do elenco de apoio é um dos raros acertos de Yakin em “Duelo de Titãs”. Com atores certos nos papeis certos, ele consegue criar um grupo carismático, onde se destacam o determinado Gerry (Ryan Hurst), o sensível Julius (Wood Harris), o inteligente “Raios de Sol” (Kip Pardue) e o divertido Alan Bosley, interpretado por um ainda jovem Ryan Gosling. Apesar disso, nem sempre os atores conseguem driblar as falhas gritantes do roteiro. Repare, por exemplo, como num instante “Raio do sol” surge intimidado e sem confiança somente para em seguida se transformar num líder nato, capaz de orientar toda a equipe e virar uma partida – esta vibrante partida, aliás, consegue empolgar mesmo com sua pequena duração, o que não acontece na maioria dos jogos.

Entre os atores mais conhecidos, a postura durona e autoritária de Herman Boone combina muito bem com o estilo de Denzel Washington, mas não com a profissão de treinador, já que este método militar e ultrapassado não se encaixa mais aos modelos modernos de liderança. Ainda assim, o competente Washington leva bem a narrativa, ainda que seu personagem chegue bem perto de se tornar antipático. Já o estilo mais humano e intimista de liderar de Bill Yoast consegue recuperar jogadores e aproximá-lo do grupo, mas isto é insuficiente para que ele se torne o “bom moço” diante da plateia, graças exclusivamente a inexpressividade gritante de Will Patton.

Durão e autoritárioMais humano e intimistaClosesAparentemente sem perceber a falta de expressividade de Patton, Yakin abusa de close-ups não apenas dele, mas de todo o elenco. Além disso, ao imprimir um ritmo acelerado e cheio de cortes secos nos treinamentos e jogos, Yakin e seu montador Michael Tronick tornam as sequências confusas, não permitindo que o espectador compreenda o que está acontecendo com clareza – e mais uma vez o excesso de closes do diretor só piora as coisas nestes momentos. Ao menos, o estádio, os uniformes dos jogadores e a iluminação precisa utilizada nas partidas noturnas nos ambientam com precisão ao clima dos jogos, o que é mérito do design de produção de Deborah Evans, dos figurinos de Judy Ruskin Howell e da fotografia de Philippe Rousselot.

Da mesma forma, o design de som merece destaque por permitir que o espectador ouça desde detalhes como o apito e os gritos dos jogadores até os sons mais intensos dos choques entre eles e da vibração da torcida. Por outro lado, apesar de apresentar músicas empolgantes como a que acompanha um treinamento de madrugada, a trilha sonora de Trevor Rabin se excede constantemente, especialmente quando tenta ressaltar algum momento dramático como no ataque à casa de Boone. Além disso, as músicas diegéticas (cantadas pelos atletas) são repetitivas e enjoam.

Repetição, aliás, é uma palavra que define bem “Duelo de Titãs”, já que constantemente temos aquela sensação de estar assistindo mais do mesmo. O desfile de clichês continua com o mais que previsível acidente de Gerry, anunciado assim que ele convida Julius para sair e o amigo se recusa. Tentando conferir naturalidade a sequência, Yakin escorrega ao focar o rosto do garoto olhando para o lado segundos antes da colisão, permitindo que o espectador antecipe o que irá acontecer e, consequentemente, diminuindo o impacto da cena. Seguindo a tendência de todo o filme, a partida final é totalmente previsível e sem graça, permitindo que o espectador antecipe seu resultado muito tempo antes de sua concretização. Fica óbvio que “Rev” (Craig Kirkwood) será um jogador chave na partida desde o instante em que ele pede para jogar a final, assim como fica óbvio que as mudanças dos treinadores trarão resultado imediato no confronto assim que eles “abrem mão do orgulho” e aceitam conselhos. Assim, todos se reconciliam e vivem felizes, como aconteceria em qualquer novela do horário nobre.

Usar o esporte como pano de fundo para abordar um tema tão complicado quanto o preconceito racial é um dos raros trunfos de “Duelo de Titãs”. Infelizmente, no entanto, este acerto é diluído diante de tantos problemas.

Duelo de Titãs foto 2Texto publicado em 19 de Dezembro de 2012 por Roberto Siqueira

JERRY MAGUIRE – A GRANDE VIRADA (1996)

(Jerry Maguire)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #94

Dirigido por Cameron Crowe.

Elenco: Tom Cruise, Cuba Gooding Jr., Renée Zellweger, Kelly Preston, Jerry O’Connell, Bonnie Hunt, Jay Mohr, Regina King, Jonathan Lipnicki, Todd Louiso, Mark Pellington, Donal Logue, Eric Stoltz, Lucy Liu e Beau Bridges.

Roteiro: Cameron Crowe.

Produção: James L. Brooks, Cameron Crowe, Laurence Mark e Richard Sakai.

Jerry Maguire - A Grande Virada[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando decidiu escrever e dirigir “Jerry Maguire”, Cameron Crowe era apenas um ex-colaborador da tradicional revista “Rolling Stone” com dois filmes no currículo. Entretanto, ao apostar na mistura de dois gêneros recheados de clichês e na força do então maior astro de Hollywood, ele finalmente alcançou o sucesso. Com boas atuações, alguns diálogos interessantes e uma abordagem mais humanista de temas batidos, o diretor/roteirista entregou um bom filme, que está longe de ser uma obra-prima, mas nos diverte de maneira delicada e eficiente.

O longa narra a trajetória de Jerry Maguire (Tom Cruise), um agente esportivo picareta e eficiente que, após ser confrontado pelo filho de um jogador lesionado, decide escrever uma declaração sugerindo que os agentes esportivos sejam mais humanos, ganhem menos e deem mais atenção aos seus clientes. Como consequência, ele acaba demitido da agência em que trabalha e acaba abrindo a própria agência, ao lado da também ex-funcionária Dorothy Boyd (Renée Zellweger). O problema é que dentre todos os atletas agenciados por Jerry, somente o jogador de futebol americano Rod Tidwell (Cuba Gooding Jr.) decide continuar com ele.

Se comédias românticas dificilmente conseguem fugir de certos clichês, filmes de esporte não ficam nem um pouco atrás, normalmente trazendo histórias de superação repletas de situações batidas que já estamos mais do que acostumados a ver. Ciente disso, Crowe se mostra inteligente o bastante para não tentar desconstruir estes gêneros, já que esta tarefa exigiria um esforço tremendo e um talento digno de um Tarantino – algo que, convenhamos, Crowe sabe que não é. Ao invés disso, ele aposta numa abordagem mais realista, menos sentimental e mais humana, obtendo um resultado que, se não enche os olhos, ao menos soa sincero e, por isso, agrada.

Ainda assim, Crowe não escapa de situações convencionais dos dois gêneros, mostrando a queda em desgraça do protagonista que, obviamente, se recuperará, o atleta que não é conhecido e que chegará ao sucesso (ainda que, neste caso, seja através de uma situação bem diferente daquela que imaginamos) e o casal que só descobre que se ama de verdade após uma breve separação. Entretanto, se comete alguns equívocos que prejudicam seu trabalho, Crowe ao menos escapa do clichê “mocinha briga com mocinho e deixa a cidade” no último instante ao fazer com que ela fique e se case com ele. No entanto, a briga é apenas adiada e momentos depois eles decidem “dar um tempo”, num diálogo tocante em que Cruise e Zellweger se saem muito bem. Além disso, o igualmente previsível drama que Rod enfrenta no ato final tem um desfecho bem agradável e abre espaço para que Cuba Gooding Jr. abuse de seus maneirismos e exageros sem prejudicar a narrativa, da mesma forma que o esperado reencontro entre Jerry e Dorothy se salva pela forma delicada em que é conduzido pelo diretor – além, é claro, das atuações convincentes da dupla romântica.

Eles decidem dar um tempoDrama de RodReencontroTambém seguindo a fórmula das comédias românticas, a fotografia de Janusz Kaminski investe em cores quentes e cenas diurnas, colaborando para a sensação de bem estar da plateia que é reforçada pela montagem ágil de Joe Hutshing e David Moritz. Igualmente, a econômica trilha sonora aposta em belas músicas como “Secret Garden”, de Bruce Springsteen, para embalar momentos marcantes como a saída de Jerry e Dorothy para um jantar. E se não ganha grande destaque na maior parte do tempo, ao simular as batidas aceleradas do coração de Jerry o design de som nos prepara para uma negociação importantíssima para o futuro dele segundos antes do agente entrar na casa de Cush (Jerry O’Connell), além de se destacar durante as partidas, realçando o barulho das arquibancadas e os choques entre os atletas com precisão.

A abordagem leve da narrativa se confirma através de interessantes tiradas do diretor, como o divertido mentor de Jerry que surge de vez em quando para deixar algumas de suas mensagens motivacionais. Só que, para uma comédia romântica, “Jerry Maguire” tem poucos momentos realmente capazes de provocar o riso, ainda que algumas sequências sejam memoráveis, como quando Jerry grita no telefone (“Show me the Money!”) ou quando Dorothy decide sair da empresa junto com ele, numa cena em que a boa atuação de Cruise ganha ainda mais destaque pelos trejeitos e exageros do ator. Aliás, se a parte técnica e até mesmo a direção de Crowe é discreta, é também porque o diretor sabe que “Jerry Maguire” é um filme essencialmente de personagens e, por isso, são eles que devem brilhar. Empregando constantemente o tradicional plano/contraplano, ele realça o que o longa tem de melhor e evita ofuscar as boas atuações com excesso de virtuosismos. Ainda assim, o diretor utiliza a câmera ágil para nos colocar dentro dos jogos, nos permitindo sentir o calor das partidas.

Jerry Maguire é tão egocêntrico que até mesmo a narração é feita em primeira pessoa. Famoso pela cara de pau com que mente e por enganar qualquer um, ele se beneficia desta fama para conseguir os melhores contratos para seus jogadores – e o sorriso constante de Cruise só colabora para criar esta aura de falsidade no personagem. Agindo com naturalidade em diversos momentos, como quando Jerry tenta cantar diversas músicas no carro até finalmente conseguir encontrar aquela que casa com seu estado de espírito, Cruise confere enorme carisma ao agente, conquistando a plateia quase que instantaneamente, o que é vital para que o espectador torça por seu sucesso profissional e pessoal, a despeito de seus métodos inicialmente desprezíveis. Inteligente, Jerry conquista Dorothy também através de seu filho Ray (Jonathan Lipnicki), afinal, que mãe não gosta de ver alguém tratando bem seu filho? Ele acaba criando tanta afinidade com o garoto que, no fim das contas, é justamente ao vê-lo chorando que Jerry decide propor Dorothy em casamento. Ironicamente, é também o garoto que serve de escudo para que Jerry evite discutir a relação com Dorothy quando fica evidente que ele casou por gratidão e não por amor.

Aura de falsidadeTratando bem seu filhoTímida e atrapalhadaTímida e atrapalhada, a Dorothy de Zellweger se mostra empolgada diante da presença de Jerry desde a saída do avião, ainda na sequência que abre o filme. Constantemente observando casais que trocam carícias, ela escancara sua carência para Jerry de maneira nada sutil, mas compensa sua falta de prática na arte da paquera com grande carisma, desarmando-se completamente enquanto se envolve com o novo chefe. Por isso, chega a ser dolorido acompanhá-los levando aquela relação adiante mesmo sabendo que estão apenas curando sua carência ao lado de outra pessoal igualmente ressentida. E, também por isso, tanto a breve separação quanto o esperado retorno do casal conseguem conquistar o espectador, ainda que seja apenas a repetição de uma velha fórmula do gênero.

Claramente se divertindo no papel, Cuba Gooding Jr. chama a atenção sempre que entra em cena com seu jeito espalhafatoso que cai muito bem no divertido Rod. Seus diálogos com Jerry são sempre envolventes e engraçados, demonstrando a química entre os atores e dando vida a narrativa. Por isso, é uma pena que o roteiro invista pouco na boa dinâmica dos dois, gastando muito tempo no previsível relacionamento entre Jerry e Dorothy. Por sua vez, Bonnie Hunt evita transformar Laurel no estereótipo da irmã mais velha e chata que sente inveja da mais nova, demonstrando carinho e preocupação com ela justamente por não querer vê-la sofrer, mas vibrando com os momentos felizes da irmã (como quando sorri sozinha na janela ao escutar a noite de amor da caçula). E fechando o elenco, Kelly Preston vive a agitada e maluca Avery, a ex-noiva de Jerry que termina com ele por um motivo totalmente artificial e arbitrário inserido pelos roteiristas apenas para liberar o caminho do protagonista.

Longo demais para uma comédia romântica, “Jerry Maguire” ao menos trata a relação entre o casal principal de maneira adulta, tornando seus personagens um pouco mais críveis e aproximando-os da plateia. Com um final alegre, este típico “feel good movie” se destaca também pelas boas atuações, nos divertindo e, ao mesmo tempo, deixando algumas reflexões que podem não mudar o mundo, mas fazem com que o espectador se sinta mais humano.

Jerry Maguire - A Grande Virada foto 2Texto publicado em 18 de Dezembro de 2012 por Roberto Siqueira

CARRUAGENS DE FOGO (1981)

(Chariots of Fire)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #93

Vencedores do Oscar #1981

Dirigido por Hugh Hudson.

Elenco: Ben Cross, Ian Charleson, Ian Holm, Alice Krige, Nicholas Farrell, John Gielgud, Cheryl Campbell, Lindsay Anderson, Nigel Davenport, Dennis Christopher e Richard Griffiths.

Roteiro: Colin Welland.

Produção: David Puttnam.

Carruagens de Fogo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Se você já assistiu qualquer edição dos Jogos Olímpicos ou viu alguma matéria a respeito, certamente também já ouviu a música tema de “Carruagens de Fogo”, mesmo que jamais tenha assistido um minuto sequer do longa vencedor do Oscar de 1982 dirigido por Hugh Hudson. Emblemática, a canção se imortalizou como um dos símbolos da maior competição esportiva do mundo, graças à composição simultaneamente graciosa e imponente do grego Vangelis. É uma pena, portanto, que mesmo apresentando qualidades, no fim das contas o filme seja apenas mais uma entre tantas outras histórias de superação no esporte.

Escrito por Colin Welland, “Carruagens de Fogo” narra a história dos jovens Harold Abrahams (Ben Cross) e Eric Liddell (Ian Charleson), que se destacam nas competições nacionais e acabam sendo convocados para os Jogos Olímpicos de 1924, em Paris. O escocês Eric é missionário e afirma correr em nome de Deus, enquanto Abrahams, inglês descendente de judeus, corre para conquistar a fama e, desta forma, aliviar o preconceito que sofre por sua origem. Derrotado por Eric numa disputa caseira, Abrahams decide contratar o treinador Sam Mussabini (Ian Holm), o que desagrada os líderes da faculdade onde ele treina.

Ainda que o fio condutor da narrativa seja a competição entre Eric e Abrahams, “Carruagens de Fogo” tem uma abordagem mais intimista que toca em outros temas interessantes como a xenofobia e o preconceito contra os judeus, responsável pelo sofrimento de Abrahams evidenciado num jantar com Sybil (Alice Krige), e também contra outros povos, evidente na rejeição dos supervisores de Cambridge ao treinador Sam Mussabini, descendente de italianos e árabes. “Sou inglês em primeiro e último lugar”, afirma Abrahams em certo momento, ilustrando sua preocupação em ser aceito numa sociedade extremamente preconceituosa. Ilustrando este sofrimento de maneira convincente, Ben Cross leva bem o papel, demonstrando ainda a determinação do personagem em sua busca constante pela vitória, que é também uma das marcas de seu concorrente. Essencial nesta busca, o treinador Sam conta com o carisma de Ian Holm, que rouba a cena sempre que surge, passando muita confiança no que diz e convencendo tanto Abrahams quanto o espectador de que ele conhece muito sobre o assunto.

Busca constante pela vitóriaTreinador SamCorda bamba emocionalEvidenciando o peso da religião em sua formação, o Eric de Ian Charleson tenta conciliar sua fé com o prazer pelo esporte, equilibrando-se numa corda bamba emocional que constantemente faz com que ele tenha dúvidas sobre o caminho que deve seguir. Ilustrando este conflito através do semblante e do jeito introspectivo, o ator se sai bem, especialmente quando Eric decide abrir mão de competir no sábado, mostrando-se firme diante do irritado presidente da confederação britânica, num momento que provoca reflexão sobre até onde o estado pode interferir na fé pessoal e vice-versa. Fechando o elenco, temos as mulheres que, de maneiras distintas, interferem no desempenho dos dois atletas centrais. Enquanto Alice Krige confere charme a sua Sybil e se torna mais do que uma namorada para Abrahams, funcionando como conselheira e amiga nos momentos difíceis, a fanática religiosa Jennie interpretada por Cheryl Campbell só colabora para aumentar o dilema do irmão Eric, demonstrando seguir a religião mais por medo do que por convicção – algo que, convenhamos, não é tão incomum.

Conduzindo a trajetória de Eric e Abrahams em paralelo na primeira metade do longa, o diretor Hugh Hudson foca mais nos personagens e em seus dilemas do que na competição entre eles, o que confere um ritmo lento que eventualmente é quebrado pelas competições e, ao mesmo tempo, nos prepara para o encontro deles nos esperados Jogos Olímpicos. Para isto, ele conta com a montagem de Terry Rawlings, que não consegue fugir da abordagem episódica, utilizando até mesmo letreiros para indicar a passagem do tempo e saltar de 1978 para 1924 e, em seguida, para 1919, sobressaindo-se apenas em momentos especiais como os treinamentos e as competições oficiais. Da mesma forma, são raros os momentos em que a direção de Hudson chama a atenção, como quando a câmera passeia pelos personagens na chegada dos alunos a Cambridge. E de tanto utilizar a câmera lenta, Hudson acaba esvaziando o impacto desta técnica no terceiro ato, desgastando o efeito ao longo da projeção.

Por sua vez, os figurinos de Milena Canonero reproduzem com precisão os uniformes utilizados pelos atletas na época e, auxiliados pelos cenários detalhados em Cambridge e pelos carros antigos (design de produção de Jonathan Amberston, Len Huntingford, Anna Ridley e Andrew Sanders), nos jogam para dentro dos anos 20, da mesma forma que o estádio pequeno e os impecáveis trajes formais do público evocam a atmosfera dos primeiros Jogos Olímpicos nas disputas oficiais. Captando esta atmosfera, a fotografia de David Watkin aposta em cores claras e cenas diurnas, destacando-se também nos belos planos que realçam a beleza dos campos escoceses.

Uniformes dos atletasCambridgeAtmosfera dos primeiros Jogos OlímpicosEntretanto, o grande destaque – não apenas da parte técnica, mas de todo o filme – fica para a trilha sonora magistral e inesquecível do ótimo Vangelis, que se tornou um dos símbolos das Olimpíadas com o passar dos anos. Surgindo de maneira econômica, a trilha pontua momentos marcantes dos atletas nas competições através de variações interessantes, utilizando o tema principal somente na abertura e no encerramento de “Carruagens de Fogo”, enquanto acompanhamos aqueles jovens correndo pela praia. Certamente, este casamento perfeito entre som e imagem é um dos melhores momentos do longa, já que, apesar da construção gradual da narrativa, o clímax está bem longe de ser empolgante, nem tanto por ser previsível, mas principalmente devido à condução burocrática de Hudson, que repete a câmera lenta exatamente como fez em todo o filme, com exceção da primeira vez em que acompanhamos Abrahams nas finais dos cem metros rasos – e que, exatamente por isso, é a corrida que mais empolga no ato final.

Ainda que saia da mesmice ao abordar temas interessantes como a xenofobia e o fanatismo religioso e ganhe créditos por priorizar os personagens e não as competições, a belíssima trilha sonora de Vangelis é mesmo o que “Carruagens de Fogo” tem de melhor.

Carruagens de Fogo foto 2Texto publicado em 17 de Dezembro de 2012 por Roberto Siqueira

A MÚMIA (1999)

(The Mummy)

Filmes em Geral #92

Dirigido por Stephen Sommers.

Elenco: Brendan Fraser, Rachel Weisz, John Hannah, Arnold Vosloo, Kevin J. O’Connor, Oded Fehr, Jonathan Hyde, Erick Avari, Bernard Fox, Omid Djalili e Patricia Velasquez.

Roteiro: Stephen Sommers.

Produção: Sean Daniel e James Jacks.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apostar na mistura de ação e bom humor tornou-se algo comum na indústria de Hollywood, quase como um mantra que deve ser seguido à risca nos filmes de aventura. O problema é que, infelizmente, não é toda hora que surge um Steven Spielberg e seu “Os Caçadores da Arca Perdida”, filme que influenciou nove entre cada dez produções que surgiram no gênero nos últimos trinta anos. Entretanto, nem tudo está perdido neste “A Múmia”, de Stephen Sommers, que, apesar da irregularidade, acerta justamente pelo tom leve e descontraído empregado pelo diretor.

Escrito pelo próprio Sommers, “A Múmia” conta a história de um grupo de arqueólogos que, liderados por Rick O’Connell (Brendan Fraser) e Evelyn Carnahan (Rachel Weisz), trazem acidentalmente o lendário Faraó Imhotep (Arnold Vosloo) de volta à vida, séculos após este sofrer o terrível castigo de ser mumificado vivo em Hamunaptra, a lendária cidade dos mortos. Surgindo de maneira curiosa através de uma brincadeira que transforma o logo da Universal no sol (assim como nos filmes de Indiana Jones, nos quais o logo da Paramount era alvo de brincadeiras similares), a narrativa inicia através de um travelling que nos leva ao Egito antigo e seus cenários imponentes, seguido pela excelente introdução que, em poucos minutos, nos revela a origem da lendária história de Imhotep e, numa elegante transição de três mil anos através de uma estátua, nos traz para o tempo em que se passará a narrativa, captando imediatamente a atenção da plateia.

Empregando acertadamente um tom de autoparódia que jamais se leva a sério, Sommers alterna entre momentos empolgantes e insossos que tornam a narrativa bastante irregular. Além disso, o diretor falha em algumas tentativas pouco inspiradas de provocar o riso, como a negociação entre Evelyn e Hassan (Omid Djalili) sobre a porcentagem de cada um durante o enforcamento de O’Connell, errando ainda ao investir no eterno clichê do casal que se estranha inicialmente e depois se apaixona – neste caso, ao menos Evelyn dá sinais de que gosta de Rick desde o principio. Por outro lado, o diretor se sai bem em outros inúmeros momentos engraçados e também nas sequências de ação, empregando um ritmo intenso que prende a atenção do espectador, além de demonstrar habilidade na criação de planos interessantes, como no imponente muro de areia comandado por Imhotep no deserto ou aqueles que revelam toda a riqueza escondida no submundo da região de Hamunaptra.

Apesar de sua clara inspiração em Indiana Jones, “A Múmia” peca ao não seguir algo que conferia bastante realismo aos filmes do famoso arqueólogo, já que Sommers prefere deixar de lado as trucagens e abusa do CGI, diminuindo, por exemplo, o impacto dos insetos que surgem em diversos momentos, já que sabemos que os atores estão contracenando com imagens criadas em computador. Aliás, Sommers não parece prezar pela verossimilhança, tentando nos fazer acreditar que, três anos depois, durante a noite e a muitos metros de distancia, o guardião Bay (Oded Fehr) reconheceria Rick no deserto, ou então que, no extenso terceiro ato, a Múmia hesitaria diante da indefesa Evelyn mesmo estando tão próxima de ressuscitar sua amada Anck Su Namun (Patricia Velasquez).

Utilizando cores quentes nas áridas sequências que exploram a beleza do deserto e iluminando muito bem os ambientes fechados para colaborar na criação da atmosfera de suspense, a fotografia de Adrian Biddle reflete a alternância entre suspense e bom humor da narrativa, algo ressaltado também pela empolgante trilha sonora do ótimo Jerry Goldsmith. Por sua vez, os figurinos de John Bloomfield conferem realismo ao que vemos na tela e colaboram na imersão do espectador, assim como os imponentes cenários (direção de arte de Giles Masters, Tony Reading, Clifford Robinson e Peter Russell) e o ótimo design de som. E finalmente, a montagem de Bob Ducsay é essencial para que as cenas de ação funcionem, alternando com agilidade entre os planos sem deixar a plateia confusa.

Também apresentado numa sequência empolgante, Richard O’Connell mostra suas credenciais logo de cara com seu sorriso canastrão, evidenciando que a seriedade não é um traço forte de sua personalidade. Da mesma forma, Fraser deixa claro desde então que as performances caricaturais predominarão na narrativa, entretanto, mesmo abusando das expressões exageradas, ele se sai bem como protagonista, conduzindo a trama e criando empatia com a heroína interpretada por Weisz. Também apresentada numa sequência divertida onde, após derrubar toda a biblioteca em que trabalha, um diálogo expositivo nos explica sua origem, Evelyn surge como uma jovem inteligente, destemida e curiosa, numa combinação que se torna ainda mais perigosa graças ao jeito atrapalhado e gracioso da bibliotecária. Não é à toa, aliás, que a personagem de Rachel Weisz tem esta profissão, funcionando como guia para que o espectador compreenda a importância das descobertas do grupo e a história por trás de cada objeto encontrado nas lendárias terras egípcias – repare como Evelyn surge constantemente explicando algo que leu sobre os lugares ou os artefatos encontrados. Claramente se divertindo no papel, Weisz se sai bem e agrada em diversos momentos, ainda que evidencie sua falta de talento esporadicamente, como quando Evelyn fica bêbada no deserto.

Aparecendo pela primeira vez numa tentativa barata de assustar o espectador, o Jonathan de John Hannah surge repentinamente (e acompanhado pela alta trilha sonora) de um sarcófago e já indica que funcionará como alívio cômico, algo que de fato acontece praticamente o tempo inteiro. Da mesma forma, o Beni de Kevin J. O’Connor é responsável por arrancar risadas do espectador mesmo quando a Múmia aparece, graças ao ótimo desempenho do ator. Mas se esta abordagem leve e descontraída ajuda a tornar o longa mais agradável, por outro lado dilui a força do vilão, algo reforçado também pelas constantes aparições do personagem. Logo na introdução de Rick, por exemplo, temos uma demonstração dos perigos que a Múmia representa e, mesmo que ela volte a surgir somente uma hora depois, este breve momento já diminui o impacto de sua aparição. Contrariando a regra básica do suspense, Sommers ainda usa e abusa dos ótimos efeitos digitais para nos bombardear com diversos closes da Múmia, que sofre também com a expressão imutável de Arnold Vosloo. Obviamente, tudo isso contribui para que este não seja um vilão aterrorizante, o que é um problema grave, considerando que estamos falando de ninguém menos que o personagem título.

Seguindo a fórmula básica das aventuras, “A Múmia” diverte, mas peca em aspectos básicos que poderiam resultar num grande filme. Pelo menos, Stephen Sommers parece ter ciência disto e jamais leva seu filme muito a sério. O resultado é um passatempo agradável, mas completamente esquecível.

Texto publicado em 19 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

A MÁSCARA DO ZORRO (1998)

(The Mask of Zorro)

Filmes em Geral #91

Dirigido por Martin Campbell.

Elenco: Antonio Banderas, Catherine Zeta-Jones, Anthony Hopkins, José María de Tavira, Diego Sieres, William Marquez, Stuart Wilson, Tony Amendola, Joaquim de Almeida e L.Q. Jones.

Roteiro: John Eskow, Ted Elliott e Terry Rossio, baseado em argumento dos dois últimos ao lado de Randall Johnson e inspirado em personagem criado por Johnston McCulley.

Produção: Doug Claybourne e David Foster.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Com uma abordagem leve e divertida, Martin Campbell trouxe de volta às telonas a história do lendário cavaleiro mascarado neste “A Máscara do Zorro”, uma aventura despretensiosa, mas repleta de energia e personagens interessantes, que conta com um bom elenco e ótimas tiradas do roteiro para cumprir seu propósito e, justamente por não se levar muito a sério, nos divertir bastante.

Escrito por John Eskow, Ted Elliott e Terry Rossio, baseado em argumento dos dois últimos ao lado de Randall Johnson e inspirado em personagem criado por Johnston McCulley (ufa!), “A Máscara do Zorro” tem início quando o mexicano Don Diego de la Vega, o Zorro (Anthony Hopkins), desafia a tirania do espanhol Don Rafael (Stuart Wilson) durante uma execução pública, mas tem sua verdadeira identidade descoberta numa invasão domiciliar que resulta na morte de sua esposa Esperanza (Julieta Rosen). Pra piorar a situação, ele é obrigado a ver o rival levar sua filha recém-nascida Elena (Catherine Zeta-Jones) e vai parar na prisão. Vinte anos mais tarde, ele consegue escapar e encontra o jovem ladrão Alejandro Murrieta (Antonio Banderas), a quem adota como pupilo e treina para ser o novo Zorro.

Desde sua empolgante sequência de abertura, “A Máscara do Zorro” conquista a atenção do espectador, sugando-o pra dentro da história enquanto apresenta seu personagem principal, num espetáculo circense que culmina no lindo plano em que Zorro se despede do publico em seu cavalo negro com o pôr do sol ao fundo. Aliás, o diretor Martin Campbell demonstra um cuidado especial na composição de diversos planos impressionantes, como no “Z” escrito em fogo no terreno próximo à casa de Don Rafael ou na impressionante explosão da mina em El Dorado. Além disso, o diretor conduz com surpreendente sutileza momentos melancólicos como a morte de Esperanza, introduzindo até mesmo interessantes rimas narrativas, como quando Don Diego segura a filha diante da mira das armas dos guardas exatamente como fizera com sua esposa vinte anos atrás ou na sequência final em que Zorro narra a história para o filho da mesma forma que Don Diego havia feito com Elena, saindo-se bem ainda ao inserir brincadeiras sutis, como, por exemplo, quando Don Diego diz para Alejandro que em breve ele terá seu inimigo Love (Matt Letscher) em seu círculo – se referindo ao momento em que poderá se vingar do sujeito – e, algum tempo depois, o jovem atinge o adversário pela primeira vez justamente num duelo em cima de uma mesa redonda de jantar.

Campbell também balanceia muito bem as cenas de ação com momentos bem humorados, o que é sempre uma mistura eficiente em filmes do gênero, divertindo-se em diversos instantes como no golpe que introduz a gangue de Alejandro Murrieta e no treinamento dele. E apesar de não prezar pela verossimilhança, a sequência do roubo do cavalo também é divertida e muito bem coreografada, mostrando a habilidade do diretor na condução das cenas de ação. Contando com a boa montagem de Thom Noble que confere fluidez a narrativa, ele imprime energia aos importantes duelos de espada (como aquele entre Zorro, Don Rafael e Love na mansão), demonstrando habilidade até mesmo quando a cena exige uma abordagem mais sensual, no divertido duelo entre Elena e Zorro em que a dupla Banderas e Jones se sai muito bem. Aliás, as acrobacias de Zorro nas lutas e cavalgadas impressionam, assim como a condução enérgica de Campbell e seu montador, que alternam entre planos gerais, closes e até planos subjetivos que nos colocam na posição do herói.

Da mesma forma, o diretor conta com a fotografia de Phil Meheux para criar um visual obscuro na prisão e no esconderijo do Zorro que contrasta com a casa iluminada em que ele vive e até mesmo com o visual árido e sem vida das cenas em El Dorado, mas jamais carrega demais o lado sombrio, o que é coerente com a abordagem mais leve da narrativa, reforçada pela trilha sonora do ótimo James Horner, que utiliza elementos da música espanhola como as castanholas e o sapateado para embalar as cenas de ação, pontuando também os momentos românticos com belas variações da música tema. Finalmente, se “A Máscara do Zorro” consegue nos ambientar ao tempo e local em que a narrativa se passa, o mérito deve ser dividido com a figurinista Graciela Mazón, responsável pelas roupas típicas das mulheres e pelos uniformes dos homens que se destacam na festa, além é claro do visual clássico do lendário herói que respeita as tradições. Finalmente, basta observar a detalhada decoração da mesa de jantar na mansão de Don Rafael ou a imponente mina em El Dorado – apresentada num impressionante plano geral – para constatar o bom trabalho de direção de arte de Michael Atwell.

Apresentado como um ladrão andarilho que escapa da morte, o Alejandro de Antonio Banderas é um personagem cativante, o que é mérito do ator que, superando suas limitações, confere carisma ao herói. Criando conexão com a plateia através do plano detalhe de um colar que revela sua ligação emocional com o velho Zorro, o personagem rapidamente conquista a simpatia do espectador, também porque Banderas consegue criar boa empatia com Hopkins e estabelece uma excelente química com Zeta-Jones – algo notável na engraçada conversa entre Elena e Zorro no confessionário e na vibrante dança deles numa festa -, o que é essencial para o sucesso da narrativa. Aliás, a presença impotente e sensual da atriz como Elena também convence desde sua primeira aparição, chamando a atenção sempre que entra em cena – repare, por exemplo, seu olhar hipnotizante no primeiro encontro com Zorro.

Já o normalmente espetacular Anthony Hopkins dá um show na tocante conversa entre Elena e Don Diego, demonstrando a emoção contida diante da filha há tempos perdida que agora se apresenta diante dele sem que ela saiba que está falando com o verdadeiro pai – e novamente Jones não precisa de muitas palavras, indicando através do olhar confuso que Elena sente estar diante de alguém especial em sua vida, algo que, obviamente, encontra reflexo na cena inicial, quando Esperanza destaca a importância da voz do pai para a filha recém-nascida. E se o Don Rafael de Stuart Wilson e o capitão Love de Matt Letscher soam maniqueístas, este pequeno deslize é diluído pela maneira quase caricatural que os atores interpretam seus personagens – e temos até mesmo um “Don” que questiona as ações de Rafael, o que depõe contra o argumento do maniqueísmo. Fechando o elenco, L.Q. Jones rouba a cena nas poucas vezes que surge com seu Jack “três dedos”.

Apesar de construir o clímax com habilidade, Campbell escorrega ao estender demais o confronto final entre os “Zorros” e seus inimigos, tornando o duplo duelo um pouco cansativo. Em todo caso, é inegável que a morte dos vilões com barras de ouro caindo sobre eles é de um simbolismo nada sutil, porém bem divertido. E apesar da estrutura narrativa formulaica, o desfecho tem charme suficiente para agradar.

Aventura leve e despretensiosa, “A Máscara do Zorro” prova que não é necessário fazer uma analise profunda de um herói para realizar um bom filme – ainda que estes representem excelentes oportunidades para abordagens mais sérias. Existem diversas maneiras de se contar uma boa história. Para isso, basta que o filme cumpra aquilo que se propõe a fazer. E isto o longa de Campbell faz muito bem.

Texto publicado em 18 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

DRÁCULA DE BRAM STOKER (1992)

(Dracula)

Filmes em Geral #89

Dirigido por Francis Ford Coppola.

Elenco: Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins, Keanu Reeves, Richard E. Grant, Cary Elwes, Bill Campbell, Sadie Frost, Tom Waits, Monica Bellucci e Jay Robinson.

Roteiro: James V. Hart, baseado em romance de Bram Stoker.

Produção: Francis Ford Coppola, Fred Fuchs e Charles Mulvehill.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O mínimo que podemos esperar de um filme dirigido por Francis Ford Coppola é o cuidado com os detalhes que ajudam a criar um visual marcante. Seja em filmes de época com grandes orçamentos como “O Poderoso Chefão” ou em filmes menores (mas nem por isso menos qualificados) como a pérola “A Conversação”, o cuidado com o aspecto visual sempre foi uma marca do diretor. O problema é que na maioria das vezes Coppola também se preocupava com a composição dos personagens e a condução da narrativa, algo que, infelizmente, não ocorre de maneira tão eficiente neste “Drácula de Bram Stoker”, um filme visualmente belo, mas emocionalmente vazio.

Baseado no mítico romance de Bram Stoker, o roteiro escrito por James V. Hart é bastante fiel à obra que o inspirou (o que certamente agradou aos fãs), narrando a história desde os tempos em que o guerreiro Drácula (Gary Oldman) se revolta contra Deus após o suicídio de sua esposa até quando o advogado Jonathan Harker (Keanu Reeves) fica aprisionado em seu imponente castelo, enquanto ele parte para Londres em busca de Mina (Winona Ryder), a noiva de Harker que Drácula acredita ser a reencarnação de sua amada.

Historicamente, a lenda do Drácula costuma provocar fascínio, misturando elementos díspares com o terror, a sensualidade e o amor. Ciente disso, Coppola investe nestes elementos clássicos, deixando clara sua preferência pelo “amor”, numa estratégia que busca romantizar o vampiro e justificar suas ações diante do espectador. Só que desta vez ele comete um erro raro em sua carreira e perde a mão, exagerando na abordagem romântica e enfraquecendo o lado sombrio da narrativa. Além disso, a caracterização do Drácula soa exagerada, com sua maquiagem carregada passando do ponto ideal, mas felizmente a boa atuação do excelente Gary Oldman compensa esta falha. Inicialmente limitado ao papel de vampiro assustador, lentamente Oldman transforma o Drácula num personagem carismático, conseguindo a proeza de fazer o espectador torcer por ele em alguns momentos e fazendo jus a fama de sedutor do personagem.

Enquanto isso, o quase sempre inexpressivo Keanu Reeves até que se sai bem inicialmente, mas é totalmente ofuscado diante da presença de Anthony Hopkins do segundo ato em diante, que assume muito bem a função de herói e rouba a cena com seu Van Helsing. Pra piorar, mesmo com cabelo grisalho e tudo mais, o envelhecimento de Reeves não convence graças ao seu rosto juvenil. O ator também não consegue estabelecer boa química com a bela Winona Ryder, que exala a delicadeza necessária no papel e se sai bem melhor ao lado de Gary Oldman. Fechando o elenco, vale citar a caricata atuação de Tom Waits como o lunático Renfield e o desempenho selvagem de Sadie Frost como Lucy, que cai muito bem no papel.

Mas “Drácula de Bram Stoker” também tem suas qualidades. A começar pela competente direção de arte de Andrew Precht e pelos figurinos impecáveis de Eiko Ishioka que reforçam a ambientação do espectador e colaboram na criação de um visual marcante. Apoiando-se neste bom trabalho e na fotografia repleta de tons avermelhados de Michael Ballhaus, Coppola cria diversos planos estilizados, abusando também de recursos como a aceleração da imagem, criando um visual sombrio, normalmente reforçado pela chuva e pelo vento, que se torna ainda mais expressivo pelo uso constante da sensualidade feminina numa trama que naturalmente já é carregada de conotação sexual. Aliás, vale reparar também como a fotografia colorida das cenas que envolvem Mina contrasta bastante com os tons obscuros na Transilvânia, onde até mesmo as sombras ganham vida. Finalmente, o diretor não se esquece de homenagear os filmes antigos do famoso vampiro, fazendo referência ao clássico “Nosferatu”, de 1922, e a outros filmes clássicos, por exemplo, na aula do professor Van Helsing e ao utilizar uma paleta granulada na chegada de Drácula em Londres, numa alusão aos tempos da moviola.

A estilização visual continua através da montagem de Anne Goursaud, Glen Scantlebury e Nicholas C. Smith, que abusa de transições interessantes, como quando a pluma de um pavão se transforma no túnel de um trem ou quando os furos no pescoço de Lucy dão lugar aos olhos de um lobo. E ainda que possam parecer datados atualmente, os efeitos especiais funcionam na verdade como outra grande homenagem ao cinema antigo, com trucagens, maquetes e pinturas de fundo que tornam o aspecto visual de “Drácula de Bram Stoker” ainda mais impressionante. Fechando a parte técnica, a trilha sonora de Wojciech Kilar alterna bem entre os tons macabros, como quando o navio que traz Drácula chega a Londres, e os momentos melódicos, como no belo encontro entre Mina e Drácula num quarto.

Voltamos então ao problema central de “Drácula de Bram Stoker”. Talvez pela boa química existente nas cenas que envolvem Ryder e Oldman, Coppola acaba investindo demasiadamente neste lado romântico, enfraquecendo outro aspecto muito importante da narrativa, que é o lado sombrio do vampiro. Até mesmo a frase que promoveu o filme denuncia esta abordagem excessivamente melódica (“O amor nunca morre”), mas estes momentos adocicados demais acabam esvaziando o longa, ainda que em certos momentos Coppola consiga sucesso em sua abordagem, como quando Drácula diz para Mina que a ama demais para condená-la. Reequilibrando a conta, o decepcionante terceiro ato traz uma perseguição que jamais empolga e um final seco demais, impedindo que Coppola entregue um trabalho a altura de sua brilhante carreira. Ainda assim, trata-se de um bom filme.

Grandioso e operístico como um filme de Coppola deve ser, “Drácula de Bram Stoker” é um deleite para os olhos, mas funciona exatamente como aquela moça bonita que perde seu encanto após meia hora de conversa. Infelizmente, beleza não é tudo.

Texto publicado em 16 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

UM LOBISOMEM AMERICANO EM LONDRES (1981)

(An American Werewolf in London)

Filmes em Geral #88

Dirigido por John Landis.

Elenco: David Naughton, Jenny Agutter, Griffin Dunne, John Woodvine, Lila Kaye, Joe Belcher, Brian Glover e Frank Oz.

Roteiro: John Landis.

Produção: George Folsey Jr.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar da boa direção do esquecido John Landis e de resgatar o lobisomem para o cinema, o divertido “Um Lobisomem Americano em Londres” ficou marcado mesmo pelo excepcional trabalho do genial Rick Baker, responsável pela sensacional maquiagem que fez a transformação do protagonista em licantropo se tornar uma das mais marcantes da história. Mas chega a ser injusto lembrar o filme apenas por este importante detalhe, já que o longa, mesmo com cenas hoje datadas, ainda mantém o frescor e diverte, muito por causa da boa mistura de gêneros empregada pelo diretor com bastante habilidade.

Escrito pelo próprio Landis (que dirigiu o videoclipe “Thriller”, de Michael Jackson) quando tinha apenas 19 anos, “Um Lobisomem Americano em Londres” narra a história dos jovens turistas americanos David Kessler (David Naughton) e Jack (Griffin Dunne), que partem numa excursão pela Europa e acabam conhecendo um estranho e pouco acolhedor vilarejo na zona rural da Inglaterra. Ao serem praticamente expulsos do local, eles acabam se perdendo num pântano, onde são atacados por uma criatura aterrorizante, que mata Jack e fere David gravemente. Desde então, David passa a sofrer estranhas alucinações e parece sofrer com uma espécie de maldição.

Criando uma mistura interessante de gêneros, o diretor John Landis conduz a narrativa de maneira simples e direta, intercalando momentos cômicos – como os supostos devaneios do protagonista – e cenas de suspense de maneira eficiente. Fugindo dos clichês do gênero, ele aposta no humor negro em diversos momentos, algo evidenciado até mesmo pela trilha sonora divertida e repleta de músicas que fazem referencia à lua de Elmer Bernstein. Por outro lado, o diretor abre o filme com imagens do deserto embaladas por uma trilha melancólica, talvez indicando a solidão que o protagonista será condenado a enfrentar diante de sua nova condição. Landis é hábil ainda ao indicar visualmente para o espectador o resultado de algumas ações dos personagens, como quando Jack pergunta sobre o pentagrama desenhado na parede do pub (ou taberna) “Cordeiro Estraçalhado” e, em seguida, vemos um dardo sendo atirado fora do alvo, simbolizando a pergunta errada na hora e no local errados. Finalmente, Landis consegue criar alguma tensão no bosque antes do ataque do lobisomem, escorregando apenas ao abusar de estereótipos ingleses através dos punks no metrô e do povo pouco acolhedor no norte da Inglaterra. Por outro lado, Landis demonstra habilidade ao seguir a cartilha de Spielberg, segurando ao máximo antes de mostrar pela primeira vez o lobisomem, o que só aumenta a expectativa pela aparição do monstro.

Adotando uma postura leve e até mesmo cômica, David Naughton consegue carregar a narrativa com certa facilidade, até mesmo pela proposta imposta pelo diretor. Além disso, o ator nos diverte com as estranhas alucinações e os sonhos confusos de David, chegando até mesmo a nos deixar tão confusos quanto o personagem durante boa parte da narrativa. Entretanto, a dúvida começa a se desfazer quando o Dr. Hirsch (John Woodvine) visita o pub onde tudo começou. A partir de então, passamos a compartilhar a angústia do protagonista, que não sabe o que fazer para evitar a transformação que certamente sofrerá. E se nos importamos com David, é também porque a bela Jenny Agutter confere enorme carisma à enfermeira Alex Price, tornando o romance entre eles ainda mais convincente e aproximando o casal do espectador.

Mas apesar da interessante mistura de gêneros, “Um Lobisomem Americano em Londres” ficou marcado mesmo pela impressionante maquiagem de Rick Baker, que se destaca logo na primeira conversa entre David e o morto-vivo Jack. Surgindo sempre que algum morto-vivo dá as caras, a qualidade da maquiagem impressiona pela riqueza de detalhes, mostrando as vítimas dilaceradas pelo monstro de maneira bastante convincente para a época. E se alguns momentos hoje podem soar datados, pelo menos ainda conseguem nos divertir bastante. Já a melhor cena do filme continua impressionante, iniciando quando a câmera que acompanha uma conversa entre Alex e um garoto se movimenta até a lua cheia e, ao embalo de “Blue Moon”, nos mostra a dolorosa transformação do protagonista em lobisomem, que utiliza apenas maquiagem e alguns efeitos especiais, o que a torna mais convincente. Obviamente, esta cena conta também com a abordagem original e divertida de Landis, que foge dos clichês empregando boa dose de humor negro num momento potencialmente tenso. Vale destacar ainda os ótimos efeitos sonoros, que tornam a transformação e os ataques ainda mais reais.

Mesmo com tantas qualidades, “Um Lobisomem Americano em Londres” falha justamente quando precisa criar tensão na plateia. Adotando uma câmera subjetiva que dribla a falta de recursos técnicos, o diretor nos coloca na posição do licantropo nas raras vezes em que ele aparece, numa tentativa de aumentar o suspense que realça o desespero das vítimas, claramente apavoradas com o que veem. Ainda assim, apesar de demonstrar criatividade, ele raramente consegue criar um plano realmente marcante ou um momento de extrema tensão, pendendo sempre para uma narrativa mais leve e recheada de humor negro. De maneira geral, funciona bem, mesmo que raramente consiga fazer o espectador sentir medo de verdade.

No ataque final dentro de um cinema, o curioso comportamento das pessoas reflete como o ser humano não consegue conter sua curiosidade, mesmo diante de uma situação extremamente perigosa. E então o acuado David, ainda na pele de lobisomem, reconhece Alex, num raro instante de delicadeza. O problema é que nós praticamente podemos pressentir que este breve momento não durará por muito tempo e a confirmação vem na tentativa de ataque do monstro, interrompida pelos tiros dos policiais, num final coerente, porém previsível.

Ainda que raramente consiga provocar calafrios, “Um Lobisomem Americano em Londres” é bem sucedido naquilo que se propõe a fazer, que é reviver a lenda de maneira mais leve e divertida, provocando impacto através das poderosas imagens da transformação do protagonista. Se não é uma obra-prima, ainda diverte e certamente está entre os melhores filmes já feitos sobre a maldição do homem que se transforma em lobo.

Texto publicado em 15 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

TOY STORY 3 (2010)

(Toy Story 3)

 

 

Filmes em Geral #87

Dirigido por Lee Unkrich.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Tim Allen, Michael Keaton, Joan Cusack, Bonnie Hunt, Timothy Dalton, R. Lee Ermey, John Ratzenberger, John Morris, Laurie Metcalf, Wallace Shawn, Don Rickles, Jodi Benson e Ned Beatty.

Roteiro: Michael Arndt.

Produção: Darla K. Anderson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de assistir ao último filme da impecável trilogia “Toy Story”, fui tomado por um sentimento nostálgico somente ao imaginar que, após acompanharmos a trajetória de Andy e seus queridos brinquedos nos excepcionais filmes anteriores, aquela seria a minha despedida de Woody, Buzz e companhia. Se me emocionei em “Toy Story” e quase não contive as lágrimas em “Toy Story 2” – especialmente no clipe que conta a história de Jesse e sua dona -, era muito provável que as lágrimas seriam inevitáveis em “Toy Story 3”. Mas eu não estava preparado para esta verdadeira catarse. A verdade é que a obra-prima dirigida por Lee Unkrich mexe em nossos sentimentos mais profundos, remetendo a mais nostálgica fase de nossas vidas.

Desta vez escrito por Michael Arndt, “Toy Story 3” traz Andy (voz de John Morris) já com 17 anos e prestes a ir para a Faculdade. Enquanto arruma seu quarto, ele decide levar apenas o cowboy Woody (voz de Tom Hanks) e deixar todos seus outros brinquedos no sótão, entre eles Buzz Lightyear (voz de Tim Allen), Jessie (voz de Joan Cusack) e o Sr. Cabeça de Batata (voz de Don Rickles). Mas, por engano, sua mãe confunde o saco que ele separou para os brinquedos e eles acabam no lixo. O grupo consegue escapar, se infiltra numa caixa onde está Barbie (voz de Jodi Benson) e acaba sendo levado para a creche Sunnyside, onde eles conhecerão novos brinquedos como Ken (voz de Michael Keaton) e o urso Lotso (voz de Ned Beatty).

Esbanjando criatividade, o roteiro de Arndt traz Woody novamente numa situação complicada, tendo que salvar os amigos antes da partida de Andy, o que nos leva a novas e empolgantes aventuras. Remetendo em alguns instantes a estrutura narrativa do primeiro filme (a reunião entre os brinquedos, a “fuga involuntária” da casa), Arndt tem ainda o cuidado de revelar o destino de personagens marcantes como Wheezy, a boneca de porcelana Beth e os soldados de plástico, num indício sutil do clima nostálgico que permeia a narrativa, acertando também nos momentos bem humorados, como ao “resetar” Buzz e trazer de volta sua adorável dedicação ao “comando estelar”, além da hilária mudança de seu idioma para o espanhol. Abordando temas como a inexorabilidade do tempo (como atestam o gordo e cansado Buster e o rosto adolescente de Andy) e a importância da amizade verdadeira, “Toy Story 3” emociona não apenas as crianças, mas também (e especialmente!) os adultos.

A espetacular seqüência de abertura dá o tom da narrativa, iniciando com a empolgante aventura (que descobriremos existir apenas na cabeça de Andy) envolvendo os principais personagens da trilogia e terminando nas gravações que mostram o crescimento do garoto. Esta oscilação entre a euforia e a nostalgia é uma das marcas de “Toy Story 3”, graças à direção firme de Unkrich que transforma o capítulo final da trilogia num festival de sensações. Contando com o bom trabalho do montador Ken Schretzmann, a narrativa transita muito bem entre emoções extremas, passando pela adrenalina das aventuras, pela tensão dos momentos de suspense e pela delicadeza de cenas tocantes, como o melancólico e sublime final, intercalando tudo isso com momentos de bom humor. Além disso, o trabalho de montagem se destaca também pela fluidez em diversos momentos, como na citada abertura e na apresentação do sistema de segurança de Lotso, que transforma Sunnyside numa prisão.

Tecnicamente, mais uma vez a qualidade das animações impressiona pela riqueza de detalhes, sendo capaz de dar vida aos brinquedos através da leveza de seus movimentos e da expressividade deles – observe a expressão de desaprovação de Woody quando chega a Sunnyside, por exemplo. Além disso, chega a ser quase inacreditável a capacidade de criação dos animadores da Pixar, que desenvolvem uma enorme variedade de brinquedos (muitos deles remetem diretamente a minha infância, aliás), assim como o roteiro novamente aproveita a oportunidade para criar gags divertidas baseadas nas características deles, como no sensacional encontro entre Ken e Barbie e no divertido desfile que ele faz pra ela, nas constantes piadas sobre a origem dele (“Não sou brinquedo de menina!”) e no corpo improvisado pelo Sr. Cabeça de Batata.

Ainda na parte técnica, vale destacar mais uma vez o excepcional design de som, que dá vida ao mundo criado pelos animadores e nos insere dentro dele com precisão. E se desta vez a bela “You’ve got a friend in me” soa ainda mais nostálgica devido às circunstâncias, a trilha sonora de Randy Newman se destaca também por pontuar com precisão as cenas de aventura e suspense, injetando adrenalina e tensão sempre na medida certa, além de mostrar criatividade nos acordes tipicamente espanhóis que embalam a divertida dança “caliente” de Buzz.

Voltando aos aspectos visuais, vale observar como a fotografia colorida e cheia de vida na chegada dos brinquedos à creche Sunnyside cria uma expectativa totalmente contrária à realidade do lugar, evidenciada somente pela reação dos brinquedos locais segundos antes da invasão das agitadas crianças que detonam todos eles. Esta subversão de expectativa, aliás, também acontece com o personagem Lotso, que surge como um urso tranqüilo e amigável – e a voz contida de Ned Beatty é essencial para isto -, mas lentamente se revela como o grande vilão da trama. Será ele o agente da mudança brusca da fotografia, que troca as cores vivas pelos tons obscuros durante todo o segundo ato após Woody ouvir a história de Lotso, em outra cena que transita de tons dourados para cores sombrias e sufocantes que, realçadas pela chuva, ilustram os sentimentos do urso abandonado.

Além de imprimir um ritmo delicioso à narrativa, Unkrich se destaca, por exemplo, na condução de seqüências empolgantes e visualmente belíssimas como a primeira fuga de Woody de Sunnyside, a acrobática saída de Buzz da sala Lagarta e a segunda fuga da creche, capaz de grudar o espectador na cadeira, especialmente quando os personagens são deixados no assombroso depósito de lixo – e confesso que cheguei a temer pelo destino dos heróis nesta sombria seqüência, que é certamente o momento mais tenso da narrativa. Através destes interessantes movimentos de câmera que acompanham as peripécias dos personagens, Unkrich confere agilidade e dinamismo ao longa, o que é essencial numa aventura infantil. Mas “Toy Story 3” está longe de direcionar seus esforços apenas para a fatia mais jovem do público. Por isso, quando os personagens escapam da difícil situação no depósito e conseguem voltar para casa, o final devastador se aproxima e o espectador já sabe o que esperar.

Quando Andy brinca pela última vez com seus queridos brinquedos e apresenta cada um deles para a garota, nós sabemos que também estamos nos despedindo daqueles personagens adoráveis. Sabemos ainda que, para Andy, não se trata apenas de deixar aqueles brinquedos legais para trás, mas também de despedir-se definitivamente dos áureos tempos da infância, época em que o mundo era filtrado pela pureza do olhar de uma criança. Por isso, a identificação do espectador adulto é inevitável e fica difícil segurar as lágrimas. Após o carro perder-se no horizonte e Andy deixar tudo isto para trás, aqueles momentos mágicos sobreviverão apenas na memória – e quem já passou por esta fase sabe bem o que é isto. Finalmente, esta cena final é ainda mais emblemática para aqueles que eram crianças no lançamento do primeiro “Toy Story”, já que, devido a distancia de 15 anos entre os filmes, estes jovens provavelmente também estavam na faculdade em 2010 e, portanto, o crescimento de Andy reflete a própria trajetória deles.

Ao contrário de Andy, que foi obrigado a deixar seus brinquedos para trás, as novas gerações podem comemorar, pois os filmes da trilogia “Toy Story” são brinquedos que podemos guardar eternamente e até mesmo voltar a “brincar” com eles sempre que quisermos. Esta é a magia do cinema. Esta é a magia da Pixar, que provou nesta trilogia ter o poder de – com o perdão do trocadilho – ir “ao infinito e além!”.

Texto publicado em 24 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

O VENCEDOR (2010)

(The Fighter)

 

Filmes em Geral #86

Dirigido por David O. Russell.

Elenco: Mark Wahlberg, Christian Bale, Amy Adams, Melissa Leo, Jack McGee, Melissa McMeekin, Bianca Hunter, Erica McDermott, Jill Quigg, Dendrie Taylor, Kate B. O’Brien, Jenna Lamia, Mickey O’Keefe, Frank Renzulli, Caitlin Dwyer e Ross Bickell.

Roteiro: Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson.

Produção: Dorothy Aufiero, David Hoberman, Ryan Kavanaugh, Todd Lieberman, Paul Tamasy e Mark Wahlberg.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

É sempre interessante ver um bom filme de boxe – não fosse assim, este esporte não teria inspirado tantos filmes de sucesso ao longo da história do cinema. Ainda mais interessante é quando o esporte funciona apenas como pano de fundo para um complexo estudo de personagens, como é o caso deste “O Vencedor”, que, além de trazer a história real de dois irmãos boxeadores e sua complicada família, ainda nos apresenta um elenco afinado, liderado pelo ótimo Mark Wahlberg e que conta ainda com a excepcional atuação de Christian Bale.

Escrito por Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson, “O Vencedor” conta a história real dos irmãos Dicky Eklund (Christian Bale) e Micky Ward (Mark Wahlberg), quando o primeiro, famoso por ter derrotado o campeão mundial Sugar Ray e hoje viciado em drogas, está treinando o segundo na pequena cidade de Lowell, sob o olhar atento da mãe e empresária Alice (Melissa Leo). Só que os problemas do irmão e a influência de sua namorada Charlene (Amy Adams) fazem Micky buscar uma alternativa para levar a carreira de forma mais profissional, criando um conflito com seus familiares.

Apresentando uma família disfuncional – um tema apreciado pelo cinema “alternativo” de Hollywood -, a narrativa de “O Vencedor” trabalha cuidadosamente no estabelecimento das relações entre os personagens durante o primeiro ato, preparando o espectador para os conflitos que surgirão, o que, por exemplo, aumenta o impacto da reação de Micky após a prisão de Dicky, que delata sua intenção de abandonar o apoio da família e buscar uma alternativa para a carreira. Quando isto ocorre, o espectador pode até se surpreender pela forma ríspida como Micky responde o irmão, mas compreende perfeitamente sua decisão justamente por já estar familiarizado com seus problemas. Da mesma forma, a platéia se surpreende novamente com a reaproximação deles no terceiro ato, exatamente pela maneira realista que a narrativa aborda o conturbado relacionamento entre eles, o que também é bastante interessante.

Ao priorizar (corretamente) o conturbado relacionamento de Micky e sua família, a montagem de Pamela Martin abre pouco espaço para as cenas de luta, que ainda assim surgem intensas e realistas, graças à câmera movimentada de Russel e ao excepcional design de som, que nos ambienta perfeitamente através do barulho dos golpes, gemidos, gritos da torcida e vozes dos narradores. Vale destacar também como Martin e Russel cobrem as primeiras vitórias de Micky com dinamismo, saltando na narrativa de maneira elegante, e contando ainda com a agitada trilha sonora de Michael Brook, que ilustra a euforia do personagem em seu momento de virada na carreira. Variando entre músicas agitadas, que combinam perfeitamente com a natureza destrutiva do boxe, e canções melancólicas como “Strip my mind” (dos Chili Peppers), a trilha ilustra perfeitamente o carrossel de emoções enfrentado pelo protagonista.

Utilizando imagens de arquivo da verdadeira luta entre Dicky e Sugar Ray, a fotografia de Hoyte Van Hoytema busca manter o realismo através do uso de uma paleta natural, que chega a ser crua em diversos momentos, conferindo um ar documental ao longa. Esta abordagem é confirmada também na direção segura de David O. Russell, que utiliza a câmera de mão constantemente, buscando justamente reforçar a atmosfera realista que a narrativa pede, como na conturbada cena da prisão de Dicky, que ganha ainda mais adrenalina em sua câmera agitada. Além disso, o diretor busca nos aproximar de seus personagens ao abusar dos closes, como nas intensas discussões entre Charlene, Micky e sua conturbada família e na forte cena da crise de abstinência de Dicky.

Apresentando um impressionante emagrecimento que chega perto do inacreditável resultado alcançado no ótimo “O Operário”, Bale interpreta o despojado Dicky com intensidade, movimentando-se constantemente e até mesmo soando um pouco freak, mas se destaca mesmo ao demonstrar muito bem os efeitos do crack através do olhar arregalado, da fala acelerada e da falta de sincronismo quando conversa com alguém – repare como ele mal consegue olhar diretamente para as pessoas, como quando discute com Micky na casa de sua mãe, mas ainda assim é capaz de prestar atenção na conversa. Sempre agitado e em constante movimento, Dicky vive da histórica vitória contra Sugar Ray, talvez porque sua própria família parece não perceber que o tempo passou e o boxeador vitorioso do passado foi substituído por um homem problemático que necessita de ajuda.

Inicialmente mais contido que o irmão, Micky lentamente se rebela contra a família opressora e conquista seu espaço, algo que Wahlberg ilustra muito bem demonstrando confiança no tom de voz e no olhar, como em sua discussão com Dicky dentro do presídio. Esta mudança é perfeitamente compreensível diante da situação complicada em que ele vive. Rodeado por sete irmãs e uma mãe superprotetora, Micky ainda sente a pressão de ter que ser vencedor no boxe assim como foi seu irmão – e novamente, o ator transmite esta aflição do personagem muito bem em seu comportamento inicialmente retraído. Além disso, a amargura de sua ex-esposa indica que eles tiveram sérios problemas no passado, o que só piora sua situação. Talvez por isso ele encontre conforto em Charlene, que representa a tão desejada paz que ele procura e não consegue encontrar em sua família.

Sensual e bastante direta, a Charlene de Amy Adams surge confiante desde o instante em que aceita o convite de Micky para sair, crescendo ao longo da narrativa ao enfrentar a família do boxeador sem medo, o que leva a um inevitável confronto na frente de sua casa que chega às vias-de-fato – numa cena tensa e bem conduzida por Russel. Adams se sai maravilhosamente bem nos afiados diálogos que precedem o conflito, jamais se intimidando diante da resistência das ciumentas irmãs dele, e sua personagem ainda protagoniza um momento curioso, quando reclama de filmes legendados, mostrando uma característica do povo americano (e, infelizmente, que aos poucos está dominando o espectador brasileiro também). Também despojada e até mesmo intrometida, a falastrona Alice de Melissa Leo é a típica mãe superprotetora que não enxerga o quanto interfere na vida de seus filhos – e o fato de fechar os olhos para o problema de Dicky só ressalta seu medo de “perder” a proximidade que tem com eles. Mas, apesar de tudo, ela realmente ama os filhos e expressa isto de corpo e alma, vibrando em cada luta de Micky – ainda que arranje lutas desiguais apenas por dinheiro – e acompanhando Dicky numa canção com uma voz tremula que reflete sua tristeza diante da situação do filho. Por isso, chega a ser tocante o momento em que ela, após ver as filhas brigando com Charlene, demonstra não compreender porque Micky se afasta dela, evidenciando sua cegueira quanto ao próprio comportamento superprotetor.

Além de fazer um belo estudo dos irmãos Dicky e Micky, “O Vencedor” ainda acerta ao mostrar os devastadores efeitos do crack, resumidos no momento em que a HBO transmite um filme sobre Dicky e toda a sua família se envergonha do que está vendo – incluindo o próprio ex-boxeador. Ao levar a questão a sério sem jamais julgar o viciado e, especialmente, ao mostrá-lo como um ser humano normal, capaz de vencer um título mundial no passado e de ajudar o irmão no presente, o filme aborda o vício de maneira adulta, estimulando a discussão e a reflexão a respeito do tema.

Apesar de discutir rispidamente com o irmão, Micky ouve seus conselhos e acaba vencendo a luta contra Sanchez por causa disto. Mas nem por isso ele aceita o irmão de volta quando ele sai da prisão e revela sua insatisfação batendo nele num treinamento, o que gera outra discussão forte que culmina no rompimento de Micky com a namorada e o treinador Mickey O’Keefe (o próprio). E, vejam só, é justamente Dicky quem trata de reatar as relações, confirmando a ambigüidade dos personagens de “O Vencedor”. Aqui não existe certo e errado, pois todos pensam estarem agindo corretamente, por mais absurdas que pareçam suas atitudes. Esta ambigüidade chega ao auge na luta pelo título mundial, quando mesmo contrariados eles se juntam em torno de um único objetivo: fazer Micky ser campeão. Sugando o espectador pra dentro do ringue desde o canto entoado pelos irmãos ao lado do treinador O’Keefe, a luta final é marcante e repleta de energia, impressionando ainda por revelar a incrível mudança física de Wahlberg, que surge musculoso e bem diferente do homem barrigudo que acompanhamos em determinado momento da narrativa. E novamente subvertendo nossa expectativa, Dicky se confirma como peça fundamental na vitória do irmão, estimulando-o com palavras e gritos de incentivo o tempo todo.

Após a vitória, todos sobem juntos no ringue e deixam os problemas pelo menos por um instante para trás, num momento emblemático que fecha muito bem “O Vencedor”. Contando com excelentes atuações e trazendo uma história real, o longa dirigido por David O. Russell entra para a galeria dos bons filmes de boxe, para a alegria dos fãs do esporte – e dos cinéfilos também.

Texto publicado em 23 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

O DISCURSO DO REI (2010)

(The King’s Speech)

 

Filmes em Geral #85

Vencedores do Oscar #2010

Dirigido por Tom Hooper.

Elenco: Colin Firth, Helena Bonham Carter, Geoffrey Rush, Guy Pearce, Timothy Spall, Michael Gambon, Derek Jacobi, Andrew Havill, Calum Gittins, Jennifer Ehle, Dominic Applewhite, Ben Wimsett, Jake Hathaway, Claire Bloom, Orlando Wells e Tim Downie.

Roteiro: David Seidler.

Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Gareth Unwin, Simon Egan e Peter Heslop.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apresentando um protagonista com uma deficiência que afeta diretamente uma das mais importantes atribuições exigidas de alguém em sua posição, “O Discurso do Rei” agrada justamente por nos mostrar uma bela história de superação, ainda que este seja um tema recorrente. Até aqui, tudo bem, já que não há problema algum em repetir um tema tantas vezes explorado pelo cinema, desde que o resultado final não soe desgastado ou repetitivo. Felizmente, este não é o caso do longa dirigido por Tom Hooper, ainda que o diretor falhe na construção visual da narrativa. Apesar do escorregão, as ótimas atuações e a bela trajetória de superação do protagonista sustentam o filme.

Escrito por David Seidler, “O Discurso do Rei” narra a história do duque de York (Colin Firth), que se vê obrigado a assumir o trono como George VI após a morte de seu pai (Michael Gambon) e a saída repentina de seu irmão (Guy Pearce), perdidamente apaixonado por uma mulher divorciada. O problema é que ele sofre de gagueira, o que implica em sérias dificuldades todas as vezes que ele precisa discursar em público, algo cada vez mais necessário após a difusão do rádio. Diante do drama do marido, a esposa Elizabeth (Helena Bonham Carter) resolve pedir ajuda a um fonoaudiólogo nada convencional chamado Lionel (Geoffrey Rush).

Como podemos perceber somente através de sua premissa, “O Discurso do Rei” teria tudo para se tornar um drama melodramático ou uma comédia pastelão, mas felizmente o roteiro de Seidler acerta no tom e alcança um equilíbrio agradável que jamais descamba para um lado ou para o outro, ainda que falhe na construção de personagens maniqueístas e exagere pontualmente nas piadas que visam dar leveza a narrativa. Ainda assim, é interessante notar como Seidler aproveita para inserir raras e interessantes alfinetadas na monarquia através de Lionel, como quando ele senta na cadeira da igreja e provoca o rei, que se irrita e solta a voz sem gaguejar. Já o discurso que abre o filme serve para nos apresentar a dificuldade do protagonista e ganhar a empatia da platéia, algo que até mesmo a trilha sonora de Alexandre Desplat evidencia ao criar uma atmosfera tensa antes das primeiras palavras dele, mudando para um tom melancólico que, associado ao olhar incomodado do público, garante a identificação imediata do espectador com o vulnerável duque de York.

Numa atuação excepcional, Firth transmite muito bem a aflição do rei George VI por não conseguir se expressar, além de oscilar de maneira convincente entre os momentos de alegria (ao lado das filhas, por exemplo) e as constantes explosões provocadas pelo trauma de infância que tanto o sufoca. Este lado sombrio torna o personagem ambíguo e misterioso, o que é essencial para que o espectador não antecipe suas reações e se choque, por exemplo, quando ele humilha Lionel no meio da rua após uma discussão – e aqui temos uma demonstração da falta de habilidade de Hooper, que começa a cena corretamente com um movimento de câmera que diminui Lionel no fundo do plano, simbolizando sua impotência, mas abandona a estratégia cortando abruptamente para um plano fechado que destaca o personagem e destrói a construção dramática da cena. Mas se por um lado George VI demonstra que pode ser cruel a este ponto, por outro confirma sua vulnerabilidade de diversas maneiras, como ao perguntar se pode mexer no brinquedo do filho de Lionel ou, de maneira mais clara, ao chorar compulsivamente após o irmão deixar o trono, temendo a pressão de ser rei – num momento que destaca a importância do apoio da esposa e como ele se sente à vontade diante dela.

Mostrando-se preocupada e até mesmo comovida com o drama do marido, a Elizabeth de Helena Bonham Carter é a verdadeira companheira que oferece o apoio necessário na hora exata; e a atriz faz bem este papel, soando compreensiva na maior parte do tempo. Da mesma forma, o Lionel de Geoffrey Rush é o contraponto ideal para o explosivo George, com sua tranqüilidade e autoconfiança servindo como refúgio para o atormentado protagonista. Saindo-se bem nos duelos verbais com Firth, Rush cria um Lionel bastante carismático e convence o espectador como uma espécie de conselheiro do rei, graças também à boa química entre eles. Por outro lado, o unidimensional Rei Edward VIII de Guy Pearce chega a ser irritante em sua devoção à esposa e se torna definitivamente odiável quando zomba da gagueira do irmão, numa cena que começa a denunciar a origem da doença do protagonista, que será confirmada num momento tocante em que ele relembra os traumas vividos diante da família e de uma babá. Fechando o elenco, também vale citar a participação pequena e caricata de Timothy Spall como Winston Churchill, conhecido pelos discursos durante a segunda guerra mundial e que também tinha problema na fala, algo que ele chega a citar durante a narrativa.

A vida triste do protagonista é claramente refletida na paleta dessaturada da fotografia de Danny Cohen, que cria um visual cinzento, reforçado pelos tons escuros de suas roupas (figurinos de Jenny Beavan). Já as paredes descascadas do consultório indicam a situação financeira pouco confortável de Lionel e sua origem humilde, que será usada por George para ofendê-lo em determinado momento da narrativa, evidenciando o bom trabalho de direção de arte de Netty Chapman, que também nos ambienta perfeitamente à Inglaterra das primeiras décadas do século passado através dos carros, da imponente mesa de jantar do rei, dos próprios microfones e da decoração interna dos ambientes.

Cobrindo muitos anos da vida do rei, a montagem de Tariq Anwar é eficiente, ainda que utilize deselegantes letreiros para indicar a passagem do tempo. E finalizando a parte técnica, o design de som merece destaque especialmente nos discursos que abrem e fecham “O Discurso do Rei”, onde podemos ouvir claramente o público levantando, o volume diferenciado do microfone de acordo com o ambiente em que estamos e até mesmo a reação contida das pessoas ao ouvirem suas palavras. Também vale citar o momento em que o som diegético trabalha a favor da narrativa, quando ouvimos a música junto com o duque e não sabemos se ele conseguiu ou não falar enquanto Lionel grava o áudio – apesar do resultado daquele teste ser mais do que previsível.

Imprevisível mesmo é a direção de Tom Hooper. Inicialmente, ele parece ter total controle visual da narrativa, mostrando o rei George VI sempre do lado esquerdo (o mais fraco da tela) e Lionel sempre do lado direito (o mais forte) na primeira conversa deles, algo que, além de demonstrar o lado psicologicamente mais fraco daquela relação, ainda reflete a forma distorcida que o protagonista enxerga o mundo. Mas quando seu pai questiona duramente sua atitude passiva, tanto o duque quanto o rei George V aparecem do lado mais fraco da tela, o que denuncia, ainda que sutilmente, que Hooper sequer sabia o que estava fazendo. Isto fica ainda mais evidente na medida em que a narrativa avança, como na conversa seguinte à morte do rei George V, em que o duque aparece do lado direito da tela no plano geral, mas volta a surgir do lado esquerdo nos planos fechados. Se mantivesse as posições e gradualmente invertesse os lados dos personagens, Hooper estaria simbolizando o crescimento da confiança do personagem, o que seria genial. O mais curioso é que sabendo ou não o que estava fazendo, o diretor encerra “O Discurso do Rei” justamente com George VI do lado direito da tela e Lionel surgindo por último do lado esquerdo, o que, não fossem as constantes trocas durante a narrativa, poderia significar o fortalecimento do rei naquela relação. Pra piorar, o diretor insiste nesta visão distorcida até mesmo quando as cenas não envolvem George VI, o que é uma pena. Mas Hooper também acerta, como quando a câmera vai e volta em direção ao duque em seu tratamento, simulando o movimento respiratório tão importante naquele processo de cura do personagem. Além disso, o diretor obviamente tem créditos por extrair as excelentes atuações do elenco citadas acima.

E por falar em atuações, Firth dá outro show durante o ensaio de George VI, cantando, dançando e até mesmo gritando palavrões sob a observação atenta de Lionel, momentos antes do esperado discurso do título. E quando este momento chega, a tensão toma conta das pessoas presentes – e mesmo imaginando o que irá acontecer, o espectador compartilha deste sentimento. Ainda assim, Hooper estica ao máximo a cena antes de George pronunciar as primeiras palavras e fazer um belo discurso, com raras falhas (“Eu tinha que gaguejar para eles saberem que sou eu”, diz ele), na melhor cena do longa, que destaca ainda a reação das pessoas diante daquelas palavras ao mesmo tempo em que nos mostra o esforço do protagonista para evitar gaguejar. Apesar de previsível, este final feliz faz com que o espectador saia satisfeito com o que viu.

Mesmo com falhas visíveis, “O Discurso do Rei” é um filme agradável, feito sob medida para alegrar o espectador e que de quebra ainda nos brinda com ótimas atuações. Contando uma história interessante e verdadeira de superação, o longa conquista imediatamente a simpatia da platéia, mas, assim como a cura de seu protagonista, é apenas uma questão de tempo para que ele caia no esquecimento.

Texto publicado em 22 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira